Há uma figura de estilo na literatura que nos permite viajar num salto para o passado, a analepse. O autor, interrompe a linha do tempo, coloca um ponto final, abre uma nova linha, inicia um novo parágrafo e já chegámos ao passado.
Viagem instantânea no tempo, que num segundo nos coloca num outro ponto da história, num outro local, no qual os personagens estão no passado. O presente fica assim iluminado por um momento passado que parece determiná-lo. Há neste exercício a ideia de que a solução se esconde no passado.
Com frequência encontro casais que procuram ajuda, devido ao padrão de discussão que desenvolvem no qual em cada discussão, há um salto para o passado, com o revisitar de um outro conflito. Sempre que a tensão emocional aumenta, cavam-se valas com o intuito de desenterrar esqueletos antigos e mostrar ao outro o quanto assombrada está a relação.
Há um vídeo humorístico produzido pela Porta dos Fundos intitulado, Terapia de Casal, obrigatório ver, que ilustra de uma forma brilhante como os casais justificam as suas ações numa espiral recursiva de tempos passados. Há sempre um esqueleto no passado, à espera de ser desenterrado que justifica o momento presente.
Terapia de Casal: a dificuldade de expressar na relação o que estão a sentir
Lembro-me da Rita e do João numa sessão de terapia de casal, na qual ambos freneticamente desenterravam esqueletos velhos. Interrompi-os perguntando o que estavam a sentir naquele preciso momento. Curiosamente, instala-se no consultório por alguns segundos um silêncio sepulcral. Interrompido com uma expressão de espanto de ambos. O que sentimos agora, como assim?
Para Rita e para o João, falar sobre o que sentiam no presente, parecia não os ajudar a resolver os problemas. Estavam ambos convictos que a solução estava no passado e no papel que o terapeuta poderia assumir de árbitro de um jogo já vivido. Para eles a razão estava guardada bem fundo, no momento em que um deles teria atirado a primeira pedra.
A Rita e o João à semelhança de muitos casais, parecem ter muita dificuldade em expressarem na relação o que estão a sentir. Comunicar o que se sente, parece criar-lhes um contexto de vulnerabilidade, que não estão dispostos a viver na presença do outro. A comunicação fica assim centrado no outro e não no eu. Instala-se uma linguagem centrada no tu não fizeste aquilo, tu não foste aquele sítio, tu não mudaste ao contrário de uma linguagem centrada no eu estou triste, no eu estou assustado, ou no eu sinto-me frustrado.
Viagem ao passado
Conheço em consulta a Inês e o Francisco, alguns dias depois da Inês ter comunicado ao Francisco o seu desejo de terminar a relação. A Inês fixada no futuro, projeta-se fora da relação, argumentando que a decisão de separação vai ser o melhor para os dois. O Francisco pelo contrário, prende-se no passado, procurando exaustivamente encontrar um motivo para a decisão da Inês.
À medida que viaja pelo passado, a expressão facial do Francisco parece ficar progressivamente mais zangada. Pergunto com o objetivo de tornar clara a emoção vivida no momento. - O que sente com a decisão da Inês? O francisco procura o meu olhar e de rosto fechado, responde-me - quer saber o que estou a sentir? o que sinto é totalmente irrelevante, o que interessa é descobrirmos que a Inês não tem razão nenhuma para pedir o divórcio.
Decido por momentos embarcar no convite para viajar na máquina do tempo. Pergunto como é que foi para ambos o primeiro momento em que se conheceram. A Inês partilha que viu o Francisco pela primeira vez num evento da empresa onde ambos trabalhavam. "Era um homem alto, bonito, tinha acabado de concluir uma apresentação para uma plateia exigente e transbordava confiança". O Francisco a ouvir a Inês, por momentos descontrai, e sorri ligeiramente. Olho para o Francisco e pergunto como foi para ele o primeiro momento que conheceu a Inês. "A Inês era uma mulher tímida, mas muito bonita, transmitia-me muita serenidade".
Regresso ao presente, e pergunto a ambos o que gostariam de retirar do processo terapêutico. A Inês responde. "eu gostava de voltar a sentir pelo Francisco a mesma admiração e o mesmo desejo que já senti". O Francisco, por sua vez, responde: "eu quero que a relação volte a ser fácil como no início".
Como terapeuta de casais, por vezes tenho que embarcar na viagem do tempo, confesso que é uma técnica que não aprecio, mas por vezes necessária para desenterrar memórias boas. Quando o passado nos oferece, bons momentos, normalmente promove a esperança e orienta-nos para ação.
Talvez devesse existir um guião para viagens no tempo que ocorrem durante uma discussão de casal
Convite para viajar no tempo. (sem convite é um rapto!)
Escolher bem a data do passado (ninguém quer uma dor dentes de novo!)
Dar a mão, para outro não cair (viajar no tempo é sempre turbulento!)
Nunca tentar mudar passado (dá mal resultado, vejam o filme regresso ao futuro!)
Não procurar a verdade e a mentira (afinal a memória é sempre seletiva!)
Resgatar uma emoção boa (há sempre coisa boas guardadas!)
Dar a mão e regressar ao presente. (É impossível viver no passado!)
Aterrar com os dois pés no chão.
Último aviso aos viajantes no tempo de narrativas amorosas, há qualquer coisa no passado que está irremediavelmente perdido. Procurar incessantemente a solução no passado, pode adiar a resolução dos problemas.
Pedro Vaz Santos - Psicólogo Clínico / Terapeuta Familiar e de Casal
Comentários