Há excelentes e variados presuntos pelo mundo fora, mas temos na Península Ibérica (e em Portugal, especialmente) um autêntico tesouro ancestral, pelo menos desde os tempos da ocupação romana. Então, porquê ir mais longe?

Feche os olhos e imagine que põe na boca uma finíssima fatia de presunto de porco preto acabada de cortar... e sinta o aroma intenso, curado e persistente de um “bouquet” revigorante, um aroma ligeiramente salgado e acidulado envolto numa textura untuosa plena de sabores do bosque. Então, abra os olhos e aprecie a próxima fatia, que não será mais longa do que a primeira, nem menos fina, e verifique o tom de carne rosado-escuro, o aspecto marmoreado em tons de rubi brilhante, entrecortado por suaves linhas brancas de boa e exaltante gordura. Faça uma ligeira pausa e leve à boca um tinto jovem de Cabernet Sauvignon, por exemplo do Ribatejo, que sugira pimenta verde, ou então um Rioja tinto, um Crianza de dois ou três anos, mas não um Grande Reserva. É que a gordura do presunto – provocada pela bolota, que constituiu a alimentação do porco no terço final da sua vida –, essa gordura macia e perene do toucinho do porco preto, que nos enche a boca só de pensar nela, não alcança o prolongamento desejado se o vinho que a completa tiver muita madeira, taninos firmes ou grande volume. Por isso, o vinho deve ser leve, seco e com taninos discretos.

Pelos mesmos motivos, alcançando uma harmonização perfeita, poderia alcançar-se total prazer com um Sherry novo ou um Manzanilla, e mesmo com um verde branco seco e fresco. Este é o sentir sábio de Manuel Aranha, enólogo da Osborne/Taylors desde 2000, onde esteve intima mente ligado à produção de presuntos.

Ele que, em caso algum, escolheria um vinho do Novo Mundo (um vinho californiano ou australiano, por exemplo), com taninos domados e sedosos, por entender que esse género de vinhos é incompatível com um presunto de porco alentejano, também ele domado e sedoso. Ora sendo o efeito similar, esvai-se o prazer da de gustação... Se quiser optar mesmo por um tinto e estiver a provar um presunto de porco branco, que é mais seco e de gordura menos rica – eventualmente fumado e até com colorau –, obterá a ligação perfeita com um vinho do Dão ou da Bairrada, desde que seja relativamente jovem. Embora pelo mundo fora se encontre uma diversidade de raças de porcos dos quais se faz presunto e também formas múltiplas de o produzir, bem como de alimentar os animais, temos na Península Ibérica – e em Portugal, especialmente – um autêntico tesouro ancestral. Porquê ir mais longe se, de facto, pelos menos desde os tempos da ocupação romana nos actuais territórios de Portugal e Espanha, somos reconhecidos como produtores de muito e excelente presunto? E quando o presunto é de excelente qualidade, saboroso e aromático, atrevo-mo mesmo a ser fundamentalista: não vale a pena inventar, porque o presunto deve ser apreciado por si só, apenas na companhia de bom pão e de um vinho adequado. Já agora, não se limite a degustar o presunto, por que a paleta (a “mão” do porco), que é sujeita a idêntico processo de salga e cura, também é um manjar divinal...

PRODUCAO DE PRESUNTO COMO OS GRANDES VINHOS NAS ADEGAS...

 

Após o abate do porco, a perna é separada e comprimida, para eliminar restos de sangue que possam existir, limpando-se também os bordos do toucinho. De seguida, é refrigerada durante algumas horas, preparando-a para ser salgada.

É fundamental que o processo da salga seja feito a uma temperatura nunca superior a seis graus, entre quatro a seis dias. A ser essa a opção, é nesta fase que se condimentam as pernas, por exemplo com açafrão, cominhos e alguma pimenta. Depois, para que escorram os líquidos, são penduradas. A secagem natural do presunto inicia-se no começo da Primavera, preferencialmente num local em que os ventos circulem entre as janelas do respectivo compartimento a baixas temperaturas (entre três e cinco graus), o que favorece a desidratação. Por isso, as localidades com alguma altitude, como a vila alentejana de Barrancos ou grande parte das terras do distrito de Bragança, são naturalmente tão adequadas a esta produção. Em alternativa, a cura deverá prosseguir em câmaras frigoríficas, por mais dois meses. Nesta fase, os presuntos perdem cerca de 10 a 15% do seu peso inicial. No Verão, as elevadas temperaturas fazem suar o presunto e contribuem para que o ácido oleico se infiltre nas fibras musculares, retendo – ao longo de toda a peça – o seu aroma característico. Se o presunto for de fumeiro, é nesta altura que a peça leva um pouco de fumo, mas apenas por alguns dias.

Tal como os grandes vinhos nas adegas, também o presunto repousa longamente no silêncio e escuridão dos secadeiros. Assim, e durante o Outono, com uma temperatura média de 10º a 12º C e uma humidade relativa aproximada de 80%, vão aparecendo alguns fungos e leveduras, que são fundamentais para o desenvolvimento do processo micótico. Gradualmente, o presunto vai “amadurecendo”, o que permite a concentração de aromas anteriormente retidos na sua carne, conferindo-lhe um “bouquet”, sabor e textura inconfundíveis. Um presunto de porco ibérico de bolota chegará ao final do seu processo de cura com um peso entre os cinco e os oito quilogramas. Embora possam existir algumas produções “caseiras” elaboradas de acordo com os recomendáveis padrões higiénico sanitários e que resultam de um inequívoco “saber fazer” transmitido de geração em geração familiar, cumpre dizer que boa parte das produções não profissionais não garantem qualidade.

O mesmo se deve dizer de alguns presuntos industriais, cujos preços “demasiado” bons escondem deficiências na alimentação condigna dos animais ou nos processos de salga, fumo e de cura. Ora, o presunto pode ser uma iguaria sã e, porventura, um alimento nutricionalmente tão completo quanto o prazer gastronómico que nos proporciona. Sem qualquer ordem de preferência e sem querer ser exaustiva, aqui ficam algumas sugestões de marcas que garantidamente nos deliciam. Das portuguesas, as marcas Beloteiros, Porco Preto ou Barrancarnes; das espanholas, os presuntos Cinco Jotas, Julian Martin, Matorra ou Joselito. Delicie-se!

Revista Wine/Texto: Isabel Sottomayor: Fotos: IMATEXTO/IMTX

 

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