
A leishmaniose continua envolta em algum desconhecimento, mesmo entre tutores atentos. Como se instala esta doença infeciosa no organismo do animal e qual é o papel do mosquito flebótomo neste ciclo de transmissão?
A leishmaniose é uma doença infecciosa provocada por parasitas microscópicos do género Leishmania, sendo que em Portugal a espécie mais comum é Leishmania infantum. A infeção ocorre quando as formas promastigotas do parasita são inoculadas na pele do hospedeiro - geralmente o cão, embora também possam ser afetados gatos e humanos - através da picada do vetor, o flebótomo. Este é um pequeno inseto que se alimenta de sangue (hematófago) com menos de três milímetros de comprimento, ou seja, sensivelmente metade do tamanho de um mosquito.
Uma vez no organismo, os parasitas são fagocitados, ou seja, “capturados” por células do sistema imune, como os macrófagos. No interior destas células, transformam-se em formas chamadas amastigotas, onde se instalam e multiplicam de forma ativa. A partir desse ponto, o parasita espalha-se pelo organismo através do sistema linfático e da corrente sanguínea, podendo atingir múltiplos órgãos e tecidos.
Embora estejam descritas outras vias de transmissão em cães, como a transmissão vertical (de mãe para crias), por transfusão sanguínea, via venérea (contacto sexual) ou, mais raramente, por mordeduras, estas ocorrem de forma excecional e não têm impacto relevante na disseminação da doença. A única via com verdadeira importância epidemiológica é a transmissão vetorial, mediada pela picada de flebótomos infetados.

Em termos clínicos, quais são os principais sinais e sintomas da leishmaniose nos cães? E em que fase da doença é mais comum o diagnóstico ser feito?
A leishmaniose canina é, na maioria dos casos, uma doença progressiva e de evolução lenta. Os sinais/sintomas nem sempre são fáceis de identificar numa fase inicial. Muitos tutores só se apercebem de que algo não está bem quando os sintomas já são evidentes, altura em que o organismo do animal pode já estar bastante afetado.
Entre os sinais/sintomas mais frequentes encontram-se a perda progressiva de peso, mesmo quando o cão continua a alimentar-se normalmente; também feridas da pele que demoram a cicatrizar, especialmente nas orelhas focinho e patas. Podemos também elencar como sinais e sintomas a queda de pelo, muitas vezes em torno dos olhos; o crescimento exagerado das unhas; o aumento dos gânglios linfáticos.
Os tutores também devem estar atentos ao cansaço do animal, apatia e menor vontade de brincar e sair à rua; alterações oculares, como inflamação ou vermelhidão; sangramento nasal e, em fases mais avançadas, sinais de insuficiência renal, como aumento da ingestão de água e quantidade de urina.
O diagnóstico é mais comum nos cães que já apresentam sinais clínicos. No entanto, o ideal é que seja feito antes disso. Nas regiões onde a leishmaniose é comum, como é o caso de Portugal, é fundamental realizar rastreios periódicos, mesmo em cães aparentemente saudáveis. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, mais eficaz pode ser o tratamento e melhor será o prognóstico.
Sendo uma zoonose, a leishmaniose representa também um risco para os humanos. Que impacto tem tido em saúde pública e que tipo de infeções humanas já foram registadas em Portugal ou na Europa?
A leishmaniose continua a ser um problema relevante de saúde pública em Portugal e noutros países do sul da Europa, sobretudo na região mediterrânica. No entanto, é ainda muitas vezes subvalorizada, tanto pela população como pelas autoridades de saúde.
A maioria dos casos humanos reportados em Portugal e na Europa são de leishmaniose visceral, a forma mais grave da doença, potencialmente fatal senão tratada.
Em Portugal, a leishmaniose visceral é de notificação obrigatória, o que significa que todos os casos diagnosticados devem ser comunicados às autoridades de saúde. No entanto, segundo dados recentes [Rocha et al., 2024], estima-se que apenas cerca de 50% dos casos diagnosticados sejam efetivamente reportados, o que compromete a vigilância epidemiológica e dificulta o controlo da infeção.
É de destacar que a leishmaniose humana continua a ser classificada como uma doença negligenciada pela Organização Mundial da Saúde. Isto significa que, apesar de ter impactos significativos para a saúde pública, continua a receber pouca atenção em termos de investigação, financiamento e políticas públicas de prevenção.
Como se manifesta a doença nos humanos?
A doença em humanos pode apresentar-se em três formas principais. Passo a detalhar: temos a Leishmaniose cutânea, a forma mais comum a nível global. Surge como uma ou várias feridas na pele, geralmente no local da picada do flebótomo. As lesões podem ser dolorosas, de difícil resolução e deixar cicatrizes permanentes.
A leishmaniose mucocutânea, a forma mais rara, afeta as mucosas da boca, nariz ou garganta. Pode provocar destruição progressiva dos tecidos da face, incluindo cartilagens, levando a lesões desfigurantes. É mais comum no continente americano, mas deve ser considerada sempre que exista histórico de viagem a zonas endémicas.
Por seu turno, a leishmaniose visceral, como anteriormente mencionado, é a forma mais grave da doença ea mais comum em Portugal e na Europa. Afeta órgãos internos como o fígado e o baço, e também a medula óssea. Os sintomas incluem febre, perda de peso, fraqueza, aumento do volume abdominal (devido aoaumento do fígado e do baço), anemia e, em fases avançadas, risco de falência orgânica. Esta forma afeta sobretudo pessoas com o sistema imunitário enfraquecido, como quem vive com VIH/SIDA, pessoas transplantadas, doentes oncológicos a fazer quimioterapia ou pessoas com doenças autoimunes. As crianças pequenas também são mais vulneráveis, devido ao sistema imunitário ainda estar em desenvolvimento.
A leishmaniose é evitável, mas continua a ser negligenciada, mesmo em zonas de alto risco.
O “Estudo de Conhecimento sobre a Leishmaniose 2024” revela dados preocupantes: a perceção derisco continua baixa mesmo em regiões onde a doença é prevalente. O que poderá justificar esta aparente desconexão entre a realidade epidemiológica e a perceção dos tutores?
Apesar de a leishmaniose ser uma doença endémica em Portugal, a perceção do risco por parte da população continua surpreendentemente baixa. Esta desconexão entre a realidade epidemiológica e a perceção das pessoas tem várias explicações plausíveis.
Por um lado, muitos dos inquiridos no estudo afirmaram já ter ouvido falar da doença, mas associam-na quase exclusivamente aos cães, não reconhecendo que também pode afetar seres humanos. Isto reduz a perceção do risco o que faz com que a leishmaniose não seja vista como uma ameaça à saúde pública.
Além disso, parece haver muita confusão sobre a forma como o parasita que causa a leishmaniose é transmitido. Apenas uma minoria (cerca de 14%) sabe que a transmissão ocorre pela picada de flebótomos. Curiosamente, uma percentagem maior (cerca de 20%) dos inquiridos acredita, de forma errada, que a doença se transmite por contacto direto com animais.
O estudo revelou também elevado desconhecimento dos sintomas mais comuns, bem como da perceção da gravidade da doença. Esta falta de conhecimento, aliada ao facto de a leishmaniose evoluir de forma lenta e com sinais/sintomas muitas vezes pouco específicos, contribui para que a doença seja facilmente desvalorizada, tanto em humanos como em animais.
Apesar de estarem disponíveis várias medidas com eficácia comprovada na prevenção da leishmaniose, a adesão por parte dos tutores continua a ser subótima, mesmo em regiões onde o risco de infeção é elevado. Por exemplo, no inquérito realizado, apenas 20% dos tutores de cães referiram vacinar os seus animais contra a leishmaniose.
Perante este cenário, torna-se evidente que a aposta na literacia em saúde é fundamental. A leishmaniose é uma doença evitável, mas continua a ser negligenciada. Educar, informar e sensibilizar são os pilares para travar a sua propagação.
Apenas uma minoria dos tutores sabe que a transmissão se dá pela picada de flebótomos.
Em Portugal, sabemos que existem zonas endémicas com taxas elevadas de infeção. Quais são atualmente as regiões mais críticas? E que fatores tornam essas zonas particularmente propícias à propagação da doença?
Os dados mais recentes apontam para um soroprevalência nacional [ número de indivíduos infectados por um agente infeccioso numa determinada população] de infeção por Leishmania em cães de 12,5%. Os distritos com percentagens mais elevadas são Castelo Branco e Portalegre, refletindo uma maior exposição ao parasita nestas áreas. De uma forma geral o interior do país é considerado a zona demaior risco, em grande parte pelas condições ambientais e ecológicas que favorecem a presença do vetor.
No interior, muitos cães vivem em ambientes mais rurais ou periurbanos, próximos de estábulos, galinheiros ou currais, onde é comum a acumulação de matéria orgânica. Estes locais criam condições ideais para o desenvolvimento e reprodução dos flebótomos, os insetos que transmitem o parasita. Além disso, o clima do interior tende a favorecer a atividade dos flebótomos.
Embora o risco seja tradicionalmente mais elevado em zonas rurais, os cães que vivem em áreas suburbanas ou urbanas também estão frequentemente expostos ao parasita e, por isso, em risco de desenvolver leishmaniose. Ou seja, esta não é uma doença exclusiva do “campo”, é uma realidade presente em várias regiões de Portugal e exige vigilância e medidas preventivas em todo o território.
Com a aproximação do verão, assistimos a um aumento significativo da atividade do mosquitovetor. Que medidas concretas recomenda aos tutores durante esta altura do ano para minimizar os riscos?
Em Portugal, os flebótomos estão tipicamente ativos entre os meses de abril e outubro. Este é, por isso, o período de maior risco de transmissão do parasita Leishmania. Importa salientar que este intervalo de atividade tem vindo a aumentar, em parte motivado pelas alterações climáticas.
Para minimizar o risco de infeção, a estratégia mais eficaz é combinar várias medidas preventivas. Nenhuma oferece proteção total por si só, mas em conjunto, reduzem significativamente a probabilidade de o cão ser infetado e de desenvolver doença. O uso de repelentes com ação comprovada contra flebótomos, como coleiras, pipetas ou sprays, deve ser contínuo, pelo menos durante os meses em que o vetor está ativo. Estes produtos funcionam como a primeira linha de proteção, com o objetivo de evitar que o flebótomo pique o cão e, assim, impedir que o parasita seja transmitido.
As vacinas e os imunomoduladores não impedem a picada dos flebótomos, mas ajudam o sistema imunitário do cão a reconhecer e reagir de forma mais eficaz à infeção pelo parasita Leishmania. Isto reduz significativamente o risco de desenvolvimento de doença clínica, especialmente nas formas mais graves. Em zonas endémicas, como é o caso de Portugal Continental, a vacinação ou, em alternativa, o uso de imunomoduladores, deve ser considerada como parte do plano de prevenção, especialmente em cães com maior risco de exposição, e sempre sob orientação do médico veterinário.
Dado que os flebótomos estão mais ativos entre o pôr e o nascer do sol, especialmente nos meses mais quentes, sempre que possível, deve evitar-se que o cão esteja no exterior durante esse período. Estas medidas simples podem ajudar a prevenir a picada do vetor e, com ela, a infeção por Leishmania.
Referiu a vacinação. Esta é frequentemente mencionada como medida eficaz, mas ainda há alguma resistência por parte dos tutores dos animais. Que dados temos hoje sobre a eficácia da vacina e o seu papel no controlo da doença?
A vacinação é uma das formas mais eficazes de reduzir o risco de um cão desenvolver leishmaniose clínica, diminuindo significativamente a probabilidade de progressão para formas graves de doença.
Em Portugal, está atualmente disponível uma vacina autorizada, cujos estudos demonstram ser segura, bem tolerada e eficaz. Em zonas endémicas, a vacina mostrou uma eficácia superior a 70% na prevenção do desenvolvimento de leishmaniose em cães infetados, e pode ser administrada a cães a partir dos seis meses de idade.
Apesar destes benefícios, é importante reforçar que a vacinação não impede a infeção. O seu papel é otimizar a resposta imunitária do cão frente ao parasita.
A vacinação deve, por isso, ser vista como parte de uma estratégia de prevenção combinada, que inclui também o uso regular de repelentes eficazes contra flebótomos.
O diagnóstico precoce pode fazer toda a diferença no prognóstico e qualidade de vida do animal.
Que papel têm os profissionais veterinários na educação contínua dos tutores, sobretudo num país onde a doença é endémica?
Os médicos e enfermeiros veterinários têm um papel central na prevenção da leishmaniose, tanto na proteção da saúde dos animais como na defesa da saúde pública.
Sendo uma zoonose, a leishmaniose exige uma abordagem integrada, alinhada com o conceito de “Uma Só Saúde”, que reconhece a ligação entre a saúde dos animais, das pessoas e do ambiente.
No dia a dia, cabe a estes profissionais esclarecer os tutores sobre os riscos reais da doença, explicar as formas de prevenção mais eficazes e ajustar as medidas preventivas ao estilo de vida e risco de exposição de cada animal.
Ao educarem os tutores, estes profissionais não estão apenas a proteger os cães, estão também a proteger as famílias e comunidades que convivem com eles.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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