
Na paisagem do Lago Léman, entre águas tranquilas e montanhas de recorte abrupto, um escritor de sucesso vive no limite até à queda que lhe é fatal. Chama-se Marceau Miller, e a sua vida, marcada pelo desaparecimento da irmã duas décadas antes, é narrada como se o último manuscrito fosse também a sua confissão. A trama em torno do livro O Mistério de Marceau Miller (edição Casa das Letras) leva-nos ao encontro de um protagonista audaz, "seja a pilotar o seu Savage Bobber ou a escalar de mãos nuas as montanhas que rodeiam o Lago Léman", lemos na apresentação à obra. Relata-nos a mesma sinopse que "o escritor não para de desafiar o perigo até à queda fatídica. Do cume do Dent du Vélan, uma silhueta contempla o seu corpo esmagado no chão".
O autor que assina o romance partilha o mesmo nome do protagonista. Marceau Miller "nasceu provavelmente em 1978, trabalhou como argumentista de televisão e publica agora pela primeira vez um livro com este nome. Vive em França e regressa regularmente ao Lago Léman, cenário central do enredo". A coincidência entre autor e personagem tem alimentado a curiosidade em torno da obra e fez parte da estratégia internacional de divulgação.
De acordo com a agência literária 2 Seas, que representa a obra, o livro foi apresentado na Feira de Frankfurt em 2024 e antes mesmo da publicação em França já tinha sido vendido a várias editoras, entre elas Einaudi Stile Libero, em Itália, Maeva, em Espanha, Suhrkamp/Insel, na Alemanha, e Blackstone Publishing, que assegurou a edição para Reino Unido e Estados Unidos. A revista People confirmou que a tradução inglesa está prevista para 2026. Em França, o livro entrou na shortlist do Prix Maison de la Presse em 2025, e a revista Femina noticiou que uma adaptação audiovisual se encontra em preparação.
Do livro, publicamos o excerto abaixo:
A vida retrai-se ou expande-se na proporção da nossa coragem.
Anaïs Nin
Prólogo
Um clarão volteia no meu cérebro, uma pancada violenta no meu crânio desequilibra-me. Estou duzentos metros acima do vazio, escalo uma parede rochosa que conheço bem. As minhas unhas arranham o granito, as minhas mãos soltam-se. Nesse momento, compreendo que tudo acabou. Por gosto pelo desafio, por orgulho talvez, sempre escalei com as mãos nuas e sem corda. Sabia que um dia iria pagar o preço.
Primeiro, vejo o céu. Depois, cem metros de parede desfilam num abrir e fechar de olhos. Mal consigo distinguir a silhueta que desaparece atrás do cume que eu estava prestes a alcançar. Aquela silhueta é-me familiar. Ela acaba de provocar a minha queda, no vazio, e eu vou morrer. Um pensamento apazigua-me estranhamente: vou juntar-me à minha irmã.
Já passaram vinte anos desde que ela partiu; esta manhã, quando me levantei, estava longe de imaginar que iríamos encontrar-nos hoje.
Chamo-me Marceau Miller e sou um romancista de sucesso. Amanhã, poderão ler na minha página da Wikipédia, logo abaixo da linha «Nascimento»: «Morte: 16 de maio de 2021 (aos 40 anos)». A ironia é que passei anos a escrever como se cada dia pudesse ser o meu último. Deixo atrás de mim o manuscrito mais importante da minha vida. Como se uma parte de mim tivesse previsto este momento, antecipando o encontro imprevisível com o destino. A ceifeira não nos envia uma carta registada para nos avisar do dia e da hora da nossa morte. Deixo-o, à Sarah, aos outros. São livres de fazer com ele o que puderem. Eu devia-lhes a verdade.
O meu corpo flutua no ar, já não tenho controlo sobre nada. O chão aproxima-se a uma velocidade assustadora. O meu coração enlaça os meus filhos, a Hermione, o Benjamin, e a minha mulher, a Sarah, com quem tudo construímos.
Vejo a minha pick-up estacionada junto à parede de rocha e apercebo-me de que vou despenhar-me mesmo ao seu lado. Nada mais cruza a minha mente. E, no entanto, numa situação como esta, parece que podemos ver toda a nossa vida a desfilar diante dos nossos olhos. Já todos nós tivemos este pesadelo assustador: caímos no vazio, sem nada que nos segure. Acordamos alagados em suor e com o coração prestes a explodir, com uma sensação de mal-estar que nos acompanha durante horas.
Sempre me perguntei se o nosso cérebro se desliga antes da colisão fatal. Dentro de algumas centésimas de segundo, sabê-lo-ei.
Cinquenta metros.
Dez metros.
Escuridão.
Primeira Parte
A Queda
1
Sábado, 15 de maio de 2021
O dia anterior ao da morte de Marceau Miller
Instalada na cadeira de baloiço da varanda da casa de campo, levanto os olhos do romance que me absorvia tanto. O meu chá ainda fumega. É aqui que gosto de estar, diante do Léman, o meu lago, como se ele me pertencesse. Em cada uma das histórias que o meu marido escreve, não há qualquer indício da tempestade que irá abater-se sobre as suas personagens. Muitas vezes, é dissimulada, atinge-nos de forma abrupta. Bebo um gole do meu Saint James, um chá preto encorpado com notas de chocolate, e pouso a chávena. Este é o seu vigésimo livro, e ainda consegue surpreender-me. Não compreendo tudo no Marceau, mas tenho de lhe dar crédito por uma coisa: o seu sucesso é merecido. Ele domina o suspense como ninguém. Demasiado, de facto. Em todo o lado, a toda a hora.
O rugido de um motor distrai-me definitivamente da minha leitura. Uma embarcação aproxima-se do pontão, ao fundo do jardim. Fiz-lhe a manutenção na semana passada,
faz parte da frota de barcos que possuímos, juntamente com a Karen, a minha sócia. Esta pequena lancha não passa de uma casca de noz mal recuperada, que nunca ousaríamos sugerir aos nossos clientes. Mas faz a alegria dos nossos filhos. Por vezes, uso-a para ir para a agência, ao longo da margem do rio até Yvoire. Demora um quarto de hora mais do que de carro, mas é tão prática para transportar o equipamento como a velha pick-up do Marceau.
O Benjamin está aos comandos da lancha. Com dez anos, já a manobra bem, mas aproxima-se do pontão um pouco depressa demais para o meu gosto. O Marceau agita os braços. Deve estar a pedir-lhe para abrandar. Sem querer, deixo escapar um suspiro enquanto o barco desliza suavemente ao longo do pontão. Eles aperceberam-se da minha presença.
Acenam-me os três. Sorrio e retribuo o gesto. A Hermione, a mais velha, de pé na proa do barco, salta para o desembarcadouro e apanha a corda de amarração que o pai lhe atira. Mantenho-me atenta à manobra. O pontão sobre estacas não é muito largo; as suas longas pernas de madeira afundam-se nas profundezas para se enraizarem em blocos de betão embebidos numa mistura de lodo e seixos verdes. Nesta altura do ano, quando o Sol ainda não está muito quente, as ripas de madeira não escorregam, por isso está tudo bem. O Benjamin desliga o motor e junta-se ao pai e à irmã.
Volto a pousar o meu livro sem sequer pôr o marcador. Memorizei o número do fólio. Quarenta, a minha idade e a do Marceau. E na página 40, as coisas já correm mal para as
personagens. Suspeito que seja apenas o início.
Levanto-me e espreguiço-me. A sombra da pérgula é fresca nesta varanda construída pelo meu avô, marceneiro – o seu último trabalho antes de desaparecer subitamente há cerca de dez anos. Este revestimento exterior da casa, parcialmente coberta de vegetação, dá ao sítio um aspeto de casa de férias. O jardim estende-se por quase oitenta metros de comprimento, rodeado por um bosque deixado no seu estado natural e uma sebe também deixada à sua sorte. No início da primavera, graças à proximidade do lago, o relvado mantém-se verde durante muito tempo. Foi recentemente cortado e é bordejado na margem por uma franja de areia cinzenta e de seixos. Dirijo-me para as crianças.
O Benjamin começa logo a contar-me as suas aventuras enquanto corre na minha direção, mas está muito longe, não consigo ouvir nada. A Hermione vem com o pai, carre-
gados com o equipamento de mergulho.
– O pai e eu descemos até aos cinco metros! Vi um corégono deste tamanho!
Os braços estendidos do meu filho parecem demasiado curtos para o enorme peixe que ele viu no lago. O Marceau chega até junto de mim e beija-me na testa. Os seus lábios
ainda trazem a frescura do Léman. O Benjamin puxa-o pela manga para ele confirmar a sua história de ter encontrado um milagre de escamas brilhantes. A Hermione surpreende-o ao enfiar-lhe na cabeça o boné que ele deixara cair atrás de si. Nesse momento, sinto a fragilidade da felicidade – tão fugaz como um peixe que desaparece nas profundezas. Sinto
uma vertigem, tomo consciência de tudo o que me é mais caro e da dor que sentiria se perdesse um deles. A felicidade estende-nos a mão sem aviso. Pode retirá-la a qualquer
momento.
– Sarah?
O Marceau sorri-me e, depois, afasta-se para descarregar o equipamento de mergulho. Cruzo o meu olhar com o dele, parece-me ler aí o que sinto. Mas ele, melhor do que ninguém, conhece o preço e a impermanência destes momentos. Ele que já juntou tantos fragmentos depois de instantes de felicidade desfeitos. Faz-me lembrar aquela arte japonesa
que repara as cerâmicas partidas, a kintsugi.
Quase consigo seguir com o meu dedo as cicatrizes douradas que as suas memórias deixaram nele.
Sábado, 15 de maio de 2021
O dia anterior ao da morte de Marceau Miller
O grande ponteiro do relógio da sala de estar ainda não marca as 20h00. O seu tiquetaque familiar desvanece-se, encoberto por um ruído que chega do exterior. O dia esvai-se, consigo ver os faróis de vários veículos a filtrarem-se por entre os áceres na alameda. O ronronar surdo, caraterístico do motor do carro desportivo do Alexis, faz vibrar os vidros da biblioteca antiga que herdei da minha avó Louise. Pela janela, vejo-o sair do seu bólide, com um largo sorriso. O Alexis, fiel a si próprio. O Benjamin anda já à volta do veículo reluzente. O Alexis agarra-o e segura-o pelos pés como se fosse um boneco de trapos. Consigo ouvir o seu riso, sorrio também. Depois, partem numa corrida frenética e desaparecem no fundo do jardim, aos gritos.
O Marceau desce as escadas, que foram pintadas de branco, a cor dominante no interior da nossa casa. Adoro a luz. As janelas largas com vista para o lago e o reflexo das montanhas permitem-nos tê-los sempre presentes. Arranjei a casa como um loft no rés do chão – uma cozinha americana moderna combinada com antiguidades, aberta para a sala de estar e para o recanto que faz as vezes de biblioteca. Uma sala de estar espaçosa, talvez um pouco carregada de móveis, admito, mas confortável e acolhedora. O Marceau senta-se ao meu lado no sofá. Abraça-me, sei que gosta do meu sorriso. Devolve-mo, sem tirar os olhos de mim.
– Estás pronto?
– Nunca estou verdadeiramente pronto para estes serões, bem sabes. Preferia enfiar-me contigo debaixo dos lençóis.
Enternece-me, este idiota. Esta é a minha fase preferida: entre o momento em que ele acaba um romance e aquele em que desaparece num novo. É então que o reencontro, que estamos mais próximos.
– Então, porque é que fazes tanta questão de organizar todos os anos este ritual para o lançamento dos teus romances?
– O ritual, Sarah, é a chave para ser escritor. Um escritor sem ritual é um escritor morto.
– Tornaste-te supersticioso? A sério, do que é que tens medo? De que isto acabe? De deixares de agradar aos teus leitores?
– Segunda coisa, minha linda: um escritor que não tem medo é um escritor acabado. É preciso escrever sempre com a paixão a sobrepor-se ao medo.
– Essa tua saída é fantástica, deverias guardá-la para a próxima entrevista… Olha, a propósito, ali está o teu editor.
Chega cedo, como sempre. Ele adora estas noites. E, sobretudo, as minhas empadas com queijo de cabra fresco. Em breve, não conseguiremos ver-lhe o cinto.
O Édouard Payet, com a sua corpulência bem-humorada, passeia o olhar pela fachada, como se hesitasse em entrar. Sei que está a examinar toda a casa. A caixilharia, as janelas, a estrutura do telhado, a varanda do primeiro andar, o terraço, a vegetação negligentemente cuidada. Sempre gostou deste sítio, o covil do seu autor mais importante. Bate à porta, vamos recebê-lo.
Seguindo os passos do editor, o Freud, o seu corgi galês, entra a bambolear-se no pequeno vestíbulo que, para a ocasião, desobstruí das coisas que o Benjamin deixa sempre espalhadas. As garras do pequeno cão patinam sobre o parquê lustroso. De patas curtas e bastante rechonchudo, ladrando incessantemente, assemelha-se ao seu dono. Olham os dois para a comida que está à vista, ao fundo, na ilha da cozinha. Não posso acreditar: o Édouard já tem na mão um punhado de amendoins. Eu que me perguntava onde tinha posto a taça. É óbvio que ele a encontrou. Com um movimento rápido, mete-os na boca e engole-os sem os trincar, como se fossem comprimidos. Um ogre, mas com um sorriso jovial e uma graciosidade desarmante.
– Sarah, Marceau! Todos os anos, espero ansiosamente por este dia. Nada muda por aqui! E assim é que deve ser, esse é o segredo do meu escritor estrela.
O seu abraço franco é sempre másculo e consigo ver os grãos de sal dos amendoins que os seus dedos deixaram no meu ombro – o Freud não teve tempo de os lamber. Com um olhar cúmplice, o Édouard inclina-se repentinamente para o Marceau.
– Recebeste o meu pequeno presente?
Olho para o Marceau, que parece incomodado. Não sei do que é que ele está a falar.
– Ouve, Édouard, é lindo, mas… não uso relógio, e… tenho medo de o estragar.
– Um Breitling Aviator, foi feito para ti! Pilotas quase todas as semanas o teu velho Savage Bobber. Marceau, descontrai-te! Só trabalhas e não desfrutas. Com o que ganhas, podes dar-te a esse luxo!
– A casa à beira do lago e o meu avião são suficientes. Tu conheces-me: não quero ser surpreendido se, um dia, tudo acabar, de repente, sem aviso prévio.
– Eu publicar-te-ia de olhos fechados, Marceau.
– Nunca faças isso.
– Garanto-te que ainda não estou senil. E, se o texto não fosse bom, Marceau, podes ficar descansado, tenho bons escritores-fantasma.
O rosto do Marceau altera-se impercetivelmente. O Édouard acaba de agitar o seu mundo.
– Um acidente com um texto… Comigo, isso seria um acidente fatal, Édouard.
– Vá lá, estou a provocar-te. Estou sempre impaciente por saber o que vais apresentar-me. Sabes disso.
Ofereço ao Édouard a travessa com as empadas, enquanto o Marceau se escapule sem dizer nada. O Freud levanta o focinho e fica à espera das migalhas, mas o Benjamin entra a correr e distrai-o do seu objetivo. O meu filho acaricia a cabeça do cão e leva-o com ele, chamando alegremente pelo seu nome.
O Édouard engoliu o último bocado de empada com uma satisfação indisfarçável, antes de se afastar num passo quase cerimonioso em direção ao terraço. O ritual do editor pode começar, aquele que ele pratica sempre longe da minha sala de estar, onde não tolero aquelas volutas pesadas. Do bolso interior do seu casaco de tweed, extrai com reverência um Cohiba Behike 56, o Santo Graal dos aficionados, protegido no seu estojo de cedro espanhol.
Os seus movimentos são precisos, quase litúrgicos. Primeiro, tira o medidor de humidade de bolso Xikar para verificar o nível ideal da folha exterior. Depois, entre os seus dedos experientes, gira o charuto sob as narinas, inalando o aroma a couro e madeiras preciosas. O corta-charutos em prata trabalhada – um presente do Marceau – faz um corte limpo, libertando as primeiras notas terrosas. O Édouard observa com atenção a cabeça do charuto, como um enólogo que avalia o aspeto de um grand cru¹.
O seu isqueiro ST Dupont produz aquela chama azul caraterística. O ritual do toasting² tem início: a chama lambe suavemente o pé do charuto, preparando o tabaco para ser aceso. Depois, o Édouard gira lentamente o Cohiba sobre a chama, numa coreografia calculada ao milímetro. As primeiras baforadas elevam-se, trazendo a promessa dos aromas complexos que se avizinham – notas de café torrado, cacau amargo e especiarias orientais. Um sorriso de satisfação espalha-se pelos lábios do editor quando expele as primeiras baforadas, com os olhos semicerrados, saboreando este momento tal como se desfruta de um instante de eternidade. O futuro sucesso do novo romance do Marceau mistura-se já com as fitas de fumo que se elevam no ar da noite, dançando sobre as águas calmas do lago.
Cru é um termo francês usado para denominar um vinhedo específico ou uma zona delimitada (terroir) onde é produzido um vinho de caraterísticas particulares e originais. São os melhores vinhos produzidos na Côte de Beaune e Côte de Nuits, na Borgonha, França, e um grand cru é a mais alta das quatro categorias principais. (N. do T.)
Em inglês no original; o toasting refere-se ao processo de aquecer o charuto para libertar os aromas e aquentar a sua ponta para que fique incandescente, sem queimar demasiado a folha. (N. do T.)
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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