![Descoberto gene que pode proteger contra a COVID-19 e outros vírus](/assets/img/blank.png)
Durante a pandemia de COVID-19, um facto intrigou a profissional de saúde Maria Tereza Malheiros Sapienza. O seu marido, o médico Marcelo Sapienza, foi infetado duas vezes pelo SARS-CoV-2 – uma em abril de 2020 e outra em janeiro de 2022–, mas ela não apresentou nenhum sintoma da doença mesmo estando em contacto direto com o companheiro nas duas ocasiões.
A curiosidade com o caso não era exclusividade do casal, que passou a integrar uma investigação conduzida no Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado na Universidade de São Paulo (USP) – sobre “pares sorodiscordantes”, como foram chamados os casos em que apenas um dos cônjuges foi infetado e o outro permaneceu assintomático, apesar de partilharem a mesma cama sem o uso de proteção especial.
O trabalho analisou o material genético de 86 casais, sendo que apenas seis (entre eles Maria Tereza e Marcelo) continuaram sorodiscordantes ao longo da pandemia, com a infeção de um dos cônjuges mais de uma vez. Curiosamente, nos seis casos, só as mulheres permaneceram resistentes ao SARS-CoV-2. Os resultados foram publicados na revista Frontiers in Cellular and Infection Microbiology.
A partir da análise de células do sangue desses casais em experiências in vitro, os pesquisadores descobriram que as mulheres resistentes ao vírus tinham expressão aumentada do gene IFIT3 (sigla em inglês para proteína induzida por interferon com repetições de tetratricoptídeo 3) em comparação com os maridos. Já a expressão desse mesmo gene entre mulheres que adquiriram infeções sintomáticas foi baixa, semelhante à do grupo dos maridos.
“Trata-se de um gene que faz parte da resposta antiviral. Ele já foi descrito em estudos anteriores como estando relacionado à proteção contra outras doenças virais, entre elas dengue, hepatite B e adenovírus. Só que, no nosso trabalho, conseguimos pela primeira vez provar esse efeito protetor para além da teoria, pois é muito improvável que as seis mulheres não tenham sido expostas ao SARS-CoV-2 numa condição em que dividiram ambientes e cuidaram dos maridos infetados”, comenta Mateus Vidigal, primeiro autor do artigo, fruto do seu projeto de pós-doutoramento apoiado pela FAPESP.
Como explica o investigador, o gene IFIT3 codifica uma proteína de mesmo nome que se liga ao RNA do vírus, impossibilitando a sua replicação e impedindo que o agente patogénico invada novas células e a doença progrida.
“O vírus invade a célula, porém, todo aquele processo de se replicar para romper a membrana celular e invadir o maior número possível de outras células é interrompido logo no começo. A proteína IFIT3 cola-se ao RNA viral, impossibilitando a sua replicação. Ou seja, não é que essas mulheres não tenham sido infetadas, elas foram. Mas o vírus mal se multiplicou dentro das suas células e, por isso, elas não tiveram a doença”, explicou.
O estudo com casais sorodiscordantes começou em 2020. Na primeira fase, os investigadores analisaram o exoma – parte do genoma onde ficam os genes codificadores de proteína – de 86 casais e notaram que havia diferença em dois genes entre os parceiros resistentes e infetados. Essas variantes aparentemente diminuíam as células NK (natural killers), um dos tipos de linfócitos, apenas nos cônjuges infetados.
Ao longo da pandemia, houve vários casos de reinfeção no grupo de voluntários do estudo, sendo que apenas seis mulheres continuaram resistentes. Para investigar o mecanismo de proteção, os investigadores analisaram amostras de sangue desses casais em duas ocasiões: uma em 2020, logo após a primeira infeção dos homens, e outra em 2022, depois da segunda infeção (na segunda ocasião os participantes já tinham recebido duas doses da vacina contra a COVID-19).
“Com essas amostras, isolamos as células mononucleares do sangue periférico, principalmente linfócitos e monócitos, e estimulámo-las em laboratório com um agente viral sintético que mimetiza o SARS-CoV-2. Com essa experiência, pudemos notar que as células das mulheres resistentes apresentavam uma expressão aumentada do gene IFIT3 em comparação tanto com os maridos quanto com um grupo de cinco mulheres que desenvolveram COVID-19 [grupo-controlo]”, conta Vidigal.
Além de responder a uma antiga curiosidade desde os primeiros meses da pandemia, o estudo traz desdobramentos importantes. O achado torna o IFIT3 um potencial alvo terapêutico para novas terapias antivirais, que supostamente poderiam potencializar a resposta imunológica inata contra o SARS-CoV-2 e outros patógenos – já que a proteção conferida pela superexpressão desse gene não é exclusiva contra o SARS-CoV-2.
“Sem dúvida o grande resultado dessa pesquisa é que encontramos um biomarcador de resistência ao vírus. O desenho do estudo permite-nos ter a certeza quase absoluta de que as mulheres foram expostas ao vírus e apresentaram resistência. Também reproduzimos em laboratório o que pode ter acontecido nas suas células quando entraram em contacto com o SARS-CoV-2”, afirma Edecio Cunha Neto, professor da Faculdade de Medicina (FM-USP) e investigador do Instituto do Coração (InCor).
“Mas ainda precisamos de nos aprofundar na biologia da resistência, entendendo quais mecanismos levam a maior expressão do IFIT3, por exemplo. Portanto, apesar de termos esse achado importante, o nosso estudo continua ainda com mais perguntas", completa Cunha Neto.
O artigo Potential protective role of interferon- induced protein with tetratricopeptide repeats 3 (IFIT3) in COVID-19 pode ser lido em: www.frontiersin.org/journals/cellular-and-infection-microbiology/articles/10.3389/fcimb.2024.1464581/full.
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