
Entre 1650 e 1740, o mundo da medicina sofreu uma transformação profunda: os remédios caseiros preparados por mulheres foram substituídos por medicamentos vendidos por profissionais, e a doença passou a ser uma questão individual. É esta mudança cultural e económica que Karen Bloom Gevirtz explora no livro A Mulher do Boticário, que chega agora às livrarias em português editado pela Temas & Debates.
A autora recorre a arquivos de vários continentes para reconstruir a história pouco contada da medicina enquanto prática doméstica feminina — e da forma como essa tradição foi deslegitimada, mercantilizada e esquecida. A investigação teve início numa cave de quatro séculos, onde a autora descobriu o Herbário de Blackwell, obra de Elizabeth Blackwell, publicado entre 1735 e 1739. A partir daí, seguiu pistas por França, Alemanha, Índia, Caraíbas ou Amazónia, traçando a rede de trocas que sustentou o surgimento da indústria farmacêutica.
“Os profissionais normalizaram a ideia de as pessoas lhes pagarem por aquilo que já recebiam em casa gratuitamente, lançando as bases da chamada Big Pharma e do atual sistema global de medicamentos com fins lucrativos. Karen Bloom Gevirtz conta esta parte pouco explorada da história da medicina”, lemos na apresentação à obra.
Karen Bloom Gevirtz é professora de Inglês na Universidade Seton Hall, especialista em literatura britânica dos séculos XVII e XVIII, estudos de género e história da medicina. É autora de vários livros académicos e já colaborou com publicações como The Wall Street Journal e HuffPost. Licenciada pela Brown University e doutorada pela Emory, combina formação literária e científica com uma abordagem crítica à história cultural da medicina.
A Mulher do Boticário propõe uma leitura histórica da saúde como construção social e económica, desmontando a ideia de que os medicamentos pagos e prescritos são, por definição, mais eficazes. Sem condenar médicos nem mercados, o livro recupera um passado no qual cuidar era um ato comunitário — e gratuito.
Do livro, publicamos o excerto abaixo.
Sopa de galinha e vinho de víbora
Todos os dias, sir Kenelm Digby dava à sua mulher Venetia, lady Digby, um copo de vinho de víbora. Era ele próprio quem o preparava. Pegava em algumas dezenas de cobras vivas e venenosas, enfiava-as num barril de vinho, tapava o barril e deixava-o ficar sem ser mexido durante alguns meses, até as cobras morrerem e se desintegrarem. É possível que coasse o líquido antes de o servir, embora a sua amiga, Alethea Howard, condessa de Arundel e Lennox, não o recomendasse na sua receita:
Pegar em oito galões de sack, que é o melhor vinho, e pôr nessa quantidade trinta ou trinta e duas víboras, preparando-as primeiro da seguinte maneira. Pô-las em farelo durante cerca de quatro dias, para as limpar, e depois fechar bem o recipiente em que forem colocadas até que passem seis meses. Durante esse período, a carne e a virtude das víboras serão infundidas no vinho, embora as peles pareçam intactas. Ao fim desse tempo, poderão ser retiradas ou não, e o vinho poderá ser bebido na circunstância considerada mais propícia.
Há uma série de aspetos nesta história que poderão levantar questões aos leitores dos nossos dias. Por que razão terá Kenelm dado vinho de víbora à sua mulher, Venetia? Por que razão terá Kenelm dado vinho de víbora à sua mulher, Venetia? E por que razão terá Kenelm dado vinho de víbora à sua mulher, Venetia? São perguntas diferentes e são todas importantes. Responder-lhes é explicar como se processou um outro aspeto da passagem da medicina doméstica à medicina profissional: a separação entre a alimentação e a medicação.
Porque lhe terá ele então dado vinho de víbora?
O vinho de víbora não era tão exótico no século XVII como é neste. Desde Galeno que os médicos o receitavam e administravam regularmente a doentes com problemas de pele. Em 1635, numa palestra sobre o tratamento de tumores, Alexander Read recomendou o vinho de víbora para a lepra. Em 1675, Philip Bellon foi ainda mais longe ao afirmar, em The Potable Balsome of Life, que as bebidas feitas com víboras eram úteis para tratar não só a lepra, mas também as infeções sexualmente transmissíveis, a tuberculose, as febres e o escorbuto. Alguns anos mais tarde, o vinho de víbora adquiriu outros poderes: em Pharmaceutice rationalis, or, An Exercitation of the Operations of Medicines in Humane Bodies (1679), o distinto médico Thomas Willis recomendou o vinho de víbora para fortalecer os «espíritos animais» de um homem, um uso também defendido por William Salmon em The Practice of Curing (1681). Além disso, Salmon sugeriu vinho de víbora e, em alguns casos, pó de víbora (a que chamava «medicamentos viperinos») para convulsões, tremores e, de modo algo paradoxal, «distúrbios paralíticos». Em linha com Bellon, também afirmou que poderia ser uma cura para a lepra.
O poeta John Donne chegou mesmo a aludir a tal remédio num sermão na Catedral de São Paulo. Quanto a Samuel Hartlib, que se correspondeu com todas as grandes mentes da Europa, registou numerosas receitas de vinho de víbora em inglês, alemão e latim. A obra Pharmacopoeia Londinensis, uma compilação oficial de tratamentos medicinais utilizados por médicos e boticários, incluía uma receita de vinho de víbora em pleno século XVIII. Dada a sua suposta capacidade de restaurar a pele manchada e «os espíritos animais», a população em geral tendia a considerar o vinho de víbora uma combinação de Botox e Viagra. Em 1633, Francis Quarles, em tom de gracejo, escreveu o seguinte: «Vinhos de víbora para tornar ousada a velhice/Para sentir de novo a luxúria e as chamas da juventude».
John Jones, na sua peça Adrasta (1635), associou de forma desaprovadora o vinho de víbora às bruxas e à magia negra, devido ao seu poder de transformar o corpo. Não admira que a peça nunca tenha sido encenada. Durante algum tempo, chegou mesmo a ser moda as mulheres da corte Stuart beberem um copo com regularidade.
Não havia, portanto, nada de particularmente exótico no vinho de víbora. Por que razão Kenelm o deu a Venetia? Talvez esta estivesse fisicamente fragilizada. Tivera cinco gravidezes em oito anos. O seu primeiro filho, a quem deram o nome do pai, nasceu depois de ela e Kenelm se terem casado secretamente em 1625. Ela entrou em trabalho de parto depois de ter caído de um cavalo no final da gravidez e, para manter o segredo da gravidez e do casamento, deu à luz em casa, apenas com a ajuda da sua inexperiente criada. O segundo filho de Venetia e Kenelm, John, nasceu em 1628, no dia em que Kenelm partiu para uma viagem de dois anos pelo Mediterrâneo. Depois de receber a notícia, Kenelm escreveu a Venetia do seu navio, dando-lhe autorização para comunicar o casamento, e levantou âncora, deixando-a com dois filhos pequenos, mas sem o apoio financeiro, social e pessoal de um marido.
Após o regresso de Kenelm em 1630, Venetia teve três gravidezes nos três anos seguintes, duas delas com um fim trágico. O terceiro filho, que recebeu o nome do avô, Everard, morreu poucas horas depois de nascer, e ela perdeu os gémeos no sétimo mês de gravidez quando sofreu um aborto. Não surpreende que, depois de tantas provações físicas e emocionais, o «espírito animal» de Venetia estivesse em baixo.

Por outro lado, talvez Kenelm tenha dado regularmente a Venetia um copo de vinho de víbora para restaurar ou preservar a sua notável beleza. Venetia Digby fora considerada uma das mulheres mais belas de Inglaterra desde a sua adolescência. John Aubrey, um diarista e biógrafo do século XVII, descreveu-a como «aquela célebre Beleza».
Segundo Aubrey: [Venetia] tinha um rosto muito bonito e doce, cabelos castanhos escuros e delicados. Possuía uma constituição perfeitamente sã e forte, com boa pele e bem proporcionada, muito inclinada para a extravagância (quase integral). O rosto era oval e curto, com sobrancelhas castanhas-escuras, muito doces, assim como a abertura das pálpebras. A cor das faces era exatamente a da rosa-damascena, que não é nem demasiado intensa nem demasiado pálida.
Alguns dos biógrafos de sir Kenelm assumem que ele valorizava tanto tais deslumbrantes traços físicos que a medicou para os proteger. De acordo com John Fulton: «Para preservar a beleza da mulher, dedicou as suas energias dinâmicas a fazer experiências com ela, inventando novos cosméticos de ingredientes duvidosos, nutrindo-lhe a força debilitada com sopa de caracóis e capões alimentados a carne de víbora».* Numa outra perspetiva, os biógrafos de Kenelm sugerem que talvez Venetia valorizasse tanto a sua aparência que pedira algo para a manter. Ambos os cenários são certamente plausíveis, mas os indícios não confirmam nenhum deles. Na verdade, os indícios revelam que os biógrafos e os historiadores se enganaram bastante acerca da relação do casal.
Desde logo, não há provas de que algum deles valorizasse a aparência de Venetia em detrimento do seu carácter. Uma carta ardente que Kenelm lhe escreveu da faculdade exalta a mente e temperamento de Venetia, mas nada diz sobre a sua beleza física. Prometendo que tinha apenas intenções honrosas, Kenelm escreveu: «Tendes um espírito demasiado masculino para vos assustardes com sombras, depois de as terdes devidamente analisado e considerado». E acrescentou: «O meu melhor anjo guiou-me para o que eu tinha razões para admirar e amar excessivamente.

E agora, em vós, ele mostra-me tantas excelências que eu nunca conheci antes em nenhuma mulher que eu juro, Senhora, que todo o meu amor anterior foi como uma aprendizagem para me ensinar a amar-vos e valorizar-vos devidamente». Depois da morte dela, em 1633, as descrições que Kenelm fez de Venetia debruçaram-se sobre o intelecto, personalidade e piedade da mulher. Numa carta enviada ao irmão, escreveu: «De facto, a grandeza da mente dela estava para além do que alguma vez vi em alguma mulher ou homem». E recordou: «Muitas vezes, com grande prazer, ouvi-a falar seriamente dos humores e ações de outras pessoas, sobre as quais fazia observações fortes e admiráveis, levando-me amiúde a reconhecer como inegáveis coisas que eu, até ela me abrir o entendimento, não havia considerado, embora tivesse mais conhecimento e mais familiaridade com essas pessoas do que ela». Em suma, como Kenelm escreveu, defendendo-a perante um amigo reprovador em Itália: «Ela foi a melhor esposa, a mulher mais corajosa. Tinha a alma mais virtuosa e singular e edificava mais com os seus bons exemplos do que qualquer outra mulher com quem eu alguma vez conversei». A própria Venetia também não parece ter sido particularmente vaidosa. Foi uma esposa exemplar durante o seu casamento (de acordo, naturalmente, com as expectativas do século XVII). John Aubrey, que se deliciava com mexericos maliciosos, escreveu que ela se comportava «de forma irrepreensível».
Com efeito, Venetia dependeu da sua beleza apenas durante um período breve da sua vida, embora reconhecidamente escandaloso. Algo que se pode afirmar sobre Kenelm e Venetia é que a relação de ambos foi sempre intensa. Conheceram-se quando eram adolescentes. Ele era três anos mais novo (tinha catorze e ela dezassete), mas era bastante inteligente e encantador. O facto de ele ser também alto e forte, com uma aparência espantosa, provavelmente não o terá prejudicado. A mãe de Kenelm desaprovava a relação: a família de Venetia, os Stanleys, era mais distinta do que os Digbys, mas não tinha muito dinheiro. Como o pai de Kenelm, sir Everard Digby, fora enforcado, arrastado e esquartejado por conspirar para fazer explodir o Parlamento e o Rei Jaime quando Kenelm tinha três anos, era bastante ultrajante dizer que a família de Venetia Stanley não era suficientemente boa.
À semelhança de muitos adolescentes, Kenelm encontrou formas de contornar a reprovação da mãe. Cortejava Venetia pessoalmente, quando tal era possível, e também através de cartas apaixonadas. Todavia, ela não se revelou de todo uma conquista fácil. Como ele próprio afirmou mais tarde, não houve amante que «alguma vez tenha trabalhado com mais paixão para conquistar [a sua amada], nem que tenha encontrado maiores dificuldades e oposições». Não obstante, Venetia acabou por se apaixonar por Kenelm e este, já com dezassete anos, convenceu-a a trocar promessas de que não casariam com outra pessoa (nem seriam infiéis um ao outro). Tratou-se de um grande compromisso para Venetia. Ela encontrava-se naquela altura da vida em que uma jovem fazia os possíveis para casar com um homem rico e com título — de preferência também jovem, bonito e de bom carácter —, e ali estava ela, a prometer a Kenelm que não casaria com mais ninguém. Devia estar loucamente apaixonada para fazer tal promessa, pois Kenelm estava prestes a embarcar no Grand Tour. O Grand Tour era um acontecimento habitual para os jovens nobres do século XVII. Com a supervisão de um adulto — um parente, um amigo da família, um tutor —, um adolescente como Kenelm viajava pela Europa, visitando os lugares, as cidades e as cortes para adquirir melhores maneiras, incluindo a fluência em várias línguas. Normalmente, demorava pelo menos dois anos, e muito poderia acontecer em dois anos. Mas Venetia fez a promessa, e Kenelm também, e lá foi ele.

As coisas começaram logo a correr mal. Pouco tempo depois de ter chegado a França, o jovem, charmoso e bonito Kenelm Digby recebeu uma proposta de casamento de Maria de Médici, a rainha viúva de França, que tinha idade suficiente para ser sua mãe. Quem dizia não a Maria de Médici tendia a meter-se em grandes e muitas vezes fatais sarilhos, pelo que Kenelm fingiu a sua própria morte e fugiu. O plano foi bem-sucedido. Todos ouviram dizer que Kenelm Digby morrera em França — incluindo Venetia.
Alguns biógrafos, como E. W. Bligh e Joe Moshenska, afirmam que ela demorou quase dois anos a saber que Kenelm estava vivo, mas isso é tão improvável que se aproxima do impossível. É certo que a comunicação à distância do século XVII era muito pior do que a atual, mas havia, ainda assim, muita interação entre a Inglaterra e a Europa. Kenelm não viajou incógnito quando fugiu de Maria de Médici e interagiu na estrada e em cada paragem com pessoas que poderiam entregar uma carta ou uma mensagem.
Esteve em Itália durante mais de dois anos, tempo suficiente para escrever a Venetia. Depois disso, não era segredo que se encontrava em Espanha com o seu tio, o conde de Bristol, a negociar o casamento do príncipe de Gales. Kenelm, agora no final da adolescência e a desfrutar de um período glorioso na Europa, simplesmente não se esforçou muito para comunicar com ela. Quanto a Venetia, não era idiota: percebeu o que se passava. Já não se sentindo obrigada pela promessa feita a Kenelm, envolveu- se com, pelo menos, um nobre (embora o grau de desenvolvimento seja um pouco misterioso). Segundo reza a história, quando Kenelm soube, atirou-se para o chão, uivando e chorando devido à traição. Oh, ser um inglês do século XVII, esperando que as mulheres sejam castas enquanto se decide traí-las por toda a Europa.
Após o regresso, a relação de Kenelm e Venetia foi profunda e irrevogavelmente marcada pelo silêncio dele durante o Grand Tour. Sem surpresa, embora os relatos variem, a maioria concorda que o reencontro em Londres ao fim de três anos foi atribulado. Os biógrafos masculinos de Kenelm têm atribuído o afastamento de ambos à má reputação dela, merecida ou não, mas esse diagnóstico só faz sentido se Kenelm não for responsabilizado pelo seu silêncio durante esses anos. Se ele for responsabilizado — como deve ser —, o comportamento dela é perfeitamente racional e razoável. Além disso, quando Venetia por fim aceitou retomar o contacto, Kenelm tentou tratá-la como uma cortesã. Todavia, ela exigiu-lhe que a tratasse como Venetia, a mulher inteligente e ponderada de uma boa família que ele cortejara com devoção e honra, e com quem praticamente prometera casar. Durante dois anos, travaram esta batalha. Kenelm oscilava entre o respeito e o desprezo.
Certa vez, entrou de forma sorrateira no quarto de Venetia enquanto ela dormia, despiu-se e deitou-se na cama com ela. Venetia conseguiu tirá-lo da cama, o que não foi fácil, tendo em conta o tamanho, força e indubitável resistência de Kenelm. Um biógrafo afirma que Venetia o repreendeu de modo tão duro que ele saltou voluntariamente da cama, jurando «nunca mais prestar um mau serviço ao seu amor por ela com tal comportamento atrevido e impróprio». Sejamos claros neste ponto. O «mau serviço» não foi prestado ao «seu amor por ela», mas a Venetia, e não é «atrevido e impróprio» entrar nu e sem ser convidado na cama de uma mulher adormecida para ter relações sexuais com ela — é uma tentativa de violação.
Caros leitores, ela casou-se com ele, mas nas condições que lhe impôs. Ao exigir que Kenelm reconhecesse quem ela era e o que lhe era devido, Venetia redefiniu os termos da relação e fez com que ele se apaixonasse de novo por ela. Quando ele começou a cortejá-la com seriedade, ela também se apaixonou de novo por ele. É certo que, tal como muitos maridos da sua época e classe, Kenelm não foi inabalavelmente fiel a nível sexual. No entanto, a relação de ambos era uma parceria muito para além do que a infidelidade sexual dele poderia dar a entender.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
Comentários