Joana Maçanita é enóloga, produtora de vinhos, consultora e formadora. Uma inspiração para quem, crescendo num mundo de enólogos e de pessoas ligadas ao mundo dos vinhos, persevero, insistiu, estudou e ganhou o seu lugar. Uma mulher que fala com paixão do mundo dos vinhos, descomplicando-o e subtraindo-lhe muitos mitos. Os mesmos princípios que transpôs para o seu primeiro livro, “Branco ou Tinto?”, obra amadurecida durante cinco anos.
A autora não quer tirar ao vinho a magia, ou a carga social, simbólica, cultural que traz. Quer, contudo, aproximar os actos de escolher, comprar, cuidar e beber um vinho acessíveis ao comum mortal, à pessoa que faz as perguntas: “Como abro uma garrafa?”, “Que copo devo escolher?”, “Quais as temperaturas para beber os vinhos?”, “Devo, ou não, decantar?”, “Como construo a garrafeira?”. Isto sem nunca esquecer um princípio: acima de tudo devemos gostar de um vinho e tirar prazer da sua partilha.
A história da sua entrada no mundo dos vinhos pode servir de inspiração aos mais tímidos ou perdidos numa área tão vasta. Quer partilhá-la connosco?
Sim, mas deixe-me recuar um pouco. Em termos académicos entrei no Instituto Superior de Agronomia a conselho do meu pai. Comecei no curso de Produção Animal. No final do primeiro ano percebi que não era bem aquilo que queria. Acabei por transitar para Engenharia Agronómica. Venho de uma família onde se acredita que devemos ser patrões de nós próprios. Seguindo essa máxima, com 21 anos, enquanto frequentava a faculdade, comecei a fazer estágios de vindima no Alentejo, no projeto Fita Preta Vinhos, com o meu irmão, o António Maçanita.
Fiz isto durante seis anos. Nessa época, era muito comum um convívio de final de dia com vinhos. E, claro, as conversas giravam em torno das apreciações ao produto, muitas vezes com vocabulário técnico, elaborado. Todas estas pessoas eram mais velhas do que eu, com experiência na área. Logo, não cresci com os enólogos da minha idade. Quis saber, perguntei, insisti. Apesar de podermos dizer que há uma componente inata na propensão para se perceber um vinho, julgo que também aqui podemos aplicar a máxima 20% de inspiração, 80% de transpiração. E também há questões de ordem lógica. Sabemos, por exemplo, que um vinho tinto não vai cheirar a limão ou que um vinho mais velho vai ter menos fruta.
A Joana fala na transpiração, no fundo no esforço e na persistência. No seu caso levou-os longe, até ao outro lado do Globo?
Em 2006 embarquei numa aventura e fui para a Austrália, para McLaren Vale, uma região vinícola no sul do país. Quis aprender a fazer vinhos brancos. Fui para uma adega com dez enólogos, trabalhava com todos eles e com metodologias diversas. Foi uma experiência enriquecedora. Em 2007, eu e o meu irmão, criámos a empresa de Consultoria, a WineID. Começámos a dar apoio a produtores. Há muitas pessoas no nosso país interessadas em produzir vinho. No nosso caso, damos apoio em todo o processo, da instalação da vinha, à escolha da exposição solar, as mondas, à enologia, construção de adegas. Cuidamos também de toda a criação do conceito, a colocação do vinho no mercado, a estratégia de preço, a exportação. É muito engraçado, porque as pessoas quando querem fazer vinho, tendem a afastar a ideia e a imagem do produto da sua própria identidade. O nosso lema é “transformamos ideias em vinho”, ou seja adequamos o estilo do vinho ao perfil, história da pessoa. Um consultor é isso mesmo, alguém que ajuda o projeto, não ajuda a fazer o vinho. É importante reavivar algumas coisas perdidas, cria identidades.
O que a levou a escrever o seu primeiro livro, “Branco ou Tinto?” Há muitas publicações no mercado mas poucas destinadas ao principiante?
Sim, esse foi o foco. Em Portugal vigora um pouco a ideia de que quem sabe de vinho é rei. Por vezes há uma atitude quase intimidatória por parte dos detentores desse saber. As pessoas fazem-me com frequência perguntas sobre os vinhos. Por exemplo sobre se se guarda, ou não, um determinado vinho. Essas dúvidas levaram-me a pensar em escrever um manual prático, com uma linguagem acessível e muito esquemático. Ou seja, há cinco anos que preparava este livro. Repare, é preciso responder às coisas certas. Sendo eu técnica, a tentação é ir mais longe. O livro obrigou a um processo de contenção, esclarecer aspetos tão simples como a abertura de uma garrafa de vinho sem partir a rolha, ou mesmo, como extrair a rolha de uma garrafa de espumante. Confesso que quando iniciei o livro pensei no público feminino. Hoje em dia, felizmente, as mulheres estão muito mais informadas e audazes no que respeita a vinhos.
No início do livro apresenta-nos um quiz com algumas questões. Como chegou a esta fórmula para traçar os perfis de consumo?
Regra geral, o estilo de vida de uma pessoa reflecte-se no tipo de vinho que aprecia. Pessoas mais arrojadas na vida, até mesmo na alimentação, procuram vinhos diferentes, alternativos. O quiz coloca 11 perguntas chave sobre preferências alimentares e, partindo destas, traço os perfis, por exemplo, o consumidor pode ser um “Wine Rocker”,ou seja um grande experimentador de vinhos.
Quando falamos de vinhos há muitos mitos envolvidos. Quais são aqueles que estão mais enraizados, sem serem necessariamente verdade?
Dou-lhe um exemplo comum, o de decantar um vinho velho. Acredito na química do vinho, lido com ela diariamente. Diz-se que se deve decantar um vinho sempre que ele é velho. Mas vejamos, a decantação é um processo físico que separa sólidos de líquidos. Ou seja, tem cabimento quando existem sólidos na garrafa. No caso dos vinhos velhos, estes já sofreram uma evolução na garrafa, têm pouca fruta, os chamados aromas primários, os primeiros a “fugir”. Se vamos decantar o vinho, expondo-o ao ar, dá-se a oxidação e estes aromas mais sensíveis escapam-se. Se tenho um vinho antigo e este não tem depósito tenho de aproveitar a pouca fruta que tem. Deixemo-lo, então, decantar no copo, enquanto o apreciamos. Não o vamos beber de um gole [RISOS].
Ou seja, há coisas que a irritam nos hábitos associados ao vinho, certo?
Outro exemplo, as pessoas agarrarem no corpo do copo o que é errado. Não é elegante, aquece o vinho, suja o copo. Devemos agarrar o copo pelo pé. Sempre que posso faço este reparo.
Temos de admitir que é um mundo repleto de regras, rituais. Por onde começar?
Acima de tudo temos de nos divertir com os vinhos. Cada um deve perguntar-se: “o que é que gosto?”. Tenho de perceber o que gosto e para isso há que fazê-lo por tentativa/erro. Começar por conhecer as regiões vitivinícolas, aprender a combinar o vinho com a comida, partilhá-lo com os amigos. Acabamos com o tempo por abarcar mais vinhos. A partir desse momento tornamo-nos embaixadores desses vinhos.
Podemos ter o melhor vinho do mundo, mas se o tratarmos mal matamos o produto. Quais são os principais erros em que podemos cair?
São vários, por exemplo as temperaturas de consumo. No inverno não provo os vinhos da adega, eles estão a 11 ºC nas cubas, são intragáveis. Meto-os numas garrafas, levo-os para casa e deixo-os aquecer. No verão, com os brancos, temos outro erro, enfiamo-los dentro do frapé e ficam congelados. Toda a aromática fica escondida. Os elementos voláteis precisam de calor e temperatura, mas nunca em excesso, pois os vinhos ficam moles. Devemos adequar os vinhos à temperatura exterior.
No seu livro, a Joana chega ao pormenor de nos explicar qual o copo mais indicado para consumir vinho.
Sim, no livro explico qual é o formato certo do copo. Há subtilezas dependendo do tipo de vinho, tinto, branco ou espumante. Para apreciarmos um vinho em toda a sua exuberância temos de ter o copo certo. Há um formato básico, em tulipa, e basta. Esqueçam os milhares de copos. Já há tantas variáveis não vamos complicar. Outro problema recorrente com os copos caseiros é o cheiro intenso a armário, a detergente ou a pano da louça. Uma das dicas fundamentais é lavar bem os copos. Se se fez um esforço grande na compra, guarda e decantação do vinho, não vamos estragar com o copo.
Vamos imaginar que quero iniciar uma garrafeira. Que vinhos me aconselharia reunir primeiro?
Neste âmbito terei de ser um pouquinho exigente. Tenho de comprar mais do que uma unidade do vinho que quero guardar. Se o vinho se presta a guarda, claro. A melhor maneira é prová-lo para lhe perceber o potencial. Um vinho com estrutura, madeira, com muita concentração tem muita capacidade de envelhecimento. Também podemos ir pelos clichés, o vinho caro é bom o que, a maior parte das vezes, se aplica.
Para apreciarmos um vinho em toda a sua exuberância temos de ter o copo certo. Há um formato básico, em tulipa, e basta. Esqueçam os milhares de copos.
No seu livro dedica atenção ao vinho e à harmonização com comida. Em seu entender é neste casamento que o vinho verdadeiramente se revela?
Dou aulas na Escola de Formação Turística e Hoteleira dos Açores e faço harmonizações com dezenas de pratos. Começo por perguntar aos meus alunos com que pratos combinariam os vinhos em questão. Eles dão as suas sugestões e, posto isto, o chefe traz a comida. Vamos provar cada um dos pratos com os vinhos com eles casados. A degustação comprova ou desmente a ideia inicial. Há vinhos que exultam com um prato. Agora, se me pergunta se pessoalmente gosto de beber um bom vinho sem o acompanhar com comida, claro que sim. Mas é mais encantador combinar com a comida. Um dos conselhos que dou é o de criar todo um acompanhamento de uma refeição só com vinhos, desde os espumantes, aos rosés, aos brancos jovens, aos tintos maduros. Há todo um leque de vinhos para combinar com a comida, com o momento, com a estação do ano.
E partilhá-lo…
A magia do vinho está em tudo isto, posso escolher em função do momento que estou a viver.
Joana, mudemos de assunto, os vinhos nacionais estão a ser bem tratados pelos portugueses?
A minha geração, pessoas na casa dos 35 aos 40 anos estão bem informadas, com vontade de experimentar e explorar tudo e, considero, estão a tratar melhor os vinhos. Agora, genericamente, no dia a dia, há interesse mas as pessoas ainda não têm as ferramentas todas. Ou seja, é preciso passar informação e acessível. Dai este livro, com esquemas e informação muito directa.
E a fileira dos vinhos está a comunicar bem com o consumidor?
Há um esforço enorme por parte dos produtores para partilhar o seus vinhos com o consumidor. Por isso há cada vez mais provas. Um produtor chega a deslocar-se centenas de quilómetros para falar dos seus vinhos com dez ou 15 pessoas. Há uma ligação estreita entre produtor e consumidor. Veja-se o enoturismo. O consumidor não quer só abrir a garrafa, quer conhecer de perto quem cuidou daquele vinho.
Falando neste saber fazer dos vinhos, a Joana também é enóloga e produtora. Uma aventura que começou em 2011 no Douro. Como está a correr?
Um produtor duriense, o projeto Mãos, convidou-nos para uma parceria. Fui para o Douro, uma região que não conhecia a fundo, apesar de lá ir com frequência. Fiquei encatada com o território, os vinhos e o potencial que têm. Quis fazer um vinho e convidei o meu irmão António. Durante cinco anos, até ao passado ano, procurei as vinhas ideais. Repare, no Douro a viticultura é muito complexa, com diferentes temperaturas, solos, entre outros factores. Tivemos de fazer muitas experiências até estabilizar. Actualmente temos vinhas distribuídas pelas três sub-regiões do território e produzimos os vinhos Maçanita Tinto e Maçanita Branco.
Entretanto, o ano passado conseguimos levar a empresa para outro nível e todas as castas são vinificadas separadamente. Ou seja, à partida conhecemos o potencial de cada uma. Dai apareceram dois vinhos, o Gouveio da Joaninha e a Malvasia Fina do António. Correu lindamente. Acresce que com a minha perspetiva naturalmente mais feminina, criei um vinho, o Touriga Nacional em Rosé. É extremamente floral. Correu bem e já esgotou.
Há dois anos começámos a trabalhar com uma vinha ancestral, muito interessante, no concelho de Alijó que é dos pais do chefe André de Magalhães. Fizemos ali uma parceria e vamos lançar em janeiro de 2017 um vinho em pequena quantidade, mas muito interessante.
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