A endometriose é por vezes diagnosticada muito depois dos primeiros sintomas. No seu caso, como descobriu que tinha esta doença?
Obter o diagnóstico infelizmente ainda é muito difícil e o meu caso não foi exceção. Por ainda ser uma doença desconhecida, não devemos desistir nem aceitar, devemos questionar e alertar sempre. Após dezenas de consultas e mais de uma década de dor, só consegui ter um diagnóstico correto na segunda Ressonância Magnética (RM) que fiz, por conta própria, por indicação de um médico especialista em Endometriose, que procurei no privado, apesar de estar a ser seguida há vários anos em duas Unidades Hospitalares do SNS.
Porque demorou o diagnóstico?
A primeira RM que fiz foi inconclusiva e isto acontece constantemente pois se o técnico de diagnóstico não conhece a patologia não conseguirá identificá-la, mesmo nos casos mais graves. Antes da RM fiz várias Ecografias Endovaginais também elas inconclusivas. Tenho sintomas desde os meus dezoito anos, mesmo tomando a pílula desde dos dezassete, tive sempre dor pélvica quando sangrava, que infelizmente nunca foi valorizada e foi piorando ao longo do tempo. Para além destes sintomas, tinha outros associados, nomeadamente prisão de ventre, vontade constante de urinar, pressão e dor na bexiga, dores de cabeça e uma fadiga que me fazia sentir culpada constantemente. Fiz vários exames ao longo destes anos, desde colonoscopias a ecografias várias e nunca nada foi detetado. Fui seguida por vários ginecologistas mas só com os especialistas em Endometriose é que me foi possível ter um diagnóstico - para um especialista em Endometriose basta o exame de toque para poder identificar algumas lesões nos canais vaginal e retal.
É preciso ser persistente para oter o diagnóstico?
É muito importante não desvalorizar as dores menstruais. Estas não são normais e servem sempre de alerta para qualquer problema ou patologia que tenhamos, mesmo que não seja Endometriose. O nosso ciclo é sempre o nosso “barómetro” e é importante estar atenta e conhecê-lo antes de avançar forçosamente para a toma da pílula, pois apesar de ser um excelente contraceptivo não trata verdadeiramente a doença e, por isso, é preciso questionar e abordar a patologia de outra forma, para que os tratamentos sejam cada vez mais e melhores, adaptando-os a cada caso.
Tem sintomas frequentes?
Tenho sintomas quase diariamente, sejam as dores abdominais ou as dores pélvicas e lombares que irradiam para as virilhas e coxas. Como é uma patologia que me afeta bastante o sistema imunitário, tenho também ocasionalmente outras doenças associadas, tais como a sinusite e inflamações de pele. Quando não sinto dor alguma, sinto fadiga, uma falta de energia que me impossibilita de fazer certos tipos de trabalhos fisicamente exigentes e que ainda há bem pouco tempo conseguia fazer.
Qual foi o prognóstico que lhe deram?
Quando fiz a RM conclusiva, identificaram várias lesões e algumas até profundas, nos intestinos, bexiga, útero e ovários. Após algumas consultas no privado, os médicos especialistas recomendaram-me fazer uma cirurgia com urgência por estar em causa a perfuração dos intestinos e comprometimento de outros orgãos. O prognóstico era mau mas ainda assim para algumas unidades hospitalares do nosso Serviço Nacional de Saúde, não é suficiente para avançar para cirurgia relativamente rápido - o tempo previsto é de mais de um ano em algumas unidades. Portanto, o alívio por ter finalmente encontrado uma resposta foi facilmente quebrado por ter um prognóstico não muito feliz e um bloqueio para o seu tratamento. Se não fosse o internamente para controlo de dor no Hospital de São João e o tratamento urgente do meu caso, teria que ter feito a cirurgia no privado, contraindo um empréstimo que, até hoje, não sei como o iria pagar mas que felizmente consegui evitar. É um problema de saúde pública e existem muitas mulheres que não tiveram a sorte que eu tive e que têm que recorrer ao privado ou então ficam uma eternidade à espera de cirurgia. É muito grave e tem consequências duras para todas e todos nós.
Que cuidados diários tem?
Faço acupunctura semanalmente e comecei recentemente um novo tratamento chamado magnetoterapia. As terapêuticas não convencionais têm sido cruciais neste meu processo e é de lamentar que apesar de regulamentadas ainda não haja de facto um reconhecimento por parte do nosso Sistema Nacional de Saúde para que os pacientes possam usufruir destas com a comparticipação justa do Estado.
Felizmente tenho dito muito apoio de vários terapeutas mas lamentavelmente a grande maioria das pessoas não tem essa opção.
Tenho cuidados redobrados com a alimentação, embora tenha tido sempre uma alimentação equilibrada e minimamente saudável, tenho agora algumas restrições - além das que por opção já não consumia, como é o caso das carnes vermelhas e produtos lácteos - nomeadamente com o glúten que tive de abdicar por ser inflamatório, o café, a pimenta, a canela e o gengibre que inicialmente julguei que me fizessem bem mas que neste momento pioram a minha inflamação - é sempre muito importante sermos acompanhadas por vários médicos especialistas que nos indicarão a melhor dieta, pois cada caso é um caso.
Para além destes cuidados, tomo suplementos vitamínicos - infelizmente também estes não são nada acessíveis - para atenuar os sintomas e o reaparecimento de novas lesões. Antes e após a cirurgia fiz a toma da pílula ininterruptamente mas tive de interromper por incompatibilidade pois para além de não me retirar as dores e não curar a doença, sentia e sofria bastante com os vários efeitos secundários. Tive até patologias graves causadas por isso, nomeadamente a depressão, que fui descobrindo ao longo dos anos, nas várias tentativas que fiz com diferentes tipos de pílula.
Apesar de estar a ser seguida, de que forma é que a endometriose a perturba no dia a dia?
Como tenho dores constantes há mais de dois anos, não consigo ter estabilidade a nível financeiro, pois não consigo trabalhar sob os critérios geralmente estipulados; nem a nível social, pois a disponibilidade para ter uma vida socialmente ativa torna-se muito menor e, com isto tudo, suspendemos carreira, amizades e relacionamentos e toda a nossa vida fica transformada, vivendo uma quarentena de dor mesmo antes de haver uma pandemia.
Durante o processo de descoberta do diagnóstico até ao pós-operatório, fiz psicoterapia que foi fundamental para saber lidar com a doença e com os novos desafios que esta me trouxe. Foi muito difícil lidar com este tipo de dor, que é atroz e com o avançar do tempo tornou-se constante, sem um diagnóstico nem tratamento durante muitos anos e com idas constantes às urgências ou a consultas da especialidade, onde os meus sintomas eram constantemente desvalorizadas e até mesmo desrespeitados.
É muito importante que sejam realmente feitos esforços a vários níveis para que a haja um diagnóstico precoce da doença - em 2020 foi aprovado um Projeto de Resolução na Assembleia da República mas não sei se efectivamente estará a ser cumprido e por isso é crucial que se fale sobre o assunto envolvendo toda a comunidade.
Se uma em cada dez mulheres sofre de Endometriose, e tendo eu sido alertada curiosamente por uma amiga que já sofre com esta doença, calculo que haverá muitas outras que possam eventualmente sofrer desta patologia e que infelizmente muitas vezes está disfarçada com a toma da pílula, mas que avança silenciosamente sem ser detetada.
Quando muito avançada, a Endometriose transforma a nossa vida por completo e na grande maioria das vezes muitos orgãos ficam comprometidos e são até removidos, e por isso, acho que todos devemos unir esforços para que isto não aconteça.
Quando fui internada no São João, a grande maioria das mulheres que conheci estavam lá por sofrerem de Endometriose e Adenomiose e muitas delas sem saberem e até mesmo sem terem sintomas gritantes, como no meu caso, mas que o diagnóstico tardio fez com que perdessem o útero, ou ficassem com a bexiga comprometida ou parte dos intestinos.
Comigo a dor foi gritante mas também foi esse alerta que me fez descobrir a doença. Só com várias doses de morfina é que sentia alívio. Com a cirurgia, os problemas intestinais e de bexiga ficaram bastante aliviados mas a dor permanece, pois ainda estou a recuperar da própria intervenção, que apesar de tudo, não é de todo uma recuperação fácil e rápida.
Os problemas de infertilidade são comuns em mulheres em endometriose. Como foi no seu caso?
Em maio do 2021 fiz uma cirurgia laparoscópica onde me foram removidas as várias lesões que tinha nos intestinos, bexiga e ovários. Felizmente os orgãos foram todos salvaguardados, apenas os intestinos sofreram um pequeno corte por terem lesões mais profundas. Seis meses após a cirurgia, fiz uma histerossalpingografia, um exame que me permitiu verificar a permeabilidade das trompas de Falópio. Portanto, no meu caso aparentemente não se aplica a infertilidade. Contudo, esta questão, para mim, tornou-se ao longo dos tempos, secundária, pois quando vivemos numa agonia diária, o que queremos realmente é ficar bem para depois avançarmos com todos os projetos que fomos obrigados a deixar para trás.
A endometriose limita-a na sua sexualidade?
A Endometriose limita-me em qualquer tipo de atividade quando tenho dores. Logo também a atividade sexual fica comprometida, principalmente quando os orgãos estão mais inflamados.
Para além do acompanhamento médico e do tratamento, o que faz no seu quotidiano para diminuir o impacto desta doença?
O acompanhamento com os médicos especialistas no Hospital de São João é feito sensivelmente de seis em seis meses. Por isso, recorro às medicinas não convencionais para me ajudar a aliviar a dor aguda e a combater o avanço da doença e possível reaparecimento de lesões.
Quando fiz a laporoscopia, fiquei conhecida na minha enfermaria como a paciente que saiu do bloco operatório a sorrir de felicidade pois acreditava que após a remoção das lesões não voltaria a ter dores e teria uma vida normal rapidamente. Não foi o caso. Para já, ainda continuo com bastantes dores, a recuperação está a ser mais difícil do que pensava e é preciso salientar que a laparoscopia para excisão de lesões profundas - mesmo quando nenhum órgão fica comprometido - pode ser bastante dolorosa. O repouso total no pós-operatório deve ser mesmo imperativo.
Para salvaguardar-me do esforço físico, aproveito para ler muito e escrever, que são duas coisas que sempre gostei de fazer e que agora me dão mais prazer do que nunca. Quando me sinto melhor e com mais energia, procuro sempre fazer atividades ao ar livre, voltando aos poucos à prática de Yoga e às caminhadas.
Vivo com uma dor intensa mas é também intensamente que vivo o prazer. Esta é a minha fórmula mágica. Não desperdiço energias em momentos que não me dão alegria. Recuso-me a dar tréguas à doença e recuso, acima de tudo, aceitar que não podemos fazer mais por todas e todos nós. Pela nossa saúde, pela saúde de todas e todos temos que deixar de aceitar que dores menstruais são normais. Entrevista originalmente publicada em março de 2022.
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