Na sua segunda edição o simpósio “Sangue na Guelra” fez do ativismo gastronómico (Cooktivism) palavra de ordem e, aproximando-se do “Manifesto Para o Futuro da Cozinha Portuguesa” traçado há um ano no decurso da primeira edição, trouxe a palco, instalado na Gare Marítima de Alcântara, temas como sustentabilidade, intervenção, cultura e identidade.
Isso mesmo deixou Ana Músico, responsável pelo encontro, vincado na abertura do mesmo na manhã de 23 de abril. “A gastronomia não é só fazer comidinha”. E, dando prova disso mesmo Ana Músico chamou ao palco Francisco Sarmento. Não é cozinheiro, gastrónomo ou foodie. Francisco Sarmento é o Chefe do Escritório de Informação em Portugal e junto da CPLP da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e, em particular, acompanha no terreno a iniciativa “AlimentAÇÃO: Direito Humano à Alimentação Adequada através compras públicas e cadeias curtas agroalimentares”.
Num palco para onde foi transposta uma pequena floresta, Francisco Sarmento expôs perante perto de duas centenas de pessoas, alguns dos dramas alimentares que a humanidade enfrenta. Um curto filme trouxe para dentro do auditório da Gare Marítima de Alcântara, os números de uma “tragédia anunciada”, como a define o responsável da FAO: “O sistema alimentar vive hoje um conjunto alargado de crises: ambiental, social, económica que se potenciam umas às outras. Vivemos sobre um barril de pólvora alimentar”.
De acordo com os dados avançados pela FAO Portugal no decorrer da apresentação no simpósio, em 2050 teremos um planeta com mais dois mil milhões de pessoas, ou seja com mais de nove mil milhões de habitantes. Já hoje, enfrentamos limitações que empurram uma em cada três pessoas para o drama da má nutrição. Atualmente, perto de 155 milhões de crianças apresentam carências alimentares.
No extremo oposto, 1,9 mil milhões de habitantes vivem em sociedades com excesso de alimentos. Mais, alimentos com excesso de açúcar, gordura, carne, potenciadores de doenças como a diabetes e patologias cardíacas e oncológicas. Portugal não é exceção: “5,9 milhões de portugueses, quase seis em cada dez, enfrentam atualmente a obesidade ou pré-obesidade”. Uma questão que afeta igualmente os sistemas públicos de saúde. “Em Portugal, as despesas de saúde equivaleram a 9% do PIB”, alertou Francisco Sarmento que também não deixou no esquecimento um outro facto: “30% da população portuguesa não pode comer aquilo que quer”. Facto ao qual não são alheios constrangimentos sócio económicos.
O sistema alimentar vive hoje um conjunto alargado de crises: ambiental, social, económica que se potenciam umas às outras.
Acresce, ainda, de acordo com os números apresentados por Francisco Sarmento, um terço da comida que produzimos acaba desperdiçada. “A humanidade produz o dobro daquilo que necessita. Há em toda a cadeia, desde a produção até ao consumo, desperdício e perda. Como? Por exemplo, a grande distribuição produz muito mais do que aquilo que é necessário. Por outro lado, nos países do Sul não há estruturas de armazenamento para os alimentos”, sublinhou Francisco Sarmento.
Isto num cenário com menos biodiversidade e diversidade alimentar, com 75% da comida produzida proveniente de 12 alimentos base, com 33% dos solos degradados à escala global e com uma expetativa de 2/3 da população humana a viver em cidades em 2050.
De acordo com o Chefe do Escritório da FAO Portugal, há hoje uma “desvinculação da alimentação com a comunidade, com a família, com o prazer e a espiritualidade”.
Face a todos estes números, “o direito humano a uma alimentação adequada está a ser violado”, refere Sarmento.
Neste âmbito a FAO Portugal tem em marcha o programa “AlimentAÇÃO” que, de acordo com Francisco Sarmento se desenvolve em torno de vários objetivos: “procuramos aumentar a prioridade do tema e contribuir para novas políticas públicas. Por exemplo, as escolas comprarem aos produtores locais. Que lógica há em adquirir maçãs que nos chegam do Chile? Acresce que não deve ser apenas o Ministério da Agricultura a cuidar estas questões da alimentação. As implicações no ambiente, na saúde, na cultura devem obrigar os vários ministérios a sentarem-se à mesa. Um agricultor para se manter no meio rural precisa de um centro de saúde, escolas para os filhos, entre outras estruturas de apoio”.
Queremos que a Assembleia da República aprove uma lei de bases à alimentação humana adequada. Já conversámos com os deputados de todos os grupos parlamentares que se mostraram interessados
“Um dos objetivos é irmos pelo país fora e, no terreno, visitarmos organizações não governamentais, instituições de solidariedade social, entre outras entidades que se encontram nas suas regiões a operacionalizar iniciativas de desenvolvimento local. Queremos dar-lhes visibilidade”, sublinhou.
Finalmente, “queremos que a Assembleia da República aprove uma lei de bases à alimentação humana adequada. Já conversámos com os deputados de todos os grupos parlamentares que se mostraram interessados. Mas é importante o empenho de todos os cidadãos. Este novo paradigma da alimentação passa também por “coordenar consumidores e produtores”.
Alfredo Sendim e a agroecologia da Herdade do Freixo do Meio
Dando corpo à mensagem deixada pelo responsável da FAO em Portugal, subiu ao palco Alfredo Sendim, responsável pela Herdade do Freixo do Meio, casa centenária no Alentejo, não muito longe de Montemor-o-Novo. Homem que há vários anos implementa no terreno um projeto de produção sustentável, comunitária, extensiva, em equilíbrio com o Montado alentejano.
“A alimentação tem sido sempre uma questão penosa para a humanidade. Ainda hoje mais de 90% do alimento vem da nossa casa mãe, o planeta. Como podemos construir uma realidade melhor?”. Com esta pergunta Alfredo Sendim abria meia hora de intervenção sentida, de “amor” pelo Planeta.
“Se por um lado concordo que as políticas públicas são importantes como referiu o Francisco Sarmento, por outro lado considero que todo este drama se relaciona com a atitude da humanidade. A abordagem ao planeta Terra tem de ser muito diferente. Irmos resolvendo o problema na medida em que podemos, julgo que é fazer pouco”.
Alfredo Sendim mergulhou as suas palavras na pré-história: “O Homem aparece no planeta há 200 mil anos, na estepe. Domina o fogo e domina o meio. Recebemos um planeta fértil, com uma estabilidade climática tremenda. Começámos ativamente a desmontar esta lógica. Rapidamente saímos do Paraíso para entrarmos no Inferno”.
“Pusemos o negócio humano a determinar como fazemos a tecnologia, a economia, como comemos. Assusta-me pensar na quantidade de politicas que temos de desmontar e o domínio poderoso da negociata humana. Temos 50 pessoas neste planeta que concentram os recursos”.
A abordagem ao planeta Terra tem de ser muito diferente. Irmos resolvendo o problema na medida em que podemos, julgo que é fazer pouco.
“O que nós estamos a determinar todos é a nossa extinção enquanto espécie. Será justo para as gerações que estão a vir?”, inquiriu o responsável pela Herdade do Freixo do Meio.
Para Alfredo Sendim, “a viragem só se faz com um leme, a Ética, percebermos que não é um problema do político, do agricultor, mas de todos. Só o podemos fazer através de uma atuação coletiva. Como? Através de grupos de consumo que se organizam para assumir a responsabilidade que têm em mãos. Por exemplo, num prédio os vizinhos organizam-se e vão falar com um agricultor que lhes fornece bens”.
Neste sentido, Alfredo Sendim alertou para a prática ancestral de lidar com o planeta, a Agroecologia. “Levar a árvore a dar-nos melhores frutos. Ainda existem povos neste planeta, os únicos que não colapsaram, a praticarem-na. Mas é hoje também [a Agroecologia] uma ciência, a de compreender o planeta, através da ecologia”.
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