“Quando a minha filha digitou no Google a pergunta ‘o que aconteceu aos dinossauros?’, quatro, dos cinco primeiros links, apontavam para páginas criacionistas”. A resposta que a rede devolveu à filha do neurocientista francês Michel Desmurget conseguiu espantar o homem que, há décadas, pensa e pesquisa o efeito que a televisão e a exposição aos ecrãs de todo o tipo produzem na nossa saúde e no desenvolvimento cognitivo, em especial na infância e adolescência.
Para Desmurget, as novas gerações estão prisioneiras de um mundo dominado pelos novos oráculos do século XXI, os ecrãs e a realidade que constroem. No livro que lançou em Portugal no final de 2021, A Fábrica de Cretinos Digitais (edição Contraponto), Desmurget amplifica a frase que soou lapidar numa entrevista que concedeu à BBC: “os nativos digitais são os primeiros filhos a terem um QI inferior ao dos pais”.
De acordo com o também diretor de investigação do gaulês INSERM – Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica, o tempo que as novas gerações levam a interagir com smartphones, tablets, computadores e televisão é elevadíssimo. Em média, três horas por dia no caso das crianças de dois anos, em países ocidentais. Seis horas em média, por dia, nos jovens entre os 13 e os 18 anos. O autor, nascido em 1965, traça um cenário doloroso a propósito dos efeitos que o consumo desmedido de ecrãs com o fim recreativo está a ter no cérebro dos nossos filhos.
Desmurget sublinha que ao contrário do que se pensava, a profusão de ecrãs a que as crianças e jovens estão expostos não lhes melhora as aptidões. Pelo contrário, acarreta efeitos nefastos na saúde física e intelectual.
Na entrevista ao SAPO Lifestyle, o neurocientista apresenta-nos os porquês para vivermos uma “pandemia de corpos e cérebros passivos”, aprisionados em ecrãs. O investigador aponta o dedo à indústria do entretenimento, às redes sociais, mas também à pseudociência e aos meios de comunicação social. A impulsionar a apatia digital está o dinheiro, como sublinha Desmurget. Para o francês, nascido em 1965, as principais vítimas do cenário que traça são os mais jovens. Sem rodeios compara a realidade que vivemos ao romance distópico de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo: “um grupo de zelosos executantes, entorpecidos pelo entretenimento pateta, privados da linguagem, incapazes de refletir sobre o mundo, mas felizes com a sua sorte”.
Uma conversa que recua aos anos de 1970, à meninice do neurocientista, para nos recordar uma sociedade diferente (a francesa) onde ver televisão era um exercício “doloroso”. Quando na década de 1990 a televisão se tornou sedutora, "já era tarde para mim”, confidencia Michel Desmurget.
A palavra Pandemia tornou-se familiar no nosso dia a dia. Usa-a no seu livro para se referir a uma pandemia de corpos e cérebros passivos e associa-a aos ecrãs. Não percebemos esta outra pandemia ou não temos interesse em combatê-la?
Exploremos a metáfora que usa com mais pormenor no que toca à saúde dos nossos filhos. Imagine uma “doença” que prejudica os aspetos cognitivos como a inteligência, a linguagem e a concentração; aspetos emocionais como a agressividade, ansiedade, depressão; e físicos, como a obesidade e a esperança de vida. Uma “doença” na qual os aspetos inerentes estão claramente identificados: uma diminuição na qualidade e quantidade de interações intrafamiliares, fundamentais para o desenvolvimento da linguagem emocional; uma diminuição na quantidade de tempo em atividades benéficas como a leitura, música, arte e desporto. Acrescente-lhe a degradação do sono, essencial para o desenvolvimento intelectual; uma estimulação sensorial excessiva, causadora de distúrbios de concentração e de aprendizagem; um défice de estimulação intelectual. Face a tudo o que acabei de referir, é óbvio que um exército de especialistas seria mobilizado para lutar contra esta "doença". Mas, obviamente, este não é o caso e a pandemia de corpos e cérebros passivos permanece em silêncio.
“Os jovens de hoje são a primeira geração da história com um QI inferior ao dos pais”. É uma afirmação forte, retirada de uma entrevista que deu. Enquanto neurocientista, que dados sustentam esta afirmação?
Em primeiro lugar, vários estudos mostram que a utilização de ecrãs afeta a linguagem - e o QI verbal -, a concentração e o conhecimento prévio. Estes são três elementos essenciais da inteligência humana. Em segundo lugar, alguns estudos efetuados ao longo de anos revelam-nos que o um QI mais elevado de uma geração para a seguinte, sofreu uma reversão, o que acontece pela primeira vez na história. Claro, isso não é verdade em todo o mundo porque o QI aumenta quando a economia melhora e, em particular, quando a escola e os sistemas de saúde melhoram. No entanto, nos países onde os fatores económicos se mantêm estáveis há décadas, observa-se uma diminuição significativa do QI. Dou como exemplo a Noruega, a Finlândia e os Países Baixos. Claro, os ecrãs são apenas um fator potencialmente envolvido nessa reversão. Os poluentes, por exemplo, também podem desempenhar um papel no que acabo de referir. Considerando, como mencionei anteriormente, o impacto dos ecrãs para uso recreativo em vários elementos-chave da nossa inteligência, como a linguagem e a concentração, o verdadeiro milagre seria não presenciarmos nenhum efeito negativo.
A indústria do entretenimento digital que gera todos os anos biliões de dólares de lucros, tem nos nossos filhos um alvo muito lucrativo.
Ao trazer para o título do seu livro a palavra “fábrica”, subentende-se que estamos perante um processo pensado de produção de cretinos. Quem comanda esta operação e qual o objetivo?
Dinheiro. Não acho que haja uma conspiração voluntária e articulada para tornar as crianças estúpidas. O que suporto é que a indústria do entretenimento digital que gera todos os anos biliões de dólares de lucros, tem nos nossos filhos um alvo muito lucrativo. No passado recente, numerosos escândalos em torno da saúde revelaram que as principais empresas comerciais são mais motivadas pelo lucro do que pela saúde. Por outras palavras, muitos acionistas e executivos de empresas de tecnologia não se importam com os nossos filhos e o seu futuro, só estão interessados no montante de dinheiro que ganharão findo o ano. Isso é exatamente o que a norte-americana Frances Haugen, ex-diretora de produto do Facebook, explicou recentemente durante uma audiência no Senado. Frances testemunhou que a empresa sabe que as suas plataformas são prejudiciais, mas coloca os lucros acima da saúde e da segurança. Em relação a este ponto, devemos ter em mente, conforme relatado em vários artigos do jornal The New York Times, que muitos executivos das indústrias digitais, incluindo Steve Jobs [fundador e ex-diretor executivo da Apple, falecido em 2011] protegiam e protegem os seus filhos das várias "ferramentas digitais" que vendem e comercializam. Conhece, por certo, o ditado: “faz o que eu digo, mas não faz faças o que eu faço”.
Tal como outras indústrias, como a do tabaco ou a da alimentação, a indústria digital manipula o consumidor? Pode dar-nos alguns exemplos?
A manipulação ocorre a vários níveis. O primeiro é informativo. Em relação aos impactos do uso do ecrã, a mensagem que chega ao público em geral é muitas vezes tendenciosa e injusta. Conforme explico no meu livro, os media estão cheios de afirmações infundadas e propaganda. Novamente, isto não é uma surpresa. Quando uma entidade vale biliões de dólares, não é difícil recrutar cientistas desonestos e lobistas fiéis. Tabaco, aquecimento global, pesticidas, açúcar, a lista de exemplos onde tal se aplica tem tanto de interminável quanto de deprimente.
O segundo aspeto, está associado à propaganda, tanto aberta quanto encoberta. Por exemplo, a obesidade pediátrica está intimamente relacionada à exposição face à propaganda de alimentos. Além disso, entre os adolescentes, a exposição repetida a cenas com tabaco em filmes, séries, videojogos, entre outros suportes, aumenta, dependendo dos estudos, o risco de iniciação ao tabagismo. Isso não é surpreendente. Na verdade, na esmagadora maioria dos conteúdos, fumar está associado a marcadores físicos, sociais e emocionais positivos: virilidade (Stallone, no filme Rambo), inteligência (Sigourney Weaver, no filme Avatar), sensualidade (Sharon Stone, no filme Instinto Fatal), espírito rebelde (James Dean, no filme Rebelde Sem Causa), poder, sexo e riqueza (Mad Men) e poderia continuar.
Por meio da repetição, a memória inconscientemente vincula o fumo a todos esses atributos positivos. Ou seja, crianças e adolescentes aprendem, sem se dar conta, que o fumador é desinibido, brilhante, inteligente, transgressor, criativo, viril, sexy, maduro, rico etc., o que aumenta a probabilidade de iniciação ao tabagismo. Obviamente, a abordagem também funciona para o álcool ou branding, como na Apple, Nike, Coca Cola, entre outras marcas.
Por fim, um terceiro processo mais recente de manipulação está vinculado ao big data. Ao arrecadar grandes quantidades de dados pessoais, as empresas de tecnologia, especialmente as redes sociais, podem manipular os nossos sentimentos, opiniões e comportamentos, conforme demonstrado por alguns escândalos repugnantes como aquele ligado à Cambridge Analytica e estudos experimentais surpreendentemente antiéticos, publicados, por exemplo, por cientistas do Facebook.
Se confiarmos no famoso esquema 'google it', sempre que precisarmos de entender até a mais simples afirmação, a nossa vida será bem difícil.
Afirmar que os ecrãs abrem às crianças, nativos digitais, o caminho para uma inteligência superior é uma forma de sedução dos pais interessados em criar o novo humano?
Perdoe-me a linguagem, mas isso é pura idiotice de lobista. Não há realmente nada que nos deixe felizes quando uma criança é capaz de usar alguns aplicativos digitais ‘hiper-simplistas’. Conforme explicado por um funcionário técnico da Google [Andie Eagle] ao jornal The New York Times, esses aplicativos são “super fáceis. É como aprender a usar pasta de dentes”. De acordo com esta afirmação, inúmeros relatórios académicos e institucionais revelam que os nativos digitais são um mito, tão verossímeis quanto o monstro de Loch Ness.
Os nossos filhos não dominam, na sua maioria, as habilidades básicas de informática como a proteção da privacidade de dados, codificação, uso de software ou e-mails. Ouvimos frequentemente que as crianças e jovens apenas sabem “de forma diferente”. Mas, na realidade, o que eles sabem e as gerações anteriores ignoram é o uso do Instagram, descarregar séries da Netflix, citar todos os personagens dos últimos reality shows da TV. É a isso que chamamos progresso?
Também escutamos que o conhecimento factual é inútil, porque tudo o que as crianças precisam de fazer é “pesquisar no Google”. Quem é ingénuo o suficiente para acreditar nesta fábula? Considere a frase: “está a nevar pelo que se espera congestionamento no trânsito”. Para entender a frase, precisa de saber que a neve é escorregadia, que dificulta a condução, que as pessoas conduzem mais devagar quando neva, que os acidentes são mais frequentes nessas condições, etc. O que é importante nesta frase não é o que está explicitamente formulado, mas o que permanece não contado. Se confiarmos no famoso esquema “Google it”, sempre que precisarmos de entender até a mais simples afirmação, a nossa vida será bem difícil. Isso aplica-se a qualquer disciplina, incluindo história, ciências e matemática. O que nos torna mais inteligentes não é o que o Google sabe; é o que nós sabemos.
Na sua perspetiva, não estamos a dotar as futuras gerações de mais competências técnicas, capacidade de lidar com grande volume de informação, de resolver problemas complexos.
A capacidade de processar, sintetizar e usar informações não é uma habilidade técnica, mas intelectual. Não se baseia em algumas “receitas”, mas em conhecimentos prévios. Qualquer pesquisa no Google retorna milhares de respostas. E essas respostas não são classificadas por relevância. Quando a minha filha digitou no Google a pergunta “o que aconteceu aos dinossauros?”, quatro, dos cinco primeiros links, apontavam para páginas criacionistas e o último falava do fim da Nortel, um "dinossauro" das telecomunicações. Seja qual for o tópico, uma base forte de conhecimento anterior é necessária para classificar e priorizar os dados que encontra na web. Ou seja, para qualquer indivíduo, a capacidade de processar o enorme volume de informação presente na internet é uma consequência, não uma fonte de conhecimento. Considere uma investigação recente da Universidade Stanford, na Califórnia, em concordância com estudos anteriores, revela que os chamados “nativos digitais” têm dificuldade em entender, processar e avaliar até mesmo as informações mais simples que encontram na internet. Dizem-nos os autores que a capacidade de os nossos filhos “raciocinarem sobre a informação na internet pode resumir-se a uma palavra: ‘desoladora’. O défice é tão forte que parece representar, nada menos, do que uma ameaça à democracia”.
De que adianta viver num oceano de informações se acaba por se afogar nele? É a nossa capacidade de processar e compreender os dados que importa.
Ou seja, termos acesso a mais informação na web não significa estarmos melhor informados?
De que adianta viver num oceano de informações se acaba por se afogar nele? É a nossa capacidade de processar e compreender os dados que importa. Quanto menos souber, mais suscetível se tornará a falsas notícias e manipulações cognitivas. Recentemente, a minha filha teve várias aulas de pensamento crítico. Isso é sintomático da negação absoluta dos nossos tempos. O pensamento crítico não é, e nunca será, uma habilidade geral. Está intimamente ligado ao conhecimento. Se não sei nada sobre as mudanças climáticas ou o impacto dos videojogos no desenvolvimento, como se espera que eu avalie e critique qualquer relatório, declaração ou artigo sobre esses assuntos? Eu sei que é isso o que muitos jornalistas fazem e, talvez, esse seja parte do problema.
Face ao que diz, podemos estar perante um retrocesso civilizacional?
Estudos desenvolvidos ao longo de vários anos demonstram que, na maioria dos países ocidentais, as habilidades intelectuais das crianças estão a diminuir. Há poucos anos, como parte do programa PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos], a OCDE publicou um relatório sobre “resolução de problemas” e a capacidade dos alunos para enfrentarem os desafios da vida real. Os resultados foram muito bons. Em França, por exemplo, um investigador da OCDE declarou que “os adolescentes revelam que estão motivados, perfeitamente capazes de raciocínio lógico, de passar do concreto ao abstrato, implementar estratégias, explorar informações, reajustar em caso de erro”. Impressionante, até lermos as tarefas: ligar um leitor MP3 ou um aparelho de ar condicionado, comprar um bilhete de comboio através da internet. A meu ver, essas "habilidades notáveis" assemelham estes adolescentes a membros da Casta Gama descrita pelo escritor inglês Aldous Huxley no seu famoso romance distópico Admirável Mundo Novo. Um grupo de zelosos executantes, entorpecidos pelo entretenimento pateta, privados da linguagem, incapazes de refletir sobre o mundo, mas felizes com a sua sorte.
Pode dar-nos dois ou três exemplos de como o digital não robustece o cérebro da criança e do jovem?
Para se desenvolver adequadamente, o cérebro precisa de ser estimulado. Se o nível de estimulação for insuficiente, o desenvolvimento é prejudicado. Como revelam estudos recentes de neuroimagem, é o que acontece, por exemplo, com a linguagem. Como a rede neural que suporta a linguagem é pouco estimulada, como resultado do uso excessivo dos ecrãs, são encontradas anomalias na arquitetura física dessa rede. Da mesma forma, adolescentes expostos a muitos conteúdos violentos, apresentam anomalias anatómicas na região pré-frontal que medeiam a inibição comportamental. Mas a superestimulação também não é boa. Em animais, foi demonstrado que a estimulação visual e auditiva excessiva, como a veiculada pela televisão, leva à desorganização do sistema de recompensa, o que favorece o vício, as dificuldades de aprendizagem e a impulsividade. Observe que a plasticidade cerebral é intensa durante os primeiros anos de vida, o que implica um alto nível de vulnerabilidade de desenvolvimento. Portanto, é especialmente importante proteger as crianças dos ecrãs durante a fase inicial de seu desenvolvimento, pelo menos durante os primeiros cinco ou seis anos de vida.
Estudos desenvolvidos ao longo de vários anos demonstram que, na maioria dos países ocidentais, as habilidades intelectuais das crianças estão a diminuir.
Há especialistas de diferentes áreas a apoiar as teorias do novo humano. Estão mal informados ou venderam-se à indústria?
Já terá ouvido a expressão de que os nativos digitais são uma espécie de “mutantes”. Supostamente, os seus cérebros são diferentes. O cérebro humano evoluiu lentamente e a sua natureza íntima e fundamentos genéticos não mudarão no tempo de uma geração. No entanto, conforme ilustrei há pouco, o cérebro do nativo digital é diferente porque está exposto a um ambiente menos “nutritivo”. Claro, o cérebro é estrutural e funcionalmente "plástico", ao adaptar-se e organizar-se de acordo com as experiências pelas quais passa. Mas essa plasticidade não é mágica. O cérebro não se vai desenvolver de maneira ideal em ambientes não ideais. Por exemplo, é óbvio que o nosso organismo se adapta à altitude. No entanto, não funciona tão bem a 7000 metros como a 200 metros. O padrão com os ecrãs é similar. O cérebro funciona e cresce, mas não com a eficiência que deveria devido à pobreza do ambiente digital no qual está imerso.
Há pouco referiu os jornalistas num contexto menos abonatório. A comunicação social também contribui para criar este mito de um novo cérebro?
Claro. Uma experiência realizada por John Bohannon [jornalista e cientista norte-americano] é muito interessante para destacar o processo que transforma alegações patetas de lobistas em manchetes chamativas. Bohannon, que possui um doutoramento em biologia molecular, realizou uma experiência absurda, ridiculamente frágil nos seus fundamentos e encontrou resultados sem sentido que publicou num jornal pseudocientífico [por 600 euros]. De seguida, o jornalista filiou-se numa instituição fictícia e preparou um comunicado à imprensa com uma mensagem sexy: “o chocolate ajuda a perder peso”. Foi um sucesso internacional, publicado na primeira página de vários meios de comunicação de renome e foi noticiado em mais de 20 países e em meia dúzia de idiomas. A chave, como explicou Bohannon, “é explorar a incrível preguiça dos jornalistas”. Os lobistas da indústria digital conhecem essa realidade muito bem.
Saber se os nossos filhos têm "novos cérebros" é um bom exemplo dentro daquilo que acabei de expor. Há poucos meses, manchetes empolgadas noticiavam, em todo o mundo, que "os videojogos podem aumentar a dimensão do cérebro e as suas conexões". A informação baseou-se num estudo - bem conduzido - que mostrou algumas mudanças na arquitetura do cérebro em jovens adultos que jogaram Super Mario por, pelo menos, 30 minutos por dia, durante um período de dois meses. A descoberta foi bastante trivial: tudo o que fizer, altera o seu cérebro; isso é conhecido há décadas, mas qualquer coisa que sugira uma influência positiva do videojogo tende a ser apresentada como uma descoberta inovadora. As mudanças localizaram-se em três estruturas específicas envolvidas na memória espacial [armazenamento do mapa do jogo], controlo motor [uso do joystick] e comportamentos aditivos [prazer de jogar]. Esses resultados não têm relação com as incríveis alegações dos media. Este é apenas um exemplo entre dezenas.
Há quem advogue uma escola puramente digital, retirando-lhe o papel dos professores. O que lhe ocorre dizer perante este cenário?
Será que quem advoga esse cenário enviaria os seus filhos para essas escolas? Aparentemente não, se considerarmos o artigo que já citei do The New York Times que sublinha que executivos da indústria digital matriculam os seus filhos em escolas primárias libertas de computadores. Também gostaria de perguntar a esses “defensores” quais são os seus objetivos reais e se estes passam por dinheiro ou por pedagogia? Na verdade, para a maioria dos governos, a questão não é "devemos fornecer aos professores ferramentas educacionais potencialmente úteis?", mas “podemos economizar dinheiro, substituindo o oneroso tempo humano qualificado por tempo mais barato associado à máquina?”.
Obviamente, muitos países enfrentam uma enorme escassez de professores qualificados. Nesse âmbito, o ensino digital é a melhor solução para resolver o problema. No entanto, conforme demonstrado por um grande número de estudos em grande escala, conduzidos em todo o mundo, incluindo avaliações do PISA, essa solução causa uma queda acentuada no desempenho educacional e um substancial aumento nas desigualdades sociais. Conforme observado recentemente num relatório do PISA, “os professores são o recurso mais importante nas escolas da atualidade”. A França é um exemplo perfeito. Na primavera de 2020, durante a primeira vaga da COVID-19, o governo optou pelo encerramento das escolas. Essa decisão foi anulada após poucas semanas, contra o conselho da maioria dos especialistas em saúde. O Primeiro-Ministro explicou que esta decisão devia ser tomada por se tratar de "um imperativo educacional e de justiça social". Durante o período de escolaridade digital, a aprendizagem aproximou-se de zero para a maioria das crianças e o impacto foi particularmente lesivo nas crianças em meios desfavorecidos.
Os ecrãs não são boas ferramentas para o sucesso escolar?
Os alunos devem aprender habilidades digitais fundamentais na escola como codificação, uso de software, lidar com a segurança dos dados, etc. Além disso, ninguém argumenta que as tecnologias digitais não podem ser uma ferramenta educacional eficiente, quando usadas por um professor competente no contexto de um projeto educacional estruturado. Mas, esta não é a tendência real como já referi.
Não podemos negar a existência do digital no mundo em que vivemos. Como estabelecer limites à criança sem com isso comprometer a sua literacia digital?
Ninguém discute que os ecrãs são todos malignos. Isso seria estúpido. No entanto, a possibilidade de utilizações positivas não devem mascarar a realidade sombria que já aqui analisei. Por outras palavras, o que importa não é como a nova geração poderia usar os ecrãs. O que importa é como realmente os usa. Não há absolutamente nenhuma evidência de que não ser exposto a ecrãs com fins recreativos tenha um impacto negativo mínimo. Dito isso, pode ser interessante olharmos para alguns números. Em média, o tempo passado frente a um ecrã recreativo, excluindo os trabalhos de casa e o uso académico, chega a quase três horas por dia em crianças de dois anos, quase cinco horas em crianças de oito anos e mais de sete horas em adolescentes. Isto é uma loucura. Antes dos cinco ou seis anos, a melhor prática é zero ecrãs. Isso não significa que não possa, ocasionalmente, assistir a um desenho animado com os seus filhos. Quanto mais cedo as crianças são expostas, maiores são os impactos negativos e maior o risco de consumo excessivo mais tarde. Após os cinco ou seis anos, se os conteúdos são adaptados, por exemplo não violentos, ansiogénicos e/ou pornográficos, e o sono é respeitado, meia hora por dia não me parece que tenha impacto negativo. Além desse limite, surgem resultados negativos significativos.
Por certo muitos pais que estão a ler esta entrevista concordarão consigo e pensarão: “há uma fórmula para ‘desintoxicar’ os meus filhos dos ecrãs”. O Michel Desmurget tem essa resposta?
Lamento, mas não há uma solução mágica. Porém, uma coisa é certa: as regras são necessárias e, como o provam inúmeros estudos, elas resultam. Mais exatamente, elas apresentam resultados quando são explicadas. Crianças e adolescentes têm de ouvir que os ecrãs recreativos prejudicam o desenvolvimento do cérebro, prejudicam o sono, interferem na aquisição da linguagem, enfraquecem o desempenho académico, prejudicam a concentração e aumentam o risco de obesidade. Em qualquer idade, é mais fácil seguir regras restritivas quando essas regras são explicadas antecipadamente. Entre as regras mais eficientes, podemos citar: estabelecer um limite de tempo diário, controlar os conteúdos e adaptá-los à idade e proibir os ecrãs pela manhã, antes de ir para a escola, também antes do deitar, em contextos sociais, por exemplo as refeições e, sobretudo, no quarto.
Nasceu em 1965, ainda longe de um tempo dominado pelos ecrãs, embora já com a televisão. Via muita televisão?
Nos anos de 1970, a televisão era realmente um meio de comunicação "doloroso" para as crianças, pelo menos em França. Havia apenas dois canais públicos terrivelmente enfadonhos. A transmissão começava por volta do meio-dia e terminava antes da meia-noite. Não havia programas específicos para crianças. Por volta dos anos de 1980, alguns desenhos-animados e séries começaram a aparecer, principalmente nas tardes de quarta-feira, um dia sem aulas, e durante o fim de semana. As coisas realmente dispararam na década de 1990 com a multiplicação dos canais de TV, mas acho que já era tarde para mim. Havia construído outros hábitos e interesses. A resposta à sua pergunta é: não, eu não assistia a muita televisão. Na verdade, quando tinha cinco anos, parti uma perna. O meu pai comprou-me uma televisão, enorme, a ocupar metade da sala de estar. Fiquei super empolgado. Contudo, quando o meu pai ligou o aparelho, tudo o que vi foi uma bandeira da França e uma igreja em homenagem a Charles de Gaulle, que acabara de morrer. Isso durou dias. Após algumas semanas, já ninguém via televisão lá em casa. Uma tia levou o aparelho.
Entrevista concedida por escrito em dezembro de 2021.
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