Entrevista publicado originalmenete em abril de 2022 e recuperada a propósito do Dia Mundial de Luta Contra o Cancro.
“Tenho falado tanto sobre o cancro que quase me sinto como os comentadores daqueles programas desportivos que falam do futebol constantemente. Eu estou para o cancro como o Manuel Serrão está para o futebol – não sabemos calar-nos sobre o assunto”. Provavelmente não esperaria o leitor deparar-se com este excerto humorado na abertura de um livro que traz para a capa a palavra cancro e fá-lo em letras capitulares. Contudo, quem conhece a autora, Marine Antunes, sabe que o termo “cancro” também é conjugável com as palavras “sorriso”, “humor” e “teimosia”.
Marine ofereceu aos escaparates o livro Manual Para Descomplicar o Cancro (edição Marcador), um relato na primeira pessoa de uma sobrevivente oncológica, mas também de alguém que, há anos, comunica e partilha a sua história recorrendo a uma ferramenta contagiante, o humor.
À conversa com a criadora do projeto Cancro com Humor, enveredamos pelo caminho predileto de Marine, aquele que descomplica. Falamos abertamente dos medos associados à doença, mas também de como lhe podemos abrir um sorriso e lutar para que não nos roube a essência, no caso da autora, a felicidade. Uma conversa que afasta expressões como “luta contra o cancro” – “não aprecio nada que incentive a uma raiva, a uma gana, a um estado de espírito de guerra numa fase em que precisamos de paz na caminhada”, sublinha Marine - e que diz não a pessoas tóxicas, aquelas que nunca serão boas companheiras na “travessia do deserto”.
Ainda na escrita, Marine Antunes é autora do livro Teorias de Uma (Not) Atinadinha, foi autora da banda desenhada É de Se lhe Tirar o Chapéu.
Cancro é uma palavra que continua a gerar temor e a abrir a porta a medos. Marine, o que significa “Descomplicar o Cancro”?
É verdade. O cancro assusta e continuará a assustar e é exatamente por isso que é urgente descomplicar. Quando falamos em humor e em descomplicar o que à partida é tão doloroso é, no fundo, permitir que o cancro não domine a nossa vida inteira. Não é sobre fazer piadas com cancro é sobre permitir que o humor e alegria entre na nossa vida mesmo num diagnóstico de cancro. Descomplicar significa, por exemplo, termos nas nossas mãos um livro cuja palavra “cancro” está escrita em letras grandes na capa porque podemos dizer o nome da doença mesmo que tanta gente ainda tenha medo de a dizer. Ainda se morre muito de doença prolongada em Portugal e as vozes tremem quando se fala em cancro. Pois, mas quem é diagnosticado com cancro, como eu fui, precisa que se fale sem medo, que se converse sem medo, que não se sussurre nem segrede. Descomplicar é trazer o tema para as casas, para a rua, para as escolas, é permitir que se fale tanto até deixar de ser um estigma.
A Marine já nos habituou a enfrentar o tema cancro com humor. É autora do projeto Cancro com Humor. Quer apresentar a iniciativa aos leitores que ainda não a conhecem?
Enquanto sobrevivente do cancro, sempre fui descomplicada. Não me queixei dos tratamentos, nem dos internamentos, aceitei o que teria de viver não colocando mais dificuldades ao que já era difícil. Acho que fui uma doente “fácil” no sentido em que segui à risca o que os médicos disseram para fazer, mas também fiz a minha parte - fui bem disposta e estive sempre predisposta a ficar bem. Nesse processo usei, sem querer e sem saber, a ferramenta do humor. E o humor é uma arma que empodera porque nos permite rir das nossas fragilidades. Em 2013, através de um blogue e de uma página no Facebook criei o projeto Cancro com Humor sem qualquer pretensão: comecei a escrever para pessoas como eu, que precisavam encontrar no caos alguma beleza. E, sem nunca pensar que assim fosse, o projeto chegou a doentes, depois aos cuidadores, aos profissionais de saúde e dez anos depois, transformou-se em quatro livros, centenas de Palestras Motivacionais e ações de sensibilização e a um sem fim de textos e partilhas de histórias, minhas e de outros, de superação. O projeto Cancro com Humor está nas redes sociais, mas também no youtube em formato de vídeo para todos aqueles que não querem que o cancro domine todo o espaço. Há alguns anos que esta minha missão se tornou também no meu modo de vida e hoje, deito e adormeço a pensar num projeto que só quer tornar a vida mais fácil a quem precisa.
Quem é diagnosticado com cancro, como eu fui, precisa que se fale sem medo, que se converse sem medo, que não se sussurre nem segrede.
Ainda sobre o humor, sempre tão presente nos seus trabalhos, no momento em que a Marine teve de enfrentar o cancro, ainda muito jovem, conseguiu abordar a situação com um sorriso?
Fi-lo nas pequenas coisas. Naquele tempo, já tinha o meu diário amarelo, onde escrevia com a graça da altura, as peripécias do meu dia a dia no hospital ou mesmo sobre os dias na escola quando me comecei a atrever a encarar o mundo com as minhas boinas coloridas. Fi-lo à mesa de jantar, onde ria das coisas banais do dia, mesmo tendo cancro, fi-lo no hospital com o enfermeiro que contava piadas e falava comigo sobre os livros que lia. Não permiti que o cancro roubasse a minha essência feliz, já bastava ter-me tirado as sobrancelhas.
Marine, tendo de substituir a frase “luta contra o cancro”, ao que sei, não a aprecia, por uma outra expressão, qual utilizaria?
Sim, não aprecio nada que incentive a uma raiva, a uma gana, a um estado de espírito de guerra numa fase em que precisamos de paz na caminhada: desculpe se parece que estou a puxar a brasa à minha sardinha, mas não encontro mesmo outra melhor: descomplicar o cancro. Diz tudo, é preciso descomplicar para tornar mais fácil curar.
Sobre o seu último livro, concorda que poderíamos intitulá-lo Guia Prático Para Saber Lidar com o Cancro?
Adorei o nome. Vou usar para o próximo. Acho que sim, poderíamos sim. Este livro que foi escrito de forma tão simples, direta, descomplicada quer mesmo ser uma ferramenta, um auxílio, uma ajuda para quem entra neste mundo da oncologia de repente e vê a sua vida transformada e virada do avesso. É avassalador receber este diagnóstico não só para a pessoa diagnosticada, mas também para todos os que estão à volta, familiares e amigos que não sabem como agir, o que dizer e fazer. Arrisco dizer, que ninguém tem cancro sozinho e, sinceramente, quem não tem cancro precisa tanto deste livro como quem tem.
A Marine chamou para o seu livro diferentes personalidades, de áreas diversas. Quer apresentá-las aos leitores e, sumariamente, referir o que a levou a incluir estas figuras no seu livro?
Com todo o gosto. Convidei três médicos oncologistas, Dr. Diogo Branco, Dra. Joana Febra e Dra. Joana Augusto; a nutricionista Magda Roma; a psicoterapeuta Tânia Costa, a enfermeira oncologista Sara Torcato; a sobrevivente e enfermeira Andreia Costa e ainda, a Presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos Catarina Pazes, a descomplicarem comigo por diferentes razões - em primeiro lugar, reconheço neles o profissionalismo de excelência; em segundo, porque são seres humanos calorosos, empáticos e com um humor fora de série, e em terceiro porque ao cruzar-me profissionalmente com todos eles senti uma ligação e admiração instantânea. Para mim, estes profissionais de saúde reúnem o melhor do profissional e o melhor do lado humano, aliás, não dá para dissociar o lado profissional do lado humano. Pedi-lhes que “tirassem a capa” e que aceitassem ser vulnerabilidade, humor e verdade para que quem leia o livro sinta proximidade com o profissional de saúde. É muito menos assustador passar por tudo isto se percebermos que, à nossa frente, temos uma pessoa que apenas quer o melhor para nós e que fará tudo o que está ao seu alcance.
Digo sempre algo que, pode parecer desconcertante, mas que, quando estive doente, fez todo o sentido para mim: aproveitem esta fase da vossa vida e vivam-na o melhor possível.
Trata carinhosamente como “caloirinhas” as pessoas que enfrentam a notícia recente de um cancro. Esta será uma experiência tão diversa quanto a singularidade de cada um de nós. Não obstante, há algum conselho ou mensagem universal que queira deixar?
Sem dúvida. Digo sempre algo que, pode parecer desconcertante, mas que, quando estive doente, fez todo o sentido para mim: aproveitem esta fase da vossa vida e vivam-na o melhor possível porque, garantidamente, um dia quererão olhar para trás e encontrar também memórias e histórias felizes. Se já temos de passar por isto, não o podemos fazer da melhor maneira? Arrependo-me, por exemplo, de nunca ter tido às minhas companheiras de quarto o quanto as admirava e gostava delas. E tenho a certeza que, se conseguirmos aprender alguma coisa com as experiências difíceis das nossas vidas, acabamos sempre por amadurecer e melhorar.
Há alguma forma mais fácil de formular em palavras a notícia do nosso cancro àqueles que mais amamos?
Sou adepta da simplicidade de discurso. Dizer as coisas como elas são, sem rodeios, com a calma possível e uma energia de superação do discurso. Já vivi alguns desses momentos - já disse que tinha cancro e já mo disseram várias vezes - e vivi-os sempre de forma diferente mas, depois dessa notícia, chegaram sempre os abraços, as lágrimas, o amor e a amizade. Permitir que o humor entre não significa que não se sofra, entendamos isso. E descomplicar não significa que é fácil ter cancro. Não é, não poderia ser e nunca será. Mas não temos o direito de ser felizes em qualquer das nossas fases? Temos. E quando dizemos a alguém que temos cancro não a queremos só informar, queremos garantir que temos ali a nossa equipa a torcer por nós.
A Marine também nos dá no seu livro um “Manual de Etiqueta” de expressões que não devemos dizer a uma pessoa diagnosticada com cancro. Quer salientar alguma em particular?
Começar as frases com “até” - não façam isso. “Até ficas bem careca”; “Até estás com bom ar”; “Até pareces bonita assim”. Ninguém acredita na palavra “até”. Ou se tem algo benéfico para acrescentar e empoderar ou então não se diz nada. Dou sempre este exemplo que, pode parecer pequenino mas faz a diferença no dia da pessoa que precisa de um elogio, uma motivação e que de repente, leva com um “até” que não anima ninguém.
Quais são as piores pessoas que podemos ter ao nosso lado na “travessia do deserto”, como refere no seu livro?
Os negativos e os cobardes. Os negativos são aquelas pessoas que falam com pena, com um tom de voz arrastado, que suspiram ao nosso lado e dizem coisas como, “meu deus, é horrível o que te está a acontecer!”. Os negativos que estão de cara fechada e que não dizem uma graça nem são boa companhia, são a meu ver tóxicos e visitas indesejáveis. Mas os cobardes, aqueles que desaparecem como que por magia, que não telefonam, não falam, não visitam e não perguntam, ficam marcados para sempre. Não esquecemos quem esteve do nosso lado, mas também não esquecemos a ausência.
Os negativos são aquelas pessoas que falam com pena, com um tom de voz arrastado, que suspiram ao nosso lado e dizem coisas como, “meu deus, é horrível o que te está a acontecer!”
Um dos perfis que definiu para a pessoa diagnosticada com cancro destaca a teimosia e vê-a como uma qualidade. Porquê?
O cancro não quer ver ninguém bem, não é verdade? É o maior filho da mãe que anda por aí, mas os teimosos não se resignam. Ele provoca e nós resistimos. Lembro-me de pensar que não haveria de morrer disto, quase como se tivesse sido provocada e, mau-feitio e teimosa como era, agarrava-me a essa vontade absurda de estar viva.
No livro a Marine destaca os “Dez Novos Hábitos de um Survivor”. No seu caso, refere que a Marine depois do cancro é “bem mais interessante do que a primeira”. O que a tornou “mais interessante” e como se manifesta?
Não há outra forma de dizer isto, eu tinha a mania. Era excelente aluna, atleta de competição, filha mais nova de um clã de três meninas; eu sei lá que pessoa teria sido mas, garantidamente, o cancro deu-me a humildade de saber que afinal não controlo nada nem sou melhor que ninguém. O cancro ensinou-me a materializar sonhos (todos os projetos que sonhei, desenhei e concretizei); a não adiar nada, a não ter medo de fazer escolhas, a amar com profundidade e entrega e a aceitar-me na fragilidade. Por isso, fiquei bem mais interessante depois. Depois do cancro, a máscara cai e só fica o essencial.
Marine, quer destacar algum projeto em que esteja envolvida no presente ou venha a estar num futuro próximo?
Sou uma das participantes do projeto “stronger u”, da Marca Uriage e, a convite deles, tenho apresentado a minha Palestra a doentes, cuidadores e profissionais de saúde - irei continuar a fazê-lo nos próximos meses e é algo que me orgulho bastante; o livro continua a ser lido e partilhado e estarei com ele no dia 28 de maio na Feira do Livro da Régua.
Entrevista publicado originalmenete em abril de 2022 e recuperada a propósito do Dia Mundial de Luta Contra o Cancro.
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