Esta é uma conversa que, na intenção de quem pergunta, nunca esteve para ser, meramente, uma troca de impressões sobre enchidos e fumeiros portugueses. Poderia ter sido, naturalmente, com toda a riqueza histórica, antropológica, cultural que encontramos em algo tão simples (será?) como uma Chouriça de Padornelos, em Montalegre. Multiplique-se esta genuína e laboriosa expressão alimentar de um território por perto de cem variedades de enchidos e fumeiros nacionais, para percebermos porque para o chef, formador, cronista, gastrónomo – poderíamos continuar -, Nuno Diniz, 14 anos não foram tempo de mais para a recolha da matéria-prima da obra que agora nos entrega, “Entre Ventos e Fumos” (Bertrand Editora).

Para o autor, uma conversa sobre este seu livro também nunca poderia ser, meramente, uma troca de impressões sobre o conteúdo de um objeto contido em 220 páginas.

Por isso mesmo, para percebermos o convite de Nuno Diniz a (re)encontrarmos este nosso país, esta é também uma conversa sobre o tempo, o que nos falta, porque nos falta e onde o encontramos. Porque não experimentarmos encontrá-lo, ao tempo, dentro de nós e em territórios nacionais onde ainda se sabe vivê-lo? Ali está ele nos ritmos da natureza, consequentemente nos ritmos humanos.

“Entre Ventos e Fumos”, o livro que nos leva para longe da “canalha tentação para as modernices”
“Entre Ventos e Fumos”, o livro que nos leva para longe da “canalha tentação para as modernices”
Ver artigo

Uma conversa sem a urgência das vias rápidas que nos levam daqui para ali sem tempo para ver. Aqui, nestas linhas, fazemos o périplo que o nosso interlocutor nos deixa no seu livro, entramos em “pequenas aldeias resistentes, de velhas de sorriso franco que fazem soberbas alheiras, de campos com a melhor batata do mundo”, como relata Nuno Diniz.

Um diálogo que não isenta de responsabilidades quem deixa órfã a memória, que assume como mais importantes as leis da Europa, alheias à nossa tradição; ou quem vê no valor das coisas apenas a sua utilidade. Um Nuno Diniz que não nos esconde as suas “embirrações” [“será que um estrangeiro quer vir a Portugal comer risoto?”] e pasmo pelas supostas novidades descobertas há centenas de anos [“Veriam que não se inventou nada”].

Uma conversa que poderia ter começado na seguinte frase: “Onde o progresso demorou muito tempo a chegar conseguimos viver melhor, mantendo tradições, mas recebendo tudo o que é novo. É a piada de por vezes o progresso ser lento”. Não começou por aqui, o que não é relevante. A entrevista é longa, haja tempo para nela nos demorarmos.

Nuno Diniz, antes de nos entregar uma obra sobre fumeiros e enchidos em Portugal, julgo que nos quer deixar um outro objeto, não tangível: a sua paixão pelo que somos, nas suas especificidades locais, e o legado que recebemos….

Tenho mudado muito ao longo da vida, evoluído, e uma das minhas frases prediletas prende-se ao conceito, muito meu, o da memória desfocada. Mesmo a minha cozinha é a da memória desfocada. Ou seja, tudo aquilo que vamos registando ao longo da vida e, graças ao passar do tempo, tendemos a esquecer ou amaciar. Coisas que não foram boas, mas que guardamos o melhor. A minha forma de cozinhar, de escrever, evoluiu para algo mais radical. Há uns meses numa entrevista referi a cozinha popular elitista. Este livro é isso mesmo, um livro da cozinha popular elitista. O motivo porque ele acontece é a paixão pelo popular, mas que não é `popularucho`. É culto, profundamente culto. Temos a tentação de dizer ´isso é do povo, ele não sabe falar”. É mentira.

Esta descoberta, acompanhada de investigação e uma grande dose de introspeção que justifica este livro que é muito mais do que uma recolha. Tem emoção, descoberta, alguma preocupação com algo que não pensei com que me depararia. A idade traz estas coisas, comecei a pensar no legado. Fazer alguma coisa que ajude o país e as pessoas. Escrevi algumas vezes no livro que quero que as coisas não desapareçam. Já se perdeu muita coisa, vamos evitar nem que seja pela força pequenina de uma palavra, mas grande do papel, minorar danos.

Uma das palavras mais irritantes dos últimos tempos é sustentabilidade. Inventamos e atiramos palavras para o ar que não querem dizer nada. É mentira na maior parte dos casos, mas depois é verdade em certas regiões.

Quando nos fala em popular e `popularucho` há, de facto, diferenças. Não lhe parece que o segundo termo refere algo que tem necessidade de exibição e o primeiro, o popular, expressão  do que nasceu das respostas das populações face às condições do território?

Sim, expressão do que nasceu naqueles redutos. Não só não sai de lá como as próprias populações não têm noção do que estão a fazer e é extraordinário. É preciso vir alguém de fora dizer-lhes isso e esse é o meu papel enquanto cozinheiro, professor e, neste caso enquanto escritor.

Primeiro olham com um ar desconfiado, depois encantado, provavelmente não ficam muito convencidos, mas contentes. Para eles nada daquilo é especial. A carne excecional para nós é, para eles, o normal, o dia a dia.

Uma das palavras mais irritantes dos últimos tempos é sustentabilidade. Inventamos e atiramos palavras para o ar que não querem dizer nada. É mentira na maior parte dos casos, mas depois é verdade em certas regiões.

Podemos, também afirmar que é um convite a descobrir um Portugal que (parece) insistimos em não querer conhecer?

Não só é verdade o que diz como, para mais, é quase trágico. Porque não é só não querer conhecer é querer passar a imagem de que não existe. Ainda lá está, com alguma saúde. E precisa que vamos lá, para conhecer, criticar construtivamente, mas nunca para destruir, abastardar e plastificar.

A certa altura, no livro, comento a questão das regras, das leis, das imposições da Europa. É evidente que quem não tem história, não tem nada para recordar. É evidente que quem não tem memória não quer preservar nada. Quem está obcecado com a noção que tem do saudável, acha que tudo o que sai daquelas regras, ainda por cima burras, mesmo que estudas por médicos, engenheiros, cientistas. Porque na verdade o povo sempre soube fazer as coisas e, no caso da alimentação, é comer um pouquinho de tudo. E constatamos que têm uma esperança de vida semelhante à dos citadinos que cumprem as famosas regras.

“É absolutamente criminoso matarmos a nossa memória. Se o fizermos é por estupidez”
Farinhota. @Marta Teixeira

Em relação às leis, insurjo-me mais contra a forma como em Portugal se lê aquilo que são algumas diretivas e orientações. Porque se proíbe as colheres de pau? Depois diz-se, não é proibido é aconselhado. Quando se lida com as pessoas mais simples uma proibição é isso mesmo, não se faz mais. Depois andamos com os plásticos todos sujos e com luvas. Os meus cozinheiros estão proibidos de usarem luvas. Porque não se tem a noção de andar com as mãos sujas. Outro exemplo, no caso dos enchidos, do fumeiro, dos queijos, criou-se o mito de que é proibido fazer queijo com leite cru. É mentira e o que se vendeu foi a mensagem. Em Itália proibiu-se a utilização dos fornos de lenha para as pizas e os italianos mandaram-nos à merda. Se fosse em Portugal íamos aceitar.

Dieta Mediterrânica: “Não temos de copiar o que chega de fora. Basta que sejamos como somos”
Dieta Mediterrânica: “Não temos de copiar o que chega de fora. Basta que sejamos como somos”
Ver artigo

Não estou contra a Europa, mas contra quem lê a Lei e passa a mensagem em Portugal, esquecendo que somos um pais, em termos culturais, no sentido mais escolásticos, muito desequilibrado. Dizer a alguém que estudou não é o mesmo que dizer à pessoa que está isolada na aldeia que acredita e não faz mais. Deixa de ter porcos, mas quando tem não os pode matar, a não ser que vá ao matadouro que fica a duas horas de caminho. E acabam os enchidos e o fumeiro, acaba tudo.

A decisão é tomada em abstrato.

A decisão é tomada em abstrato. Há países muito velhos, com hábitos de centenas de anos que não podem ser alterados porque alguém determina que grão vem todo da Monsanto.

Vivemos numa sociedade sem tempo, com urgência, este é um livro para darmos valor ao tempo?

Foi evidente quando acabei de escrever o livro. Foi escrito em dez dias, embora o processo de recolha desordenada tenha demorado praticamente 14 anos. Quando fiz a primeira leitura do que viria a ser o livro, percebi que fazia demasiadas referências ao tempo. Mas falo demasiadas vezes porque é algo que me preocupa particularmente. Eu tenho a noção de que à medida que avanço na idade, mais vou sabendo e mais quero saber, e não tenho tempo para isso. Tenho de fazer opções relacionadas com o aquilo que acho ser o meu tempo disponível. E este, dedico-o a duas coisas. Uma delas poder ajudar quem quer ser ajudado, enquanto professor.

O outro aspeto, prende-se com a mensagem que eu, enquanto cozinheiro, gastrónomo, colunista, quero passar sobre a comida do meu país, que é a cultura do meu país. Para isso preciso de tempo, para ir, para conhecer, para divulgar. Esse tempo alia-se ao tempo atual que é cada vez mais curto. Logo, gostaria que voltássemos a ter mais tempo para perdermos tempo. Atualmente trabalhamos uma quantidade estupida de horas na minha área. A vida sem tempo não faz sentido nenhum.

Fomos a Trás-os-Montes e descobrimos que há séculos que aí se faz o couscous português
Fomos a Trás-os-Montes e descobrimos que há séculos que aí se faz o couscous português
Ver artigo

O Nuno Diniz levou 14 anos a amadurecer este livro. Porquê agora? Corremos o risco de estramos no limiar de um mundo sem memória?

É evidente que a questão da memória é importante e que se relaciona com o tempo e, acima de tudo, com a desvalorização, que não é propositada, mas que se sente, de tudo o que é simples. A mensagem que se passa atualmente é a de que temos de fazer coisas úteis. Implicitamente estamos a dizer que todas estas coisas de que temos estado a falar são inúteis. Logo fazer grandes ou pequenos queijos e enchidos é inútil. Só é útil o que é fruto da aceleração gigantesca em que vivemos. A memória já não serve para nada. Só importa o que fazemos hoje e faremos amanhã. Desaparece completamente a preocupação sobre aquilo fizermos ontem pode ser útil para eu ser melhor hoje. Quando começo a ter a ideia de escrever o livro, talvez há dois anos, fiz meia dúzia de contactos e chego a uma conclusão extraordinária. Pessoas encantadoras pedem-me para pagar. Então eu vou fazer um livro, onde já investi tanto, não quero dinheiro nenhum e tenho de pagar? Tive três ou quatro reuniões depois, a intenção desapareceu. Um meu aluno, o Diogo Veladas, a quem também dedico o livro, insistiu e nasceu a hipótese de fazer o livro na Bertrand. E avançou. Não sabia se ainda queria fazer o livro porque, na verdade, quando temos a ilusão profunda sobre a eficácia do que vamos fazer e, de repente, percebemos que não é factível é um choque. Depois custa retomar. E fez-se. É só quando escrevo o livro que percebo que este objeto vai existir.

A mensagem que se passa atualmente é a de que temos de fazer coisas úteis. Implicitamente estamos a dizer que todas estas coisas de que temos estado a falar são inúteis. Logo fazer grandes ou pequenos queijos e enchidos é inútil.

E que objeto é este?

Fiz um livro profundamente discreto, inclusivamente nas fotografias, um trabalho brilhante da Marta Teixeira. O prato que aparece sempre na obra, foi concebido por mim e pelo Diogo e apresentei-o há dois anos no Congresso dos Cozinheiros. O prato tem buracos para fumar um alimento durante a apresentação. Há uma ligação óbvia com o fumeiro. Isto não está contado no livro porque é minha vontade não falar demais. Não quero que as pessoas adquiram o livro porque tem receitas, quero que o comprem porque sentem que estão a contribuir para preservar o país. Um país muito mais rico e interessante. É absolutamente criminoso matarmos a nossa memória. Se o fizermos é por estupidez.

Falamos do tempo, ou da necessidade de o reencontrarmos. Contudo, o Nuno, no périplo que fez pelo nosso país parece tê-lo encontrado em redutos. Quer explicar-nos?

Vou dar o exemplo com um território que me é grato, o concelho de Montalegre. Passo lá o Natal com a família. Há coisa de quatro anos começámos a fazer, anualmente, uma subida notável em Pitões das Júnias, subindo à capela de São João da Fraga. Uma subida duríssima de duas horas e meia. Simbolicamente recuamos no tempo. O que estamos a fazer agora, fizeram as pessoas muito tempo; subir, olhar, saltar riachos, escorregar no gelo. O que nos falta atualmente é, ao olhar explicar o que podemos ver. O que acontece ali é que olhamos e vemos.

Na cidade olhamos para as montras, para os carros, para as pessoas. Ali, estamos a ver e a perceber uma vida que durou muito tempo, que está praticamente desaparecida, mas não há nada de errado nela. Antes pelo contrário, há muita coisa certa. Tem a ver com valores simples. Atenção, eu não quero voltar a viver nas pedras, com frio. Mas temos de compreender estas vidas, tão autênticas, e temos de tirar delas tudo o que é bom e que nos leva a recolher cheiros, perceber sons. Os meus sobrinhos, lisboetas, ali estão, parados no meio do nada, admirados com aquela beleza. É um mundo que nos volta a fazer falta. Temos de ir lá porque vamos ficar mais íntegros, mais vivos.

“Entre Ventos e Fumos”, o livro que nos leva para longe da “canalha tentação para as modernices”

Percebe-se nas suas palavras e na forma como escreve uma relação muito emotiva com este Portugal que nos entrega no seu livro. Certo?

É tudo o que tem a ver com o valor humano. Estamos longe do anonimato, da indiferença. E isto no meio de pessoas que, provavelmente, são tratadas com diferença. Há uma emoção que aparece de quando em vez no livro que me fez vacilar, mais do que uma vez, no ato da escrita. Porque recordava episódios, sorrisos, gente muito dura, mas também simples, talvez, até, o que é compreensível, muito ligeiramente desconfiada com quem vem de fora. De repente quando percebem que podem ter confiança tudo muda. Por exemplo, sabem que estou para chegar e penduram um saco à porta com uma galinha e frasco de sangue para uma cabidela

Sinto-me, ali, completamente desarmado. Percebi que não sou tão duro e insensível como julgava. Percebo a capacidade que achava perdida para me emocionar.

O que nos falta atualmente é, ao olhar explicar o que podemos ver. O que acontece ali é que olhamos e vemos. Na cidade olhamos para as montras, para os carros, para as pessoas. Ali, estamos a ver e a perceber uma vida que durou muito tempo, que está praticamente desaparecida, mas não há nada de errado nela.

Há logo na abertura do seu livro, na Introdução, uma expressão interessante e otimista: “Nos embrenhamos nos intestinos das pequenas aldeias, esquecidas mas não mortas, envelhecidas mas ainda esperançosas e sorridentes”. Estamos a saber reinventar o nosso passado?

Falamos muito de tradição. Esta não é, nem nunca foi, imutável. Essa história de que temos o prato tradicional que é feito hoje como há 500 anos. Só cabe na cabeça de quem não pensa. A tradição é a inovação consolidada pelo passar do tempo e adaptada ao tempo. O que não é a mesma coisa e, aqui, irrita-me achar que é legitimo fazer uma alheira vegetariana. Mude-lhe o nome e chame-lhe um enchido vegetariano. Da mesma forma irrita-me a ideia de desconstrução na cozinha. É preferível a reinterpretação. A primeira soa a algo que vai ficar razoavelmente ridículo. Reinterpretar é uma revisão com qualidade.

“Faz sentido comprarmos maçãs italianas, quando temos maçãs do Minho a desaparecer?”
“Faz sentido comprarmos maçãs italianas, quando temos maçãs do Minho a desaparecer?”
Ver artigo

Não é legitimo é, de repente, dizer que o fumeiro faz cancro, porque o sal é excessivo, quando temos de viver com ele. A mensagem não pode ser esta. Compreendo que cada vez mais há interesses comerciais que passam por cima de tudo, mas temos de regressar às comunidades irredutíveis. Temos de ir ter com elas e agradecer-lhes por assim se manterem e dizer-lhes que assim se têm de manter.

Não obstante o risco de extinção destas práticas…

Na primeira versão o livro terminava com receitas. A editora pediu-me umas linhas para findar a obra. Nestas, digo a certa altura que sei que desde que acabei o livro já se extinguiu alguma coisa. Não é uma tragédia. Era melhor que não acabasse, mas simultaneamente duas ou três pessoas começam alguma coisa. Se o livro chegar aos filhos e netos de quem ainda faz e souberem que há um gajo em Lisboa que é um chef e que até disse que aquilo que fazem é importante, talvez dê frutos. Eu gostava que assim fosse, é uma reflexão.

É absolutamente
Plangaio.

Não lhe parece importante que estes produtos saiam dos seus territórios, entre nos circuitos comerciais, com produções mais robustas?

Não tem uma resposta simples. Este livro está essencialmente preocupado com pequenas produções, por vezes fábricas tão pequenas que lhes chamo artesanais. Evitou-se incluir produtos que não têm ingredientes que não conseguimos perceber o que são: E45, E26, por aí fora. Quero que os únicos conservantes possíveis sejam sol, fumo, pimenta ou colorau. O que é que isto implica? Se de repente quisermos transportar esta pequena produção para uma outra, muito grande, a tendência para atalhar leva a que em vez deixar o produto três meses no fumo, resolve-se o problema com o E45 em dois dias. O meu grande problema com a massificação tem a ver com a falta de seriedade. Massificar respeitando o método seria o mundo perfeito.

Uma coisa que faço há sete anos é o “Cozido dos Chefs”. Comecei a fazer encomendas há um mês. Fi-las em 15 pequeníssimos produtores. Chegam-me os produtos em caixas de cartão. Mas quando os comermos sabemos que são excelentes. Aqui está o dilema, convencer quem faz que ali está um negócio, que teria de produzir mais e com condições para isso. No mundo ideal teríamos uma grande superfície que apoiasse isso. Tenho esperança que lá cheguemos.

Ignoro completamente como se dão contas a Bruxelas e a quem são dadas. Se calhar é difícil explicar a Bruxelas que é preciso gastar cinco milhões de euros para recuperar cinco ou seis cozinhas artesanais, com condições higieno-sanitárias para produzir alimentos extraordinários, em vez de gastar outro tanto valor a construir uma fábrica

Em suma, temos até aqui falado em bons argumentos para a dinamização dos territórios. Desenvolver lá, onde é feito. Concorda?

Esse é que é o investimento correto. Ignoro completamente como se dão contas a Bruxelas e a quem são dadas. Se calhar é difícil explicar a Bruxelas que é preciso gastar cinco milhões de euros para recuperar cinco ou seis cozinhas artesanais, com condições higieno-sanitárias para produzir alimentos extraordinários, em vez de gastar outro tanto valor a construir uma fábrica ou uma ponte. Temos de nos convencer de que esta Europa, onde gostamos de viver, não pode ser um país único, mas que temos a nossa força sendo diferentes.

Tenho embirrações cíclicas e procuro passar mensagens. Há uns anos andava a embirrar com o risoto e dou-lhe um exemplo: vinha a descer o Chiado e vejo, em 14 restaurantes, 10 ou 11 com risoto e um ou dois com um arroz português. Repare, somos o pais do mundo com maior variedade de pratos de arroz. Pense num ingrediente e, certamente, existe um arroz de. Será que um estrangeiro quer vir a Portugal comer risoto? Nesta Europa há quem ache, julgo que só os governantes, que temos de ser todos iguais. É na diferença que se mantém a cultura e o poder de um continente velho, mas forte.

“É absolutamente criminoso matarmos a nossa memória. Se o fizermos é por estupidez”
Farinheira preta. @Marta Teixeira

Falava há pouco desta variedade. Será arriscado dizer que somos únicos em todo o mundo nesta diversidade no que respeita a enchidos e fumeiro?

Não tenho qualquer dúvida. Em Portugal temos uma quantidade assustadora de produtos diferentes. Não serve de argumento dizer que uma farinheira é só uma farinheira. É ignorância. É o mesmo que dizer que todo o pão é o mesmo. Partindo de água, farinha, sal e fermento, há uma variedade enorme. Comparar um molete com um bijou do Porto com um pão alentejano, só por brincadeira. Isto passa-se no fumeiro. Eles estão lá no livro porque existem e provei todos. Garanto que são todos diferentes. Quando se compara uma farinhota de Montalegre com uma farinheira do Alentejo. Até um tipo sem papilas gustativas percebe a diferença. Muda todo o contexto.

Fiz um filme para os meus alunos sobre uma matança do porco em Montalegre. E vejo tirar coisas que pensaríamos para deitar fora e, ali, têm o seu destino. E estamos a falar de uma aldeia em Montalegre. E quando sabemos que há centenas a fazerem as suas, estamos esclarecidos.

absolutamente criminoso
Farinheira de batata. @Marta Teixeira

Estes enchidos e fumeiros são uma marca inventiva e engenhosa. Levámos séculos a apurar. Pode dar-nos alguns exemplos?

Dou-lhe um exemplo. Uma das tendências dos últimos 15 anos na cozinha é a fumagem a frio. E esta, normalmente, apresentada por espanhóis ou por nórdicos como uma inovação extraordinária. Lamento que não tenham ido a Montalegre há 300 anos e ver, nos sítios onde se faz fumagem, que as janelas estão partidas para que nas noites gélidas houvesse uma corrente de ar. O frio ao entrar atingia o fumo ao tocar na carne. Nós já sabíamos. O que nos faltou foi que há 200 anos alguém escrevesse estas práticas. Veriam que não se inventou nada. Como é que chegamos aqui é extraordinário. Isso é, uma vez mais, o tempo a atuar. Certamente por engano alguém que tinha as janelas partidas percebeu que obtinha um resultado positivo no seu fumeiro.

Voltamos ao tempo, um cozido com três dias de preparação. É obra…

Repare, vamos às beiras, ao Ribatejo, a Montalegre, à Madeira e mesmo a Macau e vemos a diversidade nos cozidos. O facto de o cozido durar três dias prende-se com o método que decidi adotar. Há uma noção muito portuguesa, caseira e de mãe e avó, que é valida para o cozido e para o bacalhau. Ou seja, por magia pegamos numa série de ingredientes que vão para a panela e ficam todos cozidos por igual ao mesmo tempo. Não resulta.

Na primeira aula que dou a cada ano refiro que a água é um ingrediente extraordinário para beber, para tomar banho e para fazer caldos. Não se cozinhe em água, porque temos de conferir sabor. Produzir um caldo demora quatro a cinco horas. Logo aí começamos a perceber o tempo. Isto num cozido com 40 enchidos diferentes.

Sempre fui contra a ideia do cozido à portuguesa. Desta forma, quis fazer cozidos locais. Pensei em fazer um de cada região. Dava muito trabalho. Logo, faço três cozidos por ano, em fevereiro, março e abril. O primeiro é o cozido Barrosão e Transmontano. Depois, laboro um cozido entre rios, ou seja, toda a zona entre Douro e Tejo. Em boa verdade, deveria ter para esse território pelo menos três versões de cozido. O terceiro, o mais criminoso de todos, é o cozido do Sul e ilhas. Consigo um grande contraste de sabores. Até hoje continuam a aparecer coisas novas a cada cozido. Por exemplo, descobri uma farinheira de batata em Montalegre.

Montalegre: No Planalto de Barroso a terra é fria, a alma é quente
Planalto de Barroso, Montalegre. @SAPO Lifestyle

Irrita-o o tratamento que damos à alheira? A história que lhe inventámos e os usos que lhe demos?

Se chegarmos a um transmontano e lhe dissermos, `a sua alheira é do Porto`, ele vai achar que somo malucos [risos]. Costumo pensar que a ignorância anda quase sempre de mão dada com a intolerância. Adoram-se. Repare, não quero dizer às pessoas como têm de cozinhar seja o que for. Mas devo dizer como é que acho que se deve cozinhar. É absurdo e ridículo ver pegar numa alheira, fazer-lhe um golpe longitudinal e mergulhá-la em óleo, servindo-a com batata frita. A alheira deve ser grelhada. Em extremo, em casa, pego numa frigideira antiga, sem recurso a gordura, e deixo a alheira em lume fraquinho 20 minutos de cada lado. Isto é válido para alheira como para tanta outra coisa que se faz em que, de alguma forma, só porque é mais rápido ou fácil, pretendemos simplificar. De tal forma que as pessoas nunca irão reconhecer o verdadeiro sabor.

Se chegarmos a um transmontano e lhe dissermos, `a sua alheira é do Porto`, ele vai achar que somo malucos [risos]. Costumo pensar que a ignorância anda quase sempre de mão dada com a intolerância. Adoram-se.

Num tempo em que tanto se fala de sustentabilidade, reaproveitamento e se inventam novas fórmulas, afinal de contas tivemos sempre muito de tudo isto aqui, na sabedoria popular. Primeiro tratámos de esquecer e, agora, procuramos o Ovo de Colombo. Concorda?

Não há plásticos. Inclusivamente na matança que filmei, a certa altura o porco depois de morto, é muito bem esfregado, lavado, fazem-lhe a barba, abrem-lhe a barriga, tiram-lhe os rojos, o unto e, depois, as tripas e o fígado e sai a fressura, é lavado e é pendurado pelo ´osso do cú´, como é conhecido. E como o fazem? Penduram o porco com o coro das vacas criadas naquelas comunidades. Temos sítios onde a sustentabilidade é praticada, o aproveitamento total é praticado. O que temos de fazer mais do que olhar para isso? Porque nós chefs temos de encontrar teorias tão complicadas? Os animais são alimentados com os restos da casa. As tripas dos animais são aproveitadas. Isto existe, hoje, em 2019.

paio
Paio. @Marta Teixeira

Nuno, após tantos anos a calcorrear o país, ainda se consegue maravilhar e encontrar o inesperado?

Maravilho-me constantemente, com o país em si, mas acima de tudo quando tenho a sorte de encontrar a cozinha relativamente intocada, o que já não é muito fácil. A grande cozinha regional é difícil de encontrar e fico maravilhado quando a encontro e num estado razoável de conservação. Muitas vezes completamente alterada com a utilização, por exemplo, de caldos industriais. Temos a forma tradicional de tirar sabor. Sempre resultou de forma mais brilhante do que os caldos industriais.

De vez em quando encontro sítios geniais, nomeadamente nas zonas de serra. Vou citar três locais, exemplares, para comer coisas muito típicas de Portugal. Começando em São João de Rei [Póvoa de Lanhoso], o restaurante O Victor que faz um bacalhau absolutamente inacreditável. Mais para sul, em Fogueira, próximo a Sangalhos, o Mugaza, com o Ricardo, o melhor assador de leitões do país. Queria lembrar que não é cozinha tradicional, mas que não é só nesta que temos valores extraordinários. É uma coisa recente. No Algarve, não posso deixar de falar da Noélia, uma cozinheira intuitiva, o exemplo acabado daquilo que temos espalhado por Portugal, mulheres que cozinham de forma deslumbrante com um instinto que não é fácil de entender. Uma açorda de galinha que é brilhante e o polvo trapalhão.

Isto sem entrar no campo complicado da lampreia, cabidela, fressura, rojões. Exemplos paradigmáticos do país em que a cozinha não é diferente de região para região, mas de aldeia para aldeia. Uma coisa inacreditável. O mesmo prato mantém o nome e comemos coisas distintas.