A Erva-Patinha, uma alga que aprecia mar agitado; o Alho Bravo, delicado, mas de sabor com carácter; a Linguiça de Peles e peixes como o Congro e o Charro-do-Alto, mas também as especiarias e métodos de conservação como a salga e o defumo, são alguns, entre os muitos produtos a que é devedora a mesa da Ilha do Pico, nos Açores. Para valorizar o património cultural e gastronómico na sua relação com a paisagem e identidade da ilha, o Município da Madalena do Pico empreendeu um projeto que também recupera a autoestima e a memória locais.
A iniciativa “Património Gastronómico da Ilha do Pico” reuniu, em junho último, três chefes de cozinha: Carlos Afonso, do restaurante O Frade (Lisboa); Paulo Lourenço, do restaurante QB (Ilha Terceira) e Luís Gaspar, do restaurante Sala de Corte (Lisboa). Juntos, desenvolveram receitas in loco, assentes nos produtos e saber fazer local. Aplicaram-lhes novas técnicas e apresentação, assim como abordagens inovadoras aos produtos de sempre. Um trabalho que teve como corolário um workshop junto da restauração local. O objetivo? Incentivar empresários e chefes de cozinha a “convidarem” para a mesa dos restaurantes do Pico, os produtos e as cozinhas que a ilha preserva.
Projeto que se iniciou meses antes, nos caminhos da ilha, de porta em porta, na conversa com as gentes, guardiãs e perpetuadoras dos saberes locais. No terreno esteve Helena Juliano, responsável técnica do inventário coligido. Helena, açoriana, nascida em São Miguel, viveu na Ilha Terceira para, mais tarde, partir para África onde esteve 13 anos. “A minha área de formação é a Gestão Hoteleira. Nos últimos 30 anos, estive muito ligada à área do catering, assim como à organização de eventos”, conta-nos Helena, sublinhando que foi com muito gosto que recebeu o convite para percorrer o Pico, ao encontro daqueles que preservam a memória e a prática da cozinha local. “O levantamento feito teve vários objetivos, entre eles o de fazer a salvaguarda das tradições, muitas delas desconhecidas por parte dos jovens. Claro que este trabalho só faria sentido se o levássemos até aos restaurantes, o que aconteceu com a participação dos chefes de cozinha envolvidos. Após o boom turístico na ilha, a oferta na restauração começou a ficar um pouco desvirtuada”.
Para a investigadora, percorrer as ilhas açorianas é um desafio: “são distintas também nas suas gastronomias. As populações desenvolveram hábitos de trabalhar a terra muito diferentes. Não há como separar a ligação das pessoas ao território, aquilo que dele tiram e, por exemplo, o agradecimento a um Divino”.
Antes de percorrer caminho, Helena Juliano empreendeu uma outra viagem, a da pesquisa bibliográfica. “Cheguei ao Pico em setembro de 2020 para fazer um trabalho de pesquisa de início muito bibliográfico. Há muita bibliografia associada a historiadores, a gente interessada, ao próprio Governo Regional. Isto, não obstante, saber que muito do que iria encontrar no terreno se funda na tradição oral local”.
Concluído o levantamento bibliográfico havia que andarilhar o Pico. “Comecei a contactar as populações; pessoas muito hospitaleiras. No início não foi fácil, para mais neste tempo de pandemia em que as pessoas se recolhem e receiam. Mas, abertas as portas, tive toda a atenção, generosidade e empatia por parte daquelas pessoas”, sublinha a investigadora.
Nos cerca de 400 Km2 da Ilha do Pico, Helena Juliano deparou-se com um território de enorme diversidade. “Em São Roque encontrei mais influência da Ilha Terceira em termos de especiarias e temperos usados. É notório que de ponto para ponto da ilha a realidade altera-se. A ilha é grande, a segunda maior do arquipélago e, antigamente, a mobilidade era reduzida. Havia pessoas que levavam a sua vida no local onde viviam e só se ausentavam, por exemplo, para ir ao Faial vender os seus produtos”. Um sedentarismo que “levou a que os hábitos em cada uma das vilas fossem diferentes. Encontramos os mesmos pratos em diversos locais da ilha, embora preparados de forma diferente. A Fava, muito popular, é sobejamente apreciada no Pico, é um produto sazonal porque fresco, mas também se come seca e desidratada. Mas, o seu tempero difere de sítio para sítio. Nuns locais é quase estufada em cebolada; noutros a cebolada é feita à parte e vertida por cima, ainda noutros locais leva salsa e noutros não. Nalgumas paragens, é acentuada com vinagre e também se usa a banha, muito enraizada no Pico, pois não havia o azeite. Aliás, continua a ser hoje a gordura preferida dos picarotos”, adianta Helena.
Sopas do Espírito Santo
Traço incontornável das ilhas açorianas, também as Sopas do Espírito Santo evidenciam o carácter local: “nuns sítios leva batata, noutros não; noutros locais leva a carne cozida, noutros a carne assada, ainda noutros, o molho da carne assada é colocado sobre o pão das sopas. Por exemplo, as sopas do Espírito Santo da Terceira nada têm que ver com as do Pico. No primeiro caso, a Batata-Doce, a Batata da Terra, o Repolho e todas as carnes são cozidas dentro do caldo que dá a origem à sopa. E esta é feita com nacos de pão separados com a mãos. O pão é de fermentação lenta, feito de um crescente de batata-doce. No Pico é a fatia de pão que vai ao prato com o caldo por cima, leva o tempero de hortelã que é transversal às duas ilhas, embora na Terceira se use a Pimenta-da-Jamaica e no Pico os Cominhos”, sublinha Helena.
Da terra para o mar, conta-nos a nossa interlocutora, “o Caldo de Peixe também difere entre locais, com o tipo de pão, com os temperos. Toda a comida dos Açores e, especialmente no Pico, é muito temperada. Leva picante e sal. A partir das pesquisas que efetuei posso apontar uma teoria. Atenção, não se trata de um facto: no passado o Pico era um território muito pobre, com poucos recursos e parca terra. Os picarotos quando iam ao Faial vender os seus produtos, traziam terra. Nesta cultivavam cereais para a produção de pão. Com os parcos recursos, para terem conduto para acompanhar este pão, havia que temperar a comida para lhe dar mais evidência e, assim, alimentar a família”.
Erva-Patinha, a alga que se tornou uma iguaria
A generosidade da beira-mar oferece a “Erva-Patinha, uma alga sazonal, colhida entre janeiro e final de março, muito rica em proteínas e fibras. Atualmente é uma iguaria, mas antigamente era a erva dos pobres. Quanto mais agitada a água do mar, mais patinha há. Existe muita, mas nem toda é apanhada. Hoje, há métodos para manter a Erva-Patinha congelada ou desidratada, embora neste último caso ainda pouco desenvolvida no Pico”.
Ainda sobre a utilização da erva-patinha, salienta Helena que no passado se comia, por exemplo, “em tortas feitas com ovo e alho bravo. Este, desponta naturalmente. Quanto menos terra tem, mais se dá. Tem um aspeto semelhante ao alho-francês, embora mais fininho, e tem um sabor interessante. Tem odor muito mais intenso do que o alho comum, mas não ‘pica’ tanto na comida”.
Também com sabor a mar, Helena Juliano salienta o Caranguejo-Fidalgo, crustáceo que “há todo o ano, embora seja hábito comê-lo nas festas de verão. É delicioso, feito com vinagre, malagueta e alho. Este é um daqueles pitéus que praticamente só se encontra nas casas particulares”.
“Os produtos do mar voltaram, atualmente, a merecer a atenção. Há 40 ou 50 anos, quem tinha posses comia carne. Hoje, felizmente, à boleia das novas tendências apresentadas pelos chefes de cozinha, estão a consumir-se espécies de peixe menos ‘nobres’, apesar de eu não concordar com o termo. Não é menos nobre, é rico nutricionalmente, embora peixes com menos procura em determinados momentos como a Tainha, a Cavala, o Charro-do-Alto, o Veja [também conhecido como Peixe-Papagaio-Europeu]”.
A propósito do tópico peixe, Helena Juliano recorda-nos uma confeção “deliciosa” que encontrou no seu périplo pelo Pico: “a folha da figueira é utilizada para assar o carapau. Por ação do lume, a folha fica tostada e transfere o sabor do figo para o peixe”.
Carnes e defume
No capítulo das carnes, a investigadora refere o “Sarapatel, prato associado à matança do porco. Confeção que tem as suas origens na Índia e que, provavelmente, viajou nas naus que dali vieram. Encontrei ainda em Santo Amaro, pessoas nas faixas etárias dos 50 e 60 anos que mantêm memória das mães falarem do sarapatel. Hoje, praticamente, é prato que já não se faz”.
Nos comeres de tacho, Helena salienta a “Molha”, um guisado. “No Pico as pessoas não dizem ‘ela cozinha bem’, mas ‘ela guisa bem’. No passado, tudo era à base de ‘molha’ de atum, de bofes, de carne. Todas têm um tempero mais ou menos comum, uma cebola puxada na banha, depois o alho bravo, o vinagre, o vinho, o sal e as especiarias habituais, como os cominhos e a pimenta-da-jamaica”.
“No passado comia-se o borrego, o porco não existia, apenas o selvagem que, dizem-nos, era semelhante ao javali. Deixou de existir. Claro que é muito mais fácil criar os porcos domésticos. Atualmente, a carne de borrego está a entrar em desuso. O Pico tem uma quantidade enorme de galinholas [pintadas] mas praticamente ninguém as come”.
Métodos para a conservação dos alimentos no passado, como o defume e a salga, “hoje pouco se usam, embora como sabemos transferem para os alimentos características que os permite aproveitar num enquadramento diferente. Hoje, as pessoas ainda fazem a salga do congro, do charro-do-alto e do veja para consumo próprio”. Uma extinção de práticas de conservação que leva ao desaparecimento de pratos que lhes estão associados, como sublinha a investigadora do fenómeno alimentar: “por exemplo, a Sopa Azeda, um caldo bastante forte e substancial, à base de abóbora, batata-doce e feijão, ingredientes doces que carecem de um ‘corte’ com vinagre, também levava peixe assado na brasa que não era dessalgado. Ao deixarmos de salgar o peixe, a dita sopa desapareceu das cozinhas”.
Helena recorda um passado em que se procedia ao defumo da toninha (cetáceo). “Mais tarde a sua captura foi proibida. Toninha que era escalada, posta no defumo espetada numa cana, sobre umas caniçadas. Quando seca, era embrulhada em papel. No momento da utilização na cozinha, a toninha era assada em lume de lenha, depois era batida com um pau e, de seguida, frita em banha na sertã”.
No que respeita a enchidos e fumeiro, sublinha Helena Juliano, “há que referir a Linguiça de Peles e a Linguiça da Terra. Tem ainda uma outra, chamada Salsicha, muito específica nas zonas de Santa Luzia e Bandeiras. Na época, após a matança do porco, um bem apreciadíssimo e raro, para se fazer a linguiça esta só levava malagueta, alho das vinhas, cebola de rama e muita salsa. Depois, para lhe dar um gostinho, eram acrescentadas aparas de carne. Hoje, esta salsicha volta a ser apreciada e com um sabor muito diferente da linguiça normal”.
A encerrar a conversa, porque os açúcares são deleite à mesa, perguntamos a Helena Juliano a propósito da doçaria do Pico. “Ao investigar na ilha, respondiam-me o Arroz-Doce. Mas este não é tradicional [risos]. No que toca à doçaria, não há propriamente uma tradição na Ilha do Pico. Desta forma, lançámos um desafio a quem nos acompanha neste projeto para serem criadas sobremesas diferentes com produtos locais. Uma jovem autodidata tem estado a criar queijadas com vinho de cheiro, de queijo e de mel”.
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