A classe médica no nosso país tem um património reivindicativo, civilizacional e humanista com uma enorme dimensão.

Durante o regime ditatorial, os médicos portugueses desenvolveram importantes ações reivindicativas que marcaram sucessivas gerações.

Alguns dos ensinamentos que se podem extrair desse período é que o movimento reivindicativo foi de uma ampla pluralidade política com permanentes preocupações de estabelecer pontes entre as várias sensibilidades, o que possibilitou congregar à volta das suas propostas a grande maioria dos médicos, inclusive os que eram membros da Assembleia Nacional do regime ditatorial.

Outro aspeto relevante é que o movimento médico mostrou uma enorme coragem em desafiar o regime e nunca hesitou na defesa das suas propostas, apesar das constantes ameaças que se fizeram sempre sentir sobre as suas lideranças.

Importa também registar que os médicos tomaram a firme iniciativa em colocar na discussão pública os graves problemas profissionais que os atingiam e de os articular com a urgente necessidade de se fundar um sistema de saúde geral e universal.

Por outro lado, ainda, as intervenções desenvolvidas foram alicerçadas num pensamento estratégico e na elaboração de propostas de solução devidamente fundamentadas, nunca perdendo a dianteira na condução do processo reivindicativo.

A seguir à restauração da Democracia em 25 de Abril de 1974, foram os médicos mais jovens a proporem a criação do designado “ serviço médico à periferia” onde durante um ano eram colocados nas zonas interiores do país para aí desenvolverem a prestação de cuidados de saúde a populações que, em muitos casos, nunca tinham visto um médico e também a implementação de medidas embrionárias para a futura rede de cuidados de saúde primários.

Em 1977, o então secretário de estado da saúde, Dr. Paulo Mendo, através do DL nº 129/77 e do decreto regulamentar nº 30/77, estabeleceu a gestão democrática e participada nos hospitais com a eleição do representante dos médicos e dos enfermeiros nos respetivos conselhos de administração.

É também com o Dr, Paulo Mendo, uns anos mais tarde de novo secretário de estado da saúde, que foi negociado o primeiro diploma das carreiras médicas aprovado pelo DL nº 310/82.

Em 1988, era ministra da saúde a Drª Leonor Beleza e primeiro-ministro o Dr Cavaco Silva que se iniciam as cruzadas contra a classe médica e as tentativas de diabolização dos médicos junto da sociedade.

No ano anterior foi aplicada a legislação que eliminou o vínculo às carreiras médicas por parte dos médicos internos que concluíam com aproveitamento o internato da especialidade.

A publicação de uma nova legislação sobre a gestão hospitalar eliminou a gestão democrática e participada e em seu lugar foi introduzido o princípio do comissariado político nas nomeações dos cargos das administrações.

Em seguida foi desencadeada uma violenta campanha política por parte do governo, visando destruir as carreiras médicas.

Nesta altura, a classe médica ergueu-se na enérgica defesa dos seus interesses profissionais e desencadeou diversas assembleias e plenários de norte a sul do país.

Por várias vezes, centenas de médicos, sobretudo os mais novos, vestidos com as suas batas, ocuparam as galerias da Assembleia da República em momentos onde se discutiram problemas relativos aos seus interesses e à saúde.

As greves culminaram sempre amplas mobilizações regionais, reuniões plenárias nas várias unidades de saúde, bem como um trabalho dinâmico de entendimento e convergência entre as organizações sindicais e entre estas e a Ordem dos Médicos.

Durante meses desenvolveu-se um processo negocial intenso com o governo que, fruto da unidade e firmeza demostradas pela classe médica, acabou por ceder nas suas posições iniciais e possibilitar um acordo com as duas organizações sindicais médicas.

A partir daí, outra grande cruzada foi contra a coesão e o sentimento de corpo profissional dos médicos, apostando na fragmentação da toda a hierarquia técnico-científica da nossa profissão.

Num elevado número de casos, houve diretores clínicos que se prestaram a um trabalho deplorável de “ apunhalarem” a sua classe profissional ao demitirem diretores de serviço e a acumularem o seu cargo na administração com a direção de um ou mais serviços.

Noutros casos, houve serviços que foram fragmentados e que em vez de um diretor passaram a ter coordenadores de unidade.

Em 1994, conseguiu-se através da negociação sindical com a então ministra da saúde Drª Maria de Belém Roseira, a eleição do diretor clínico.

Poucos anos depois, outro ministro da saúde do mesmo governo PS presidido por António Guterres, o Prof Correia de Campos, anulou esta medida e voltou tudo ao reino do comissariado político.

Luís Filipe Pereira como ministro da saúde dos governos presididos por Durão Barroso e Santana Lopes (2002/2005) desencadeou uma violenta cruzada com vista à liquidação integral das carreiras médicas, criando os Hospitais SA, onde não existiam carreiras profissionais e somente contratos individuais de trabalho.

Com a reforma da Administração Pública em 2008 e com a reformulação do sistema de reformas, sendo ministro das finanças o Dr Teixeira dos Santos e o primeiro-ministro o Engº José Sócrates, assistimos a outra grande “machadada “ quando largas centenas dos médicos mais diferenciados tiveram de optar pela reforma antecipada para não serem muito prejudicados nos montantes das suas reformas.

Esta situação, teve logo um enorme impacto na qualidade da formação médica contínua e na transmissão constante da experiência clínica aos setores mais jovens de médicos nos serviços.

Nos últimos anos, com os governos presididos por António Costa, continuámos a assistir a uma hostilização à classe médica que chegou ao extremo de chamar cobardes a um grupo de médicos em pleno combate à pandemia.

Simultaneamente, a negociação sindical em torno da revitalização e dignificação da carreira médica foi sempre obstaculizada, conduzindo ao contínuo agravamento do funcionamento dos serviços de saúde.

A enorme gravidade da situação que hoje se coloca aos médicos exige medidas urgentes que possam determinar uma alteração de rumo ao caminho suicidário que tem sido conduzido nas ações reivindicativas.