Quem entra no Farta Brutos, na Travessa da Espera, no Bairro Alto, sabe, de imediato, que entrou num espaço recheado de história. As paredes, forradas com fotografias que ilustram a passagem, por ali, de figuras nacionais e internacionais, expõem ainda livros e a garrafeira do espaço. Ao canto, vê-se uma mesa com imagem do escritor José Saramago. Quem por ali passou e o que se viveu no estabelecimento, surge agora em livro,"Farta Brutos - Uma mesa portuguesa", num relato em discurso direto do fundador Francisco Oliveira, editado pelo filho, atual dono do estabelecimento, e por um amigo, um ano após a sua morte.
Francisco Oliveira, o famoso “Oliveira”, dono do Farta Brutos, e anterior empregado do Tavares Rico, deixou ao filho, Rogério Oliveira, e ao amigo, Ivan Dias, uma entrevista feita em vida onde, pela primeira vez, revelou as inúmeras histórias que fizeram do Farta Brutos um dos mais icónicos restaurantes lisboetas do último século.
As famosas pataniscas de bacalhau, hoje apelidadas de Pataniscas à Saramago, as Sardinhas à Cardoso Pires, ou o Arroz de Línguas de Bacalhau, foram alguns dos pratos que levaram muitos dos escritores, fadistas, artistas, políticos, jornalistas, empresários, entre outras figuras da sociedade portuguesa e internacional, ao Farta Brutos. Mas Francisco Oliveira foi além do serviço e da gastronomia lusa, fazendo história com um espaço que seria, hoje, mais eficaz que qualquer rede social.
Amigo de Saramago, de Pilar del Rio, de Carlos do Carmo, da Mariza, de Fausto Bordalo Dias, de Alçada Batista, de José Cardoso Pires e de tantos outros que não dispensavam dois dedos de conversa seus e uma boa refeição no Farta Brutos, Francisco Oliveira tinha em si a capacidade de unir pessoas e conversas à volta da mesa. Sempre serviu famosos, mas nunca lhes pediu um autógrafo.
Francisco Oliveira começou a sua carreira na restauração no famoso Tavares Rico que o viu crescer. Passou pelo Gambrinus, pelo Tágide, mas tinha a ambição de ter o seu próprio restaurante. O Farta Brutos surge na sua vida após ter sido comprado pela sociedade que detinha o Tavares Rico, passando a chamar-se, então, Tavares Pobre.
“Venho para o Farta Brutos quando o Fernando Lopes se chateou com isto. Não correspondeu à expectativa que ele tinha desses clientes e alguns ditos fascistas aderirem completamente a esta ideia de passarem a frequentar o Farta Brutos. Eu já lhe tinha manifestado interesse de um dia arranjar uma coisinha para mim e ele disse “olha que eu vendo-te o Farta Brutos. Arranja dinheiro, arranja um sócio!”, explica, na entrevista editada em livro, Francisco Oliveira.
“E foi quando eu falei com o Ramiro e combinamos. Ele também andava com essa essa expectativa de arranjar uma coisinha. Mas faltava o dinheiro! (…) todos os dias almoçava lá um dos patrões do Orey Antunes, o senhor Salvador Antunes. E ele também tinha a ideia de ter um ´restaurantezito`. E disse “se isto se concretizar vocês vão já lá implementar um prato que é o Bacalhau à Brás”.
Naquela altura não se falava. Era uma novidade. Ele lá nos pediu para apalpar o terreno e ver quanto é que aquilo custava. Ele ia ser o nosso sócio”, explica Francisco Oliveira. “Acho que 1990 ficamos definitivamente com isto. Foram cinco anos para comprarmos as cotas e mais cinco para comprarmos o espaço. A comida sempre foi ótima e começamos a apanhar a emergente classe média. E foi nessa gama que o Farta Brutos funcionou nos trinta anos seguintes...”, acrescenta.
“Falar do Farta Brutos é regressar à infância à casa do pai, do tio Ramiro, que não o sendo de sangue, era de coração. O Farta Brutos foi sempre uma casa de família com portas abertas onde o cliente é um amigo, foi sempre isto que ouvi, e vi o meu pai ser mestre”, refere Rogério Oliveira, filho e atual proprietário do Farta Brutos.
“Passei a almoçar no mesmo sítio que o Saramago, o Alçada Batista, o Urbano Tavares Rodrigues e às vezes também o José Cardoso Pires, que habitualmente era mais noctívago. Ver aquelas figuras era, ao início, intrigante e mais tarde sedutor. Quando o Ramiro partiu estive mais de um ano sem pôr lá os pés, aquilo era acutilante imaginar chegar aquela casa e não o ouvir dizer “então ó Puto!”. O meu pai ficou sozinho sem o amigo e irmão e lá fui eu chamado pelos mistérios da vida para continuar o Farta Brutos ao seu lado. Quando dei por mim estava eu sozinho sem os dois, sem o meu pai, o meu chão. Não serei nunca como eles, não o poderei ser, mas o Farta Brutos segue com o mesmo espírito e lá o levo eu, ainda protegido pela Fernanda, oh não tivesse eu tido bons mestres!”, conta Rogério Oliveira.
“Lembro as rezas gastronómicas sempre cómicas e as graças dadas antes de uma bela cabeça de pescada cozida que ele sempre tinha o prazer de me ver comer... Isso e as terrinas inteiras de sopa nos meus períodos vegetarianos que muito o arreliavam... abria a porta e gritava para a rua “Venham ver, venham ver: o homem que come uma terrina inteira de sopa!”. Era também na rua, sentado à porta e com a vinha como cenário, que pouca uva dava, mas conferia alguma patine à fachada, que, a ler o jornal ou simplesmente a ver quem passava, ia discorrendo estórias com os populares que por ali deambulavam e o admiravam”, refere Ivan Dias, amigo de longa data da família Oliveira.
“A conversa que neste livro está registada aconteceu um ano antes do Oliveira partir para a derradeira viagem. Sempre tive a sensação que de fato as pessoas vivem eternamente entre nós se delas ficar memória viva quotidiana. Uns dias depois da partida sonhei com ele. Como sempre acontecia entre nós a conversa foi rápida concisa e direta. Sem rábulas. Perguntou-me ele “Ficou tudo bem não foi? Achas que já me posso ir embora? Agora é convosco! Até logo!”.
Sobre a forte amizade com José Saramago, Francisco Oliveira conta, no livro, que “Quando abri o Farta Brutos ele apareceu-me lá sozinho. Escolheu aquela mesa do canto sempre de uma enorme reverência e educação. Sentou-se, pediu umas pataniscas e meia garrafa de vinho tinto. Trazia um pequeno livro com ele e passou a refeição toda a comer e a ler. E a partir daí passou a aparecer quase todos os dias. Então a nossa ligação estreitou-se e cresceu. Quando ele morreu deixou antes indicações à Pilar para trazer a família toda aqui a jantar porque ele sabia como iam ser as coisas e que as cerimónias fúnebres seriam aqui. Eram mais de dez pessoas e vieram conhecer o Farta Brutos. Era um dos últimos desejos dele. Nessa manhã fui ao velório dele e quando tive que escrever no livro de condolências não sabia o que havia de dizer e então lembrei-me de lhe escrever “senhor Saramago, onde estiver, se precisar de umas pataniscas, escreva-me!”. Francisco Oliveira morreu passado pouco tempo e pelo Farta Brutos conta-se que foi levar as prometidas pataniscas ao Saramago.
O livro está à venda em exclusivo no Farta Brutos pelo preço de 25,00 euros.
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