“Isto é um desígnio nacional, é uma tarefa prioritária nacional e, portanto, estar só e apenas entregue aos cuidados de saúde primários e aos centros de saúde vai fazer com que se resolva um problema criando outro: temos a vacinação a correr, mas não temos os centros de saúde a funcionar como todos gostaríamos”, disse à Lusa o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF).
Nuno Jacinto referiu que a solução pode passar pela contratação de profissionais fora dos centros de saúde e “por uma maior articulação com os profissionais nos hospitais ou até de instituições privadas de saúde”.
“Estamos ainda muito longe de conseguir fazer uma retoma total da nossa atividade porque continuamos deslocados para a vacinação e, nos locais onde vai havendo mais casos, quer positivos quer suspeitos, continuam a ser os colegas das unidades a fazerem vigilância através do ´trace covid’ e dos contactos telefónicos de todos estes utentes”, explicou.
O responsável reconheceu que a vacinação covid-19 “está claramente a drenar muitos recursos às unidades, não só médicos, mas também de enfermagem” e disse que o facto de haver muitos enfermeiros nesta vacinação implica “menos consultas de vigilância de enfermagem” e deixa mais tarefas para os próprios médicos e para os administrativos.
“É uma reação em cadeia. Por alguma razão as unidades precisam desta gente toda. Quando não estão, o funcionamento é muito complicado”, afirmou Nuno Jacinto, lembrando que os profissionais têm alertado para este problema desde o início do processo de vacinação.
O responsável recordou também que a percentagem máxima (30%) de pessoal que se pode requisitar para os centros de vacinação não tem em conta as diferentes realidades de cada unidade de saúde.
“Na minha unidade, todos os dias temos dois enfermeiros que saem para os centros de vacinação, num total de oito. Estamos nos 25%, mas falamos de uma unidade que tem duas extensões rurais e que tem domicílios para fazer dentro da cidade. Chega uma altura em que não conseguimos ter profissionais de enfermagem suficientes para fazer tudo”, reconheceu, sublinhando que, mesmo antes da pandemia, já era difícil dar resposta.
Já antes da pandemia “tínhamos muita dificuldade em dar resposta, por vários fatores, porque as listas [de utentes] são grandes, porque não há recursos suficientes, materiais e humanos, porque há dificuldade com sistemas informáticos”, desabafou.
O presidente da APMGF defendeu igualmente que fazer toda a vacinação em horas extraordinárias “não é solução”, pois os profissionais estão cansados e ainda têm toda a restante atividade para cumprir.
Alertou que “se os cuidados primários ruírem, tudo o resto vai cair em cadeia” e disse que “é uma ilusão pensar-se que o problema fica circunscrito”.
Nuno Jacinto defendeu que é preciso uma solução “pensada numa forma mais estruturada, mais organizada a nível central” para se conseguir dar uma resposta diferente, até porque o processo ainda vai durar alguns meses.
Em declarações à Lusa, o presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (AUSF-AN), Diogo Urjais, defendeu uma mudança de gestão e de visão para os cuidados de saúde primários, com “medidas efetivas e mais direcionadas”.
Disse que “não se pode olhar para os recursos sempre da mesma maneira” e que é preciso uma mudança clara e “um rumo para o futuro”.
“Muitas vezes não se trata apenas de falta de verbas”, afirmou.
Defendeu que o Governo deve decidir “qual é o futuro que quer para o modelo das USF” e apontou mais uma vez a dificuldade de transição das unidades para o modelo B, mais exigente, com maior autonomia e mais incentivos financeiros.
Sobre a carta aberta que a USF-AN divulgou em outubro, na qual os profissionais apontavam a sobrecarga de solicitações por causa da covid-19 e lembravam que as equipas de saúde familiar continuavam a ter muitas tarefas burocráticas e as unidades muitas limitações, Diogo Urjais disse que “nada mudou”.
Na carta aberta, a USF-AN destacava a falta de recursos humanos e sublinhava igualmente o facto de muitas infraestruturas estarem desajustadas da realidade e precisarem de obras.
“A pandemia não pode servir sempre de desculpa. Estamos há muito tempo assim”, afirmou.
O presidente da APMGF, por seu lado, reconheceu que as unidades têm feito “um grande esforço para manter a resposta”, tentando agendar consultas para os grupos vulneráveis e de risco de doença aguda, e alertou: “Continuamos muito focados nos hospitais”.
“Falamos sempre nos internamentos e nos cuidados intensivos. Mas o que nós queremos é que os doentes não cheguem aí e, para que isso aconteça, alguma coisa tem de ser feita até lá”, afirma o responsável, insistindo: “Ao tirar tempo a estas consultas [nos centros de saúde], vamos ter diabéticos mais descontrolados, hipertensos mais descontrolados, crianças que não conseguimos apanhar em todas as idades chave, grávidas que podem ter algum atraso nos seus exames e rastreios que são feitos mais tarde”.
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