"É preocupante que se saiba mais sobre a temperatura no interior das estrelas do que sobre a temperatura no interior de um prato de soufflé bem apurado". A frase tem um pai: Nicholas Kurti químico húngaro ligado à Universidade de Oxford (falecido em 1998) que, corria a década de 80 do século XX, desabafava sobre a ausência da aplicação do método científico à gastronomia. Ou seja, questões tão simples como: a melhor forma de derreter o chocolate para uma mousse; o método mais eficaz para bater claras em castelo; continuavam a obter resposta numa base empírica, apoiando-se na experiência do dia a dia nas cozinhas.
Kurti viu a necessidade de "levar o laboratório para a cozinha", o mesmo é dizer compreender a química dos alimentos quando são confeccionados, de forma a dar uma resposta cientificamente fundamentada a perguntas como as atrás formuladas. Há toda uma vida na confecção dos alimentos muito para além dos processos visíveis ao olho humano. Toda a matéria é formada por elementos químicos e, obviamente, os alimentos também. Estes têm uma natureza complexa, com reacções a um nível microscópico, o mundo das moléculas.
"Quando no dia-a-dia, nas nossas cozinhas, aquecemos ao lume os alimentos, fornecendo-lhes calor estamos a actuar ao nível das moléculas. Aumentamos a sua velocidade, obrigando-as a colidir entre si. Estes choques alteram a estrutura molecular (a única ocasião em que não modificamos a estrutura molecular da matéria é quando ingerimos alimentos crus), criando novas moléculas e mudando a cor, o sabor e a textura dos alimentos. No fundo há reacções químicas". Quem o explica é Paulina Mata, professora e investigadora do Centro de Química Fina e Biotecnologia da Universidade Nova de Lisboa, que tem vindo a desenvolver estudos na área da Gastronomia Molecular.
Se por um lado este mundo está longe do alcance do olho humano, os seus resultados são bem perceptíveis à mesa quando olhamos, cheiramos e saboreamos as confecções. É aqui que se pode formular a questão: Até que ponto entrar neste mundo escondido em todas as cozinhas, em todos os alimentos e na forma como se combinam pode ajudar a melhorar, inovar e progredir os processos culinários? A resposta pareceu, há mais 20 anos, positivamente óbvia a Kurti, de tal forma que dedicaria uma boa parte da sua vida a tentar compreender a natureza dos alimentos. Não enfrentou a tarefa sozinho, pois encontrou num inquieto investigador francês o parceiro ideal para revolucionar a forma como se cozinham os alimentos, abalando muitos mitos ao fogão. Kurti aliou-se ao cientista francês Hervé This e, juntos, os dois homens debruçaram-se sobre mais de 10.000 receitas da cozinha tradicional, utilizando o método científico. Corria o ano de 1988; nascia a Gastronomia Molecular. Em breve os estudos de Kurti e This encontrariam eco noutros cientistas em diferentes países e, claro está, nos chefes de cozinha. Hoje em dia a Gastronomia Molecular chegou inclusivamente às universidades. Há cursos em Espanha, Alemanha, Itália, França, Austrália, Dinamarca e Suiça.
Gastronomia Molecular no nosso país:
Portugal não é excepção neste panorama da Gastronomia Molecular. Um grupo de cientistas tem vindo a interessar-se pela área e a colaborar com a Agência Ciência Viva, entidade integrada na Agência Nacional para a Cultura Cientifica e Tecnológica. Neste âmbito desenvolvem-se acções de divulgação de ciência como a "Cozinha é um Laboratório". No site da Agência Ciência Viva, o utilizador encontra inúmeros materiais de apoio (incluindo receitas) produzidos por investigadores durante as várias edições da iniciativa citada. Por seu turno os diferentes centros Ciência Viva espalhados pelo país organizam de tempos a tempos acções nesta área. É o caso da Fábrica Ciência Viva, em Aveiro, que leva a um púbico jovem, entre os 3 e os 16 anos, temáticas que vão desde "o fantástico mundo do leite", "A clara do castelo de chocolate". De forma lúdica alia-se a ciência à cozinha.
Para um público mais velho e profissionalmente ligado à cozinha, o Instituto Superior de Agronomia (ISA), em Lisboa, organiza acções de formação teórico-práticas sobre Gastronomia Molecular. A organização destas acções está a cargo de cientistas que integram a actividade "A Cozinha é um Laboratório". Foram precisamente alguns destes cientistas que, fora de portas, em Paris, deram a provar os resultados da reunião da Gastronomia Molecular à cozinha tradicional portuguesa. A representação portuguesa arrecadou o primeiro prémio, na categoria "amadores", no I Encontro de Ciência e Cozinha sob o tema "Mar Imaginário", que decorreu na capital francesa.
Maria Loureiro Dias, Catarina Prista, Margarida Guerreiro e Paulina Mata, investigadoras da Universidade Nova de Lisboa e do ISA, às quais se juntou Joana Moura, ganharam a prova com uma sopa de peixe; uma receita desenvolvida pelo chefe Luís Baena a que deram uma nova apresentação. Como nos diz Joana Moura, "foi um trabalho empreendido ao longo de vários meses. Pretendemos pegar numa sopa de peixe perfeitamente normal e servi-la de uma forma diferente. Depois de congelada a sopa é revestida por um alginato. O interior permanece líquido e coberto por uma camada gelatinosa. As "algas" introduzidas no preparo resultam da mistura do líquido que se desprende das amêijoas com o de espinafres e coentros. O agar agar vem dar a consistência desejada".
Um exemplo de como a Gastronomia Molecular se pode aliar à cozinha com tradições, melhorando-a nos processos. A este propósito. Diz Paulina Mata "A cozinha está sempre em evolução. O que é hoje a nossa cozinha tradicional não é a mesma coisa de há 40 ou 50 anos. Estamos a melhorar os resultados finais".
Desafios da gastronomia molecular:
De acordo com Paulina Mata, "tal como em todas as áreas da vida, não se pode parar e o conhecimento produzido pela gastronomia molecular permite evoluir e melhorar". Mas melhorar como? Pelo até agora exposto a resposta começa a parecer óbvia. Beneficia, por exemplo, o aperfeiçoamento das criações culinárias, o desenvolvimento de novas técnica culinárias, permitindo antever o comportamento dos alimentos. A Gastronomia Molecular permite demonstrar cientificamente se os procedimentos que aplicamos na cozinha ao longo de gerações são correctos, ou não. No fundo testam-se os alimentos, as receitas, procurando perceber quanto de verdadeiro e errado há no processo de elaboração.
Paulina Mata dá-nos um exemplo: "Há imensa confusão na forma como se procede quando se cozinham os legumes verdes. Tapa-se o tacho, ou não? Deita-se água fria, ou não? Junta-se bicarbonato? Um químico espanhol, que está a fazer um doutoramento supervisionado por Hervé This, estuda a influência de diferentes factores, quando se cozinha, na cor do feijão verde. Isto a um nível molecular. No fundo está a responder a questões como o da cozedura dos legumes". Por outro lado assistimos à introdução de novos ingredientes e de equipamentos.
Hoje em dia, ao lado dos ingredientes tradicionais vemos os chefes de cozinha a trabalhar com aditivos alimentares como os alginatos, o agar-agar ou azoto líquido. Estes aditivos, não constituem qualquer perigo para a saúde, são reconhecidos e enquadrados por legislação. A indústria alimentar utiliza estes ingredientes há muito. Por seu turno vamos encontrar os chefes de cozinha a trabalhar com equipamentos que até há algum tempo dificilmente associamos à cozinha, como por exemplo os maçaricos, balanças de precisão, evaporadores rotativos. Heston Blimenthal e Braham, desenvolveram uma panela que vira automaticamente a carne quando a temperatura no interior atinge determinada temperatura. O resultado é uma carne macia e cozinhada no ponto em menos tempo.
Jorge Andrade
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