Introdução – Quando um degrau se torna um precipício
Toda a gente desce escadas. Ou melhor, quase toda a gente. Algumas pessoas hesitam, travam, sentem o coração acelerar e os joelhos tremerem ao enfrentar algo que, para os outros, é apenas um conjunto de degraus. Eu sou uma dessas pessoas.
O meu problema tem nome: bathmofobia. Um termo que poucos conhecem, mas que descreve na perfeição o que sinto sempre que olho para uma escada normal. Um medo irracional, desproporcional, uma sensação de que, se der um passo em falso, o chão vai desaparecer debaixo de mim e vou despenhar-me para um destino trágico.
Para muitos, isto pode parecer uma excentricidade, uma paranóia sem fundamento. Mas para mim, é uma realidade diária, um obstáculo constante na minha vida. E o mais curioso é que eu não tenho problemas com escadas rolantes, elevadores ou alturas em geral. O meu inimigo é simples, mas implacável: escadas comuns, sem corrimão, íngremes, de degraus curtos ou desgastados pelo tempo.
Mas como é que se chega a este ponto? Como é que um simples conjunto de degraus se transforma numa ameaça quase existencial? Para entender a minha história, é preciso recuar no tempo e desmontar as camadas deste problema que, para mim, é tão físico quanto psicológico.
A origem do medo – Entre a biologia e os traumas da vida
A minha relação conturbada com as escadas não nasceu do nada. Foi construída ao longo do tempo, num misto de limitações físicas, insegurança e um bom toque de trauma.
- Um olho que me engana
Nasci com um coloboma no olho esquerdo, o que significa que a minha visão central desse lado simplesmente não existe. E isso, por mais pequeno que pareça, afeta algo fundamental para quem tem de encarar escadas: a percepção de profundidade.
A visão binocular – aquela que permite aos dois olhos trabalharem juntos para calcular distâncias – é essencial para entender o mundo em três dimensões. Quem tem os dois olhos funcionais não pensa nisso, mas quando um deles falha, o cérebro tem de aprender a compensar. No meu caso, os degraus parecem menos nítidos, menos previsíveis, quase como sombras que enganam a minha noção de espaço.
Se eu fosse um supercomputador, poderia calcular com precisão onde começa e onde termina cada degrau. Mas como sou apenas humano, dependo de truques – olhar mais para os lados, mexer ligeiramente a cabeça para criar um efeito de profundidade, confiar no instinto. Só que instinto, quando se tem medo, é um péssimo conselheiro.
- Uma audição que não me segura
Como se a questão da visão já não fosse suficiente, tenho também problemas auditivos que afetam o meu equilíbrio. Pouca gente sabe, mas o ouvido interno é um dos principais responsáveis pela nossa estabilidade. Quando há alguma disfunção, o cérebro tem mais dificuldade em manter o corpo firme e coordenado.
Agora imaginem descer uma escada, já com dificuldades de calcular as distâncias, e ainda por cima sentir uma leve instabilidade no corpo. Cada degrau torna-se um potencial tropeção. E a mente, sempre dramática, adora lembrar-me de que um erro pode significar um tombo espetacular.
- A queda que mudou tudo
Não sei dizer ao certo quando isto começou a piorar, mas lembro-me de uma queda que pode ter sido o gatilho definitivo. Uma daquelas quedas que não nos partem os ossos, mas nos partem a confiança. Um pé mal colocado, um escorregão inesperado, um segundo de desorientação – e, de repente, o mundo está virado ao contrário.
Desde então, as escadas passaram de um desafio para um pesadelo. A minha mente passou a fazer o que melhor sabe: antecipar o pior cenário possível. Mesmo quando nada de grave pode acontecer, o cérebro sussurra: “E se desta vez for pior? E se não conseguires equilibrar-te? E se caires de forma ridícula e todos rirem?”
E é assim que um medo nasce e se alimenta – da memória do erro e da antecipação da catástrofe.
O dia a dia de quem teme escadas
Podia dizer que esta fobia não afeta muito a minha vida, mas estaria a mentir. A verdade é que, sempre que sei que vou ter de enfrentar escadas desconhecidas, já começo a sentir um aperto no peito.
- O dilema do corrimão
Se há corrimão, ótimo. Mas será que as pessoas vão reparar no facto de eu agarrá-lo com força, como se estivesse numa montanha-russa?
- O desconforto social
Ninguém quer parecer desajeitado em público. Mas quando paro por um segundo no topo da escada, tentando ganhar coragem, sinto o peso dos olhares curiosos.
- A estratégia do “não preciso disto hoje”
Já dei voltas absurdas para evitar escadas. Às vezes, prefiro ir pelo caminho mais longo ou esperar por um elevador só para evitar o desconforto.
Mas sabem o pior? É que racionalmente eu sei que consigo descer escadas. Já o fiz milhares de vezes. Mas a mente, essa vilã, adora sabotar o corpo.
Entre a superação e a aceitação
Se me perguntassem se há cura para isto, eu diria que talvez. A exposição gradual ajuda, os exercícios de equilíbrio podem melhorar a estabilidade, e técnicas de respiração podem acalmar a ansiedade.
Mas sabem que mais? Eu não preciso de “curar-me”. O que preciso é de aceitar que, se eu quiser segurar-me no corrimão, não há problema. Se eu precisar de mais tempo para descer uma escada, paciência. Superação nem sempre significa vencer o medo por completo – às vezes, significa aprender a viver com ele sem nos limitarmos completamente.
Hoje, quando vejo uma escada, já não fujo como antes. Paro, respiro fundo e encaro o desafio. Às vezes, desço com confiança. Outras vezes, sinto aquele frio na barriga e seguro-me como se fosse um alpinista. Mas o importante é que continuo a descer. Um degrau de cada vez.
E se um dia me virem hesitante no topo de uma escada, não me apressem. Apenas esperem e apreciem o espetáculo da minha própria batalha interna. Afinal, entre o degrau e o abismo, há sempre um caminho a seguir.
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