Um mito é por definição uma narrativa sobre uma determinada realidade/pessoa sem que se funde em factos verificáveis. No caso dos mitos contemporâneos ligados à masculinidade, quais são os preponderantes?

Um dos principais mitos ligados à masculinidade é o dos homens não poderem mostrar vulnerabilidade nas suas esferas de vida. Um mito que se relaciona com vários aspetos que sabemos serem verdade na saúde masculina passa por frequentar menos as consultas médicas, desvalorizar alguns sintomas, não procurar ajuda para determinados problemas de saúde. Outro mito convergente com este que referi, tem diretamente a ver com a sexualidade e é a ideia de que o homem está sempre pronto e disposto a ter atividade sexual e que não deve, nem pode, experienciar nenhum problema sexual.

O que está a alimentar estes mitos? As redes sociais, a pornografia...?

Penso que originalmente há esta tradição e este pano cultural de que a masculinidade é um símbolo de força, de potência e de nunca falhar. Estas expectativas que se perpetuaram de forma geracional talvez sejam uma das principais forças motrizes destes mitos. Acrescentando aspetos como os referidos, as redes sociais ajudam a transformar esta ideia do homem em algo muito idealizado, quase sem defeitos, num avatar social online que faz tudo com bastante sucesso e um sorriso na cara. A pornografia desempenha um papel fundamental nas expectativas sexuais: à falta de melhor educação sexual, a pornografia é, muitas vezes e erradamente, utilizada pela população geral como uma forma de aprender sobre o sexo.

João Rema, Médico Especialista em Psiquiatria e Sexologia na MS Medical Institutes.
João Rema, Médico Especialista em Psiquiatria e Sexologia na MS Medical Institutes. João Rema, Médico Especialista em Psiquiatria e Sexologia na MS Medical Institutes.

Ainda sobre a pornografia. Esta, ao enfatizar certos padrões de desempenho sexual, tem moldado expectativas irreais para os homens? Que esforços podem ser feitos para criar narrativas mais realistas e saudáveis?

É fácil perceber como utilizar o exemplo de profissionais do sexo pode contribuir para criar uma expectativa irrealista da atividade sexual. Falamos de profissionais, de equipas inteiras, que criam conteúdo erótico que deve servir precisamente esse propósito: o do erotismo e não o educacional. Muitos homens que observo em consulta fazem comparações implícitas à pornografia que viram. Por outro lado, determinadas componentes da relação sexual, como a intimidade, a proximidade, o afeto, o consentimento, estão muitas vezes suprimidas na pornografia. A solução é apostar em educação sexual de qualidade para a população geral, é uma forma eficaz e segura de promover conhecimento e saúde na esfera sexual.

Determinadas componentes da relação sexual, como a intimidade, a proximidade, o afeto, o consentimento, estão muitas vezes suprimidas na pornografia.

A virilidade associa-se tradicionalmente à força física e ao desempenho sexual. De que forma os novos conceitos de masculinidade estão a desafiar este mito, e qual o papel da educação sexual nesta dimensão?

Atualmente, há um grande investimento dos homens na sua saúde física, tanto pela importância de ser saudável, como pela componente estética relacionada ao cuidado do corpo. De forma positiva observamos também que cada vez mais pessoas, mais biótipos, mais tipos de corpos e de apresentação têm presença no universo masculino e permitem uma maior identificação. Quanto mais plural for a representação masculina, maior é a probabilidade de deitar por terra mitos que prejudicam diretamente a saúde masculina. O mito da força física ligado ao desempenho sexual pode impedir um homem de procurar ajuda para um problema sexual porque “é um homem forte e aquilo não deveria estar a acontecer”. Estes mitos funcionam como obstáculos ao bem-estar masculino, criam barreiras que a educação sexual pode derrubar.

Os mitos sexuais masculinos podem reforçar desigualdades de género?

Como fomos explorando, os mitos criam uma barreira e, muitas vezes, um abismo entre as pessoas, inclusive do mesmo género. Um homem que enfrenta dificuldades sexuais e se sente menos viril” por esse motivo pode sentir-se alheado de outros homens que exaltam a sua vida sexual. Esta separação afasta as pessoas umas das outras e dos cuidados que necessitam. Por outro lado, os mitos sexuais podem ser travões ao desenvolvimento sexual saudável, impedindo os homens de experimentar situações, emoções e experiências que seriam saudáveis mas que são temidas por poderem não corresponder à imagem idealizada do homem sexualmente ativo, do homem mítico.

Os homens, de uma forma geral, apresentam uma certa fixação com o pénis e as suas características - contudo, não estão sozinhos, uma vez que a sociedade parece partilhar da mesma fixação.

Apesar das evidências de que o tamanho do pénis raramente afeta a satisfação sexual, porque continua a existir a hipervalorização desta imagem?

Como referi anteriormente, há uma valorização muito marcada da imagem na atualidade. Os homens tornaram-se ávidos consumidores de serviços estéticos dirigidos ao público masculino. Os homens, de uma forma geral, apresentam uma certa fixação com o pénis e as suas características - contudo, não estão sozinhos, uma vez que a sociedade parece partilhar da mesma fixação. Vejamos este exemplo: se a educação sexual de um homem se baseou na pornografia, a comparação com o tamanho do pénis pode ser inevitável e torna-se um foco de apreensão. Há um mito disseminado sobre o tamanho do pénis ser proporcional ao desempenho sexual, à virilidade ou à satisfação sexual do próprio ou parceiras e parceiros, algo que sabemos estar errado e não corresponder à realidade. Por exemplo, segundo o reportado pela literatura, a maioria das mulheres heterossexuais não atinge o orgasmo na relação sexual somente ou devido à penetração.

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Por outro lado, é extremamente frequente na consulta existir uma preocupação excessiva com o pénis no sentido da ereção e da penetração, que se torna para os homens o foco estrito da atividade sexual. Quando surge um problema com a ereção ou com a penetração é sentido para muitos homens como um desastre, um prenúncio do fim da vida sexual e da sua virilidade. Esta ideia precisa de ser corrigida com educação sexual, com a presença em consultas de sexologia, com informação útil para o homem que o ajude a ultrapassar os problemas sexuais e lhe traga satisfação sexual. Este processo implica também aumentar o repertório sexual, promover relações sexuais não focadas na penetração e clarificar que o orgasmo pode ser atingido de várias formas.

Especialistas em questões sexuais abordam a questão da pressão que os homens enfrentam no seu desempenho íntimo. De que forma esta pressão afeta a saúde mental e sexual masculina, e que estratégias podem ser adotadas para desconstruir esta ideia? 

Quando falamos da pressão relacionada ao desempenho, falamos de ansiedade de performance sexual: este receio e apreensão dirigidos à performance sexual, o medo de não corresponder à expectativa, que espoleta sintomas ansiosos físicos e mentais que atrapalham e, frequentemente, impedem a relação sexual de forma prazerosa. Para muitos homens, experimentar dificuldades sexuais e não poder desabafar sobre o tema pelo medo do julgamento é um fator relevante no aparecimento de sintomas mentais. Para outros homens, o significado atribuído ao seu desempenho sexual e ao impacto neste desempenho pode alterar o modo como se posicionam nos seus relacionamentos, a sua confiança, a sua autoestima. Recordo também que sintomas ansiosos e depressivos afetam diretamente a atividade sexual e que as disfunções sexuais podem causar sintomas ansiosos ou depressivos – trata-se de uma relação bidirecional.

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Como estratégias, podemos recordar a importância de cuidar da saúde como um todo, controlar fatores de risco cardiovascular, alterar fatores de risco modificáveis para doença física ou mental e tratar sintomas existentes. A educação sexual já foi várias vezes referida mas é, de facto, fundamental. Criar espaços seguros para que esta seja implementada é essencial, do mesmo modo que estes espaços também são necessários para os homens explorarem as suas dificuldades, sem pressão ou julgamento. As consultas de sexologia – que têm uma distribuição muito irregular no nosso país – são centrais no tratamento das dificuldades e disfunções sexuais.

Como podemos desafiar a crença de que a duração da relação sexual é mais importante do que a qualidade da mesma, reposicionando o prazer como uma experiência abrangente e não quantitativa?

Colocando o prazer no centro da experiência. As relações sexuais cumprem vários propósitos: satisfazer um desejo erótico, mostrar afeto, promover intimidade, explorar uma fantasia sexual, regular o humor, aliviar um conflito e, fundamentalmente, promover e obter prazer. Expandir o repertório sexual é também promover este foco no prazer, no que sabe bem, na experiência prazerosa e na atenção plena aos estímulos eróticos e prazerosos em vez das preocupações com a performance ou tempo. Na terapia sexual utilizamos determinadas práticas que promovem esta transição, mas na população geral é necessário ainda trazer o prazer para o centro da conversa. Libertar os homens das amarras dos mitos é também incentivá-los a experimentar prazer sexual sem as preocupações com a performance, o que pode ser uma experiência positiva de vulnerabilidade.

Apesar de surgir associada a homens mais velhos, a disfunção erétil também afeta os homens mais jovens? Há uma relação entre a disfunção erétil nos jovens e o stresse, estilos de vida ou até o consumo excessivo de pornografia?

Na consulta são observados homens adultos com disfunção erétil de várias idades. De forma clássica, as disfunções eréteis poderiam ser classificadas em: física, relacionadas a aspetos de doença física como doenças cardiovasculares, diabetes, tabagismo; ou em psicogénicas, associadas a fatores psicológicos como a ansiedade de performance, depressão ou dificuldades relacionais. Hoje, faz sentido fundir ambas as dimensões: um homem com diabetes que experimenta dificuldades com a ereção também poderá tornar-se apreensivo com a atividade sexual, ficar ansioso antes desta e chegar a evitá-la.

Um episódio de dificuldade com a ereção não é um sinónimo de disfunção erétil. Todos os homens podem experimentar dificuldade com a ereção em determinada situação sexual.

Um aspeto que me parece muito importante destacar é: um episódio de dificuldade com a ereção não é um sinónimo de disfunção erétil. Todos os homens podem experimentar dificuldade com a ereção em determinada situação sexual sem que isso signifique um problema ou uma doença. Nos homens com diagnóstico de disfunção sexual, foi efetuada uma história clínica detalhada e existe uma componente dimensional de doença.

Quando falamos dos jovens, múltiplos fatores estão em jogo. Estilos de vida associados a elevados níveis de stress, poucos cuidados de saúde cardiovascular, consumo de substâncias ou a presença de sintomas mentais como ansiedade podem contribuir para episódios de disfunção erétil. O consumo excessivo ou problemático de pornografia pode originar várias dificuldades sexuais, incluindo na excitação e, subsequentemente, na ereção. Outro aspeto relevante da atualidade prende-se com o uso das aplicações de online dating que alteram o panorama e a experiência sexual de muitos jovens.

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Considera que se dá uma excessiva atenção à capacidade erétil e ao tamanho do pénis, face a questões como a prevenção de infeções, saúde reprodutiva e bem-estar psicológico associado à sexualidade?

Sem dúvida. A atenção e preocupação com o tamanho do pénis substitui a atenção que pode ser dirigida a uma sexualidade positiva, focada no bem-estar físico e mental associado à experiência sexual. Quando dizemos saúde sexual é precisamente a interação de todos estes fatores que permitem que a pessoa viva uma vida sexual satisfatória, plena, livre de coação e com o seu consentimento. Quanto às infeções sexualmente transmissíveis (IST), sabemos que o conhecimento que a população geral tem sobre a maioria das ISTs é ainda insuficiente: os meios de transmissão, os métodos de proteção nos diferentes tipos de atividade sexual e, até mesmo, onde e como procurar ser testado e tratado. O estigma relacionado com as IST atrasam a testagem que deve ser regular para todas as pessoas que têm relações sexuais com outras pessoas.

A sexualidade masculina na idade avançada ainda é um tabu. Considera que os mitos sobre super-heróis do desempenho e da virilidade afetam a autoestima e a qualidade de vida de homens mais velhos?

A sexualidade na pessoa com idade avançada é um tabu por dois motivos: o primeiro, mais óbvio, prende-se com o preconceito que existe com a idade. Existe uma dificuldade em conjurar o envelhecimento saudável aliada à crença errada de que a sexualidade desaparece com a andropausa ou a menopausa. Para muitas das pessoas observada em consulta a vida sexual melhora após estes eventos reprodutivos e encontraram mais satisfação e gratificação sexuais com o avançar da idade. O segundo motivo relaciona-se com um preconceito de que o os homens mais velhos, que são sexualmente ativos e que procuram companheiras mais jovens, são percecionados como sendo predatórios” – as pessoas da mesma faixa etária podem não estar disponíveis ou não ter interesse na atividade sexual que estes homens procuram.

Por fim, importa destacar que mitos sobre a sexualidade do homem podem acompanhá-lo a vida toda e levar a que encontre frustração, dúvida ou sofrimento em situações sexuais onde poderia encontrar proximidade e prazer. Penso que muitos de nós gostaríamos de ter um super-poder, mas felizmente não é necessário para que possamos aproveitar as nossas experiências sexuais ao longo dos anos.

Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik