Entre 1997 e 2007 a alergia alimentar aumentou perto de 20% na Europa. Não é uma suposição, trata-se de uma evidência suportada pela Academia Europeia de Alergia e Imunologia Clínica. Contas feitas, 17 milhões de europeus sofrem da doença.
Portugal não é alheio a estes números. Concorrem para o facto fatores genéticos, demográficos e também ambientais. Um exemplo concreto, as alterações na nossa alimentação, seja por nos distanciarmos de padrões alimentares considerados mais saudáveis, seja por nos expormos a uma dieta proveniente de produtos industrializados e pelas produções com recurso a químicos.
Esta é uma realidade aqui aprofundada na conversa que mantivemos com Inês Pádua, nutricionista, doutorada em Ciências do Consumo Alimentar. A investigadora lançou recentemente o livro “Tenho Alergia Alimentar. E Agora?”, pretexto para com a docente aqui aprofundarmos os porquês de olharmos para esta questão como a “segunda onda na epidemia alérgica”. A primeira, vivida no século XIX com o advento da Revolução Industrial.
Hoje, “o próprio sedentarismo, a exposição solar, a poluição ambiental, hábitos tabágicos, utilização indiscriminada de determinados medicamentos”, contribuem para um quadro preocupante, como sublinha a portuense Inês Pádua, também autora de um “Manual de Alergia Alimentar para a Restauração”.
Uma conversa onde não são esquecidas "a excessiva proteção que damos às nossas crianças e que pode estar a contribuir para esta ´epidemia`: é importante que elas não vivam num mundo estéril”.
Que não se menospreze, também, a componente de ansiedade pessoal e social inerente ao portador de alergia alimentar. “Há um enorme grau de ansiedade; a grande maioria dos doentes acaba por reduzir ou evitar de todo as atividades sociais e de lazer com medo de uma exposição acidental”.
Acresce o “bullying, já que estudos têm mostrado que esta é uma realidade presente, e mais prevalente, no dia-a-dia da criança com alergia alimentar”, alerta Inês Pádua.
Logo na abertura do seu livro, no prefácio que lhe é dedicado, o professor doutor André Moreira, refere a alergia alimentar como uma “epidemia recente”. É uma expressão forte. Gostaria que comentasse.
Apesar de ser, de facto, uma expressão forte é uma opinião validada pela evidência científica e por diversos autores/investigadores que se referem à alergia alimentar como a “segunda onda na epidemia alérgica”. A primeira verificou-se no pós Revolução Industrial e que se caracterizou pelo aumento no caso de doenças como a asma e a rinite alérgica.
Quando falamos da epidemiologia da alergia alimentar, e ainda que a prevalência auto percecionada esteja sobre-reportada quando comparada com os resultados de diagnóstico e que o próprio diagnóstico e cuidados de saúde sejam, hoje, cada vez mais precisos e que cheguem a mais pessoas, vários estudos têm mostrado um aumento geral na prevalência da doença. Entre 1997 e 2007, a alergia alimentar aumentou cerca de 20% na Europa e, em 2014, a Academia Europeia de Alergia e Imunologia Clínica falava de cerca de 17 milhões de europeus com a doença.
Entre 1997 e 2007, a alergia alimentar aumentou cerca de 20% na Europa e em 2014, a Academia Europeia de Alergia e Imunologia Clínica falava de cerca de 17 milhões de europeus com a doença.
Estamos atualmente mais expostos a alergias alimentares?
Sim, existe uma prevalência maior. Acredita-se que o aumento do número de casos de pessoas com a alergia alimentar tenha uma origem multifatorial, ou seja, que existam vários fatores que no seu conjunto o justificam. São propostos diversos fatores genéticos, demográficos e também ambientais. Nestes últimos é importante salientar que muitos deles derivam do estilo de vida mais “ocidentalizado”.
Já foram as mudanças no estilo de vida que estiveram na origem da chamada “primeira onda” da epidemia da alergia, com o aumento da Asma, Rinite Alérgica e Dermatite Atópica. E acredita-se que também sejam responsáveis pela segunda onda que é precisamente a da alergia alimentar.
Falamos, por exemplo, de alterações na nossa alimentação, seja por nos distanciarmos de padrões alimentares considerados mais saudáveis, particularmente insuficiência de vitamina D, diminuição na ingestão de ácidos gordos n-3 e o próprio aumento da obesidade e consequente estado pró-inflamatório, seja também pela industrialização da nossa alimentação e pelas produções com recurso a químicos, o próprio sedentarismo, a exposição solar, a poluição ambiental, hábitos tabágicos, utilização indiscriminada de determinados medicamentos (particularmente antibióticos) e nunca esquecer a chamada “hipótese da higiene”.
A sobre-proteção que atualmente fazemos às nossas crianças pode estar a contribuir para esta “epidemia”: é importante que elas não vivam num mundo estéril, é importante que se sujem.
A "hipótese da higiene" sugere que o aumento das doenças alérgicas, incluindo da alergia alimentar, também resulta da diminuição do estímulo que é dado ao nosso sistema imunitário.
Ou seja, a sobre-proteção que atualmente fazemos às nossas crianças pode estar a contribuir para esta “epidemia”: é importante que elas não vivam num mundo estéril, é importante que se sujem, que tenham contacto com a natureza, com a terra, com animais.
No que se refere às alergias alimentares não é exagero afirmar que nunca haverá excesso de zelo por parte dos doentes, certo?
Apesar de querer, com este livro, passar a mensagem positiva relativamente à alergia alimentar, e não de promoção da doença, e tentar fornecer informação e conselhos para lidar com a doença tendo em vista a inclusão e a qualidade de vida, não é de facto exagero afirmar que nunca haverá excesso de zelo. Isto porque, os alergénios alimentares, particularmente os mais prevalentes, são ubiquitários, estando presentes numa lista infindável de produtos alimentares e não alimentares, a maioria de forma não expectável, e também porque a comunidade e sociedade não estão informados para lidar com estes doentes de uma forma que seja promotora da sua segurança.
Especificando, há diferenças entre a alergia e a intolerância alimentar?
Totalmente, são conceitos erradamente utilizados como sinónimos. Embora uma intolerância alimentar seja também uma reação adversa que ocorre após exposição a um determinado alimento, trata-se de uma hipersensibilidade alimentar não alérgica. A intolerância alimentar ao contrário da alergia alimentar, não envolve o sistema imunitário [geralmente só o gastrointestinal] e não põe a vida em risco. Por exemplo, na intolerância à lactose, não existe alergia à proteína do leite de vaca, mas sim a incapacidade de o organismo digerir a lactose [um hidrato de carbono]. São duas condições com mecanismos e gravidades completamente diferentes.
Quais os sintomas de alerta de uma alergia alimentar?
São variáveis. As manifestações clínicas da alergia alimentar podem variar de moderadas a graves e podem ocorrer de forma isolada ou combinada. As manifestações podem ser cutâneas [como Inflamação da pele, comichão e inchaço da glote e da língua]; gastrointestinais [como vómitos, dores abdominais e diarreia]; respiratórias [como pieira ou ”Gatinhos” e dificuldade em respirar] e cardiovasculares [como diminuição da pressão arterial e perda de consciência].
Em extremo, o choque anafilático é a reação alérgica mais temida, pois pode ser fatal. Há alimentos face aos quais temos de redobrar cuidado?
Podemos dizer que existem alimentos que são mais frequentemente associados a anafilaxia como a alergia ao leite de vaca, ovo, peixe, marisco, amendoim e frutos de casca rija. Contudo não quer dizer que não possa ocorrer com outros alimentos.
Ainda sobre a questão anterior, quais são os sinais de alerta?
A anafilaxia é caracterizada pelo início rápido de dificuldade respiratória e/ou circulatória [tonturas, sensação de “desmaio”], geralmente associada a outras manifestações da pele.
Existem grupos etários mais propensos às alergias alimentares?
Podemos dizer que a prevalência da alergia alimentar é maior nas crianças do que nos adultos.
De que forma pode a nutricionista apoiar pacientes com alergias alimentares?
A nutricionista é essencial para acompanhar a dieta de evicção alimentar. Isto é, adaptar a alimentação à necessidade de excluir um ou mais alimentos, de forma a evitar carências nutricionais e efeitos nefastos na saúde. Adicionalmente é também essencial para fornecer orientações para a evicção no geral. Por exemplo, evitar contaminação cruzada, como agir na escola, no restaurante, em viagens.
Diria que a leitura de rótulos é o ponto essencial para o consumidor com alergia alimentar, sendo necessário analisar a lista de ingredientes e avaliar a presença do(s) alergénio(s) em questão.
Enquanto consumidor, a que aspetos deve o indivíduo com alergia estar atento?
Diria que a leitura de rótulos é o ponto essencial para o consumidor com alergia alimentar, sendo necessário analisar a lista de ingredientes e avaliar a presença do(s) alergénio(s) em questão. Embora já existam disposições legais que determinam a obrigatoriedade do destaque da presença de alergénios, o zelo supracitado deve sempre estar presente, sobretudo devido a presença não expectável de determinado alergénio em variados produtos. Exemplificando: um alérgico ao leite poderia, por exemplo, comprar uma lata de salsichas sem nunca se lembrar de ler o rótulo porque, à partida, a salsicha não seria um alimento que continha leite. No caso de umas bolachas de chocolate já é mais expectável.
Já no meio doméstico, quais os perigos a que, inadvertidamente, um indivíduo alérgico se pode expor?
Em casa, o principal problema será a contaminação cruzada que é o contacto, direto ou indireto, de um produto “seguro” com outro que contem o alergénio. Esta contaminação pode ocorrer desde o armazenamento do produto [no frigorífico ou na despensa - recipientes mal -acondicionados que vertem, por exemplo] até ao serviço da refeição, passando obviamente pela confeção dos alimentos.
Adicionalmente, e no seguimento da resposta anterior, muitas vezes temos em casa produtos não alimentares que podem fonte de alergénios e que nem sempre são identificados como tal e que, consequentemente, não nos merecem a atenção necessária. Falamos por exemplo de produtos de higiene e cosmética, medicamentos não sujeitos a receita médica, materiais de desenho e de trabalho.
Muitas vezes temos em casa produtos não alimentares que podem fonte de alergénios e que nem sempre são identificados como tal e que, consequentemente, não nos merecem a atenção necessária.
Há um aspeto associado às alergias alimentares que tendemos a esquecer, as limitações sociais dos portadores de alergias alimentares. Ou seja, há um grau elevado de ansiedade associada a esta problemática?
Há um enorme grau de ansiedade; a grande maioria dos doentes acaba por reduzir ou evitar de todo as atividades sociais e de lazer com medo de uma exposição acidental.
Inclusivamente, esta ansiedade está presente em atividades que não são vistas como um “extra” à rotina diária, e que são, no limite, necessárias, como o ir trabalhar ou ir à escola.
Vários estudos têm mostrado que as reações de alergia alimentar cada vez mais ocorrem em locais públicos o que, naturalmente, demove os doentes e as famílias de planearem atividades fora de casa.
É necessário falar no bullying, já que estudos têm mostrado que esta é uma realidade presente, e mais prevalente, no dia-a-dia da criança com alergia alimentar
Uma ansiedade que pode aumentar face a grupos específicos como crianças e jovens. De que forma?
Nas crianças estamos a falar, sobretudo, do medo e da pressão associadas à necessidade de evicção de produtos muito apreciados pelos mais pequenos e também ao receio de estigmatização.
Contudo, este receio de estigmatização está sobretudo presente nos adolescentes/jovens adultos, o que associado à necessidade de inclusão e à maior liberdade e autonomia fazem com que este seja o grupo etário com maior número de exposições acidentais.
E também é necessário falar no bullying, já que estudos têm mostrado que esta é uma realidade presente, e mais prevalente, no dia a dia da criança com alergia alimentar e que estas são mais suscetíveis a estas formas de intimidação que, no limite, envolvem o contacto forçado da criança com o alimento a que é alérgica podendo levar a consequências graves.
No que respeita à legislação, os indivíduos alérgicos poderiam estar mais “defendidos”?
Recentemente, com o Regulamento 1169/2011 e com o Decreto-Lei nº 26/2016, a proteção do consumidor com alergia alimentar ficou, felizmente, mais prevista. É, no entanto, a meu ver, necessário acompanhar e avaliar o cumprimento destas disposições legais, sobretudo para os produtos não pré-embalados, ou seja, nos estabelecimentos de restauração. Adicionalmente, na legislação ainda existem lacunas a ter em consideração nomeadamente no que diz respeito aos avisos de rotulagem ["pode conter vestígios de..."] já que não está clara e especificamente balizada a sua utilização e que são amplamente usados pela indústria alimentar, limitando, obviamente, a disponibilidade alimentar dos consumidores.
A Inês Pádua é autora de um “Manual de Alergia Alimentar para a Restauração”. Esta é uma área ainda carente de informação por parte dos intervenientes na cadeia alimentar?
Sim, tal como referido o Regulamento 1169/2011 e com o Decreto-Lei nº 26/2016 estenderam a necessidade de informar relativamente à presença de alergénios aos produtos não pré-embalados, ou seja, os servidos em estabelecimentos de restauração. Contudo, para que esta informação seja rigorosa é necessário que os colaboradores estejam informados sobre a doença e as suas condicionantes, e necessidades, e que estejam implementados procedimentos de laboração que visem a segurança do consumidor em termos de alergia alimentar. O que sabemos é este setor ainda carece de muita informação e formação prática.
Este manual foi uma solicitação da Direção Geral da Saúde e do Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável para precisamente tentar preencher algumas lacunas. Contudo, é necessário que este manual chegue a mais estabelecimentos e intervenientes e que seja acompanhado de formação prática, se possível, in loco. É para lá que tentaremos caminhar, embora seja uma realidade difícil.
Comentários