Não será exagero afirmar que desde que esta adorável, destrutiva e inventiva espécie de Hominídeo, à qual pertencemos, engendrou forma de se locomover como bípede, que a viagem se tornou não só impulso, como necessidade e vício. Hoje, o mundo viaja, calcorreia e andarilha, e fá-lo em todos os sentidos; literalmente. Viajar não é apenas o ir de aqui para ali, mas também o de estarmos aqui e recebermos a viagem. Em Lisboa, duas irmãs, a Rita Gil Pires e a Ana Gil Pires tomaram em mãos a tarefa de pesquisar, embalar e entregar-nos a viagem pronta. Não, não pense o leitor que se senta na antecâmara, em formato agência de viagens, de roteiro organizado às Caraíbas.
O que as duas manas Gil Pires nos propõem e que já antes aqui experienciámos e relatámos, num périplo pelas cozinhas do Médio Oriente, é uma viagem em modo passeio às papilas gustativas em torno do Mundo. Um périplo com as sugestões que, já na terceira temporada e depois de muitas viagens globais, nos sentam à mesa em Lisboa e nos presenteiam com passeios culinários por diferentes geografias, seja um continente ou um território mais restrito.
Têm nome estas viagens, Brunch do Mundo. Também têm pouso, na Lx Factory, mais concretamente no espaço Kitschen. Já lá vamos.
Primeiro há que perceber motivações. Simples. Rita e Ana gostam de viajar, adoram comer e não se cansam de o fazer. Cansadas, sim, estavam de encarar as cartas dos muitos brunchs que pululam pela cidade e que, com mais ou menos retoque, não abonam na diferença. Aquilo que começou por ser uma viagem doméstica com família e amigos, estendeu-se a um conceito com dez comensais em brunch de formato errático e secreto, para atualmente ser mesa corrida (muito longa como uma viagem intercontinental), com 22 convidados com inscrição prévia (no Instagram e Facebook) e ementa preparada como fato de alfaiate.
Ou seja, não vai o leitor encontrar as duas irmãs a laborar em formato industrial, antes artesanal. Porquê? Porque fazem a luva no formato da mão que vai servir. Todas as temporadas deste Brunch do Mundo se dividem em grupos de semanas temáticas. Um exemplo, aquele que serve de base a esta peça, um brunch integralmente dedicado à “América do Sul e Centro”. E sobre a mesa um périplo por sete países: Barbados, Colômbia, Peru, Venezuela, Argentina, Brasil e Nicarágua.
Meia dúzia de pontinhos no mapa global, servidos com outros tantos pratos representativos de cada país. Dá trabalho? Pois claro que dá. A dupla de cozinheiras não faz as malas sem as planear. Da cozinha não saem só remessas de comida para uma mesa ávida de viagem. Sai também informação sobre aquilo que comemos e apontamentos coloridos sobre os países que provamos.
Uma viagem sem pressas
E, prepare-se o leitor, há que levar tempo. Hora marcada, as 12h00 (não se atrase). Hora de fecho: 14h30, ou 14h45, ou mesmo as 15h00. Neste almoço não entra o relógio do coelho da Alice e os 22 comparsas de viagem que se sentam à mesa estão aqui para espraiar conversa. Rita e Ana quebram o gelo inicial. O entorno também ajuda. Peguemos no descritivo que apresenta esta Kitschen: “Cafetaria oficial da Cowork Lisboa! O café mais lindo, piroso e adoravelmente feio do LX Factory. Nuestra cocina es su cocina!”. Convencido? Nós ficámos. Este espaço é aquilo que em literatura chamamos um pastiche. Uma colagem de tudo aquilo que define a nossa portugalidade, do órfão “menino da lágrima”, a toda a louçaria e mobiliário castiço nacional, não faltando os naperons e todas as kitsch iluminuras de autores anónimos.
Adiante, porque o que aqui nos traz é o bodo e há muitos quilómetros para cumprir. Uma viagem que começa em jeito petisco para cativar. Um pão de queijo brasileiro. Um símbolo nacional “que até tem dia dedicado”, como explica Rita, mas que o Brasil ainda não aprendeu a exportar, dizemos nós. E faz mal, porque um pãozinho de queijo ainda quente, ao jeito do estado de Minas Gerais, é sabor imbatível.
Do gigante sul-americano para uma discreta ilha das Caraíbas, as nossas anfitriãs encaminham-nos para Barbados. Território insular que, “exportou para o mundo a cantora Rihanna”. Não tem barbas a menina, mas foi isso mesmo que no século XVII os portugueses viram ao desembarcarem na ilha. Não a Rihanna, obviamente, mas figueiras nativas com folhagem semelhante a barbelas. De Barbados chega a esta Lisboa uma Poncha de Frutos. Laranja, limão, lima, groselha, goiaba, ananás, a conviverem dentro do copo em tom de fogo.
De retorno ao continente, faz-se a entrada a oeste, na Colômbia, com uma Sopa Ajiaco. Prato encorpado onde cabem “dois tipos de batata, carne de galinha desfiada e maçaroca de milho”. Como termo de comparação, peguemos na nossa canjinha, tiramos-lhe o selo de comida para convalescente, musculamo-la de ingredientes e de exotismo sul-americano. Acompanhamo-la com um creme leite e alcaparras servidos à parte e tendo como destino um mergulho do caldo. Cozinha andina, de aconchego e a prepara-nos o palato para um pulo de perna longa, até ao continente, ao Peru, para provarmos um prato nascido na revolução e na Causa (Motivo) para a independência. Causa Rellena, um prato muito consumido em Lima e que nesta Lisboa nos chega à mesa em camadas de batata-doce, abacate e atum com ovo.
Arepas, crepe com doce de leite e outros mimos
Da cozinha deste Brunch do Mundo para a vintena de “gastro viajantes”, uma outra instituição da América do Sul, a Arepa venezuelana aqui servida com creme de abacate e guacamole. Um pão de milho de grande versatilidade no que toca a receber recheios. Massa suave, de sabor não impositivo. Aqui servido com uma história. Palavras de Rita: “Quando o navegador Américo Vespúcio desembarcou no território da atual Venezuela, deparou-se-lhe um cenário de casario à beira de um lago. Logo associou o quadro a Veneza, o que daria, mais tarde, no termo, Venezuela”. Rita deixa a pergunta: “Qual é a grande exportação da Venezuela? As Miss Mundo”.
Perto de cinco mil quilómetros separam a Venezuela da Argentina. Neste Brunch do Mundo distância percorrida em 15 minutos, entre dois hemisférios, o salgado e o doce. Da Arepa para o Crepe com doce de leite, petisco servido com história: “Dois generais acordaram a declaração do fim de um conflito. Um dos militares, em jeito de acolhimento, pede à criada para lhe fazer uma sobremesa à base de leite para servir ao congénere. Este chega antes da hora acordada e, no alvoroço, o creme carameliza. Não havendo tempo, o doce é servido assim mesmo e cativa”.
Penúltimo e último capítulos deste almoço com sabor a América Latina. Do Brasil um Creme de açaí com granola de milho e castanha do Brasil. Sobremesa de resistência, sabor intenso, riqueza na mistura de cereais, com aveia, flocos de milho, coco ralado, mel, sementes de girassol, sésamo, linhaça. A rematar nos apetites doces de boca, uma incursão (intensa) pela Nicarágua com um Doce de três leites. “Gordo, Meio Gordo e Magro”, explica Rita com um sorriso no rosto. “`Bricandeirinha`, três leites porque a sobremesa tem-no ´normal´, de vaca, condensado e evaporado”. O resultado é um saboroso bolinho de sabor intenso, a pedir garfo.
14h45, hora de fecho. “Hoje foram uns despachados” gracejam Rita e Ana. Com a mesa concluída, fotografia de família capturada, há a corrida à sonolência dos sofás. Estamos em casa e ainda não demos fim ao chá de erva-mate agora servido. Mas atenção, adverte Rita, “moderação na dose. Este chá tem forte capacidade para nos deixar despertos. Pode valer por dez cafés”. Energia suficiente, presumimos, para nos catapultar até ao próximo Brunch do Mundo.
Comentários