A denúncia consta num relatório hoje divulgado, intitulado “Opções futuras: Traçar uma saída equitativa da pandemia da covid-19 (numa tradução livre em português)”, que documenta em mais de 50 páginas como a atual crise pandémica “expôs fragilidades sistémicas na proteção dos direitos básicos” e “gerou uma cascata de abusos dos direitos humanos”.

Quase um ano depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) ter declarado, em 11 de março de 2020, o novo coronavírus SARS-CoV-2 (o responsável pela doença covid-19) como uma pandemia, a HRW defende que muitos países, e os respetivos Governos, devem acabar com a “abordagem repressiva e abusiva” imposta ao longo dos últimos 12 meses e “mudar urgentemente” de direção para assegurar uma saída da atual crise de saúde pública que respeite os direitos humanos.

Entre as diversas recomendações assumidas pela ONG de defesa dos direitos humanos com sede nos Estados Unidos, um novo rumo terá de passar pelo investimento em sistemas públicos de saúde “acessíveis e de possível acesso para todos sem discriminação” durante e para lá da pandemia, pela cooperação estreita entre Governos para aumentar a produção e a distribuição de vacinas (e assim alcançar um acesso universal e equitativo) ou pela garantia de que todas as respostas à crise da covid-19 são compatíveis com a proteção das leis internacionais e nacionais sobre liberdade de expressão e de reunião.

Uma das conclusões deste relatório aponta que, apesar da escalada e da gravidade da ameaça da pandemia justificasse algumas restrições aos direitos, muitos Governos ignoraram as orientações de saúde pública e até usaram a pandemia como pretexto para fazer recuar os direitos.

“Durante a pandemia, os Governos utilizaram a emergência de saúde pública para agarrar o poder, abusar dos direitos e negligenciar sistematicamente algumas populações minoritárias”, afirma Tirana Hassan, diretora-executiva adjunta e diretora de programas da HRW, a propósito desta conclusão do documento.

A HRW enumera que alguns Governos introduziram restrições à circulação que “eram desproporcionadas ou inadequadas à ameaça” da covid-19 e instituíram “políticas discriminatórias”, bem como especifica que algumas autoridades aplicaram medidas “com violência excessiva, por vezes fatal”.

Com base em dados recolhidos pela HRW, mas também por outras organizações da sociedade civil, entidades de monitorização dos direitos humanos, jornalistas e outros observadores, em pelo menos 100 países (entre março de 2020 e fevereiro último), o relatório conclui igualmente que as consequências sociais e económicas da pandemia foram “generalizadas e devastadoras”.

Entre as várias vertentes focadas, o documento traz à luz informações sobre o impacto da crise pandémica nos níveis de pobreza e de desigualdade (associados nomeadamente à paralisação de tantos setores e atividades económicas) e nos direitos de diversos grupos, como os idosos (identificados como uma das faixas da população mais vulneráveis à covid-19), as pessoas com deficiências, os profissionais de saúde, as minorias, os migrantes e refugiados ou as mulheres, indicando, por exemplo, que a violência de género, em particular a violência doméstica contra mulheres, “aumentou em todo o mundo” durante o último ano.

Também denuncia que a pandemia realçou “as fraquezas estruturais dos sistemas públicos de saúde” e como alguns Governos foram seletivos quando tentaram minimizar a propagação do vírus nas prisões, muitas delas sobrelotadas e sem cuidados médicos adequados, e decidiram excluir das libertações autorizadas “ativistas e críticos”.

Lembra igualmente que as restrições de viagens e os bloqueios decretados para impedir a disseminação do vírus dificultaram a entrega de “uma ajuda vital” em alguns países que enfrentam conflitos armados ou emergências humanitárias.

Os problemas de direitos criados pelo uso da tecnologia para combater a pandemia, a concentração das vacinas disponíveis até à data nos países mais ricos e o impacto na educação de milhares de milhões de alunos em todo o mundo devido ao encerramento das escolas decretado por tantos Governos à escala mundial são outras das vertentes focadas do documento, que também não esquece as mais de 2,5 milhões de mortes por covid-19 registadas até à data em todo o mundo e os mais de 114 milhões de casos de infeção pelo SARS-CoV-2 verificados.

O relatório alerta ainda que nos próximos meses as medidas de assistência decretadas em diversas zonas do mundo (nomeadamente moratórias dos créditos de habitação ou de contratos de arrendamento) deverão expirar em muitos países, o que coloca os grupos de baixos rendimentos em maior risco e em perigo.

“Sem maiores medidas para proteger os direitos sociais e económicos, e sem mais apoio económico e meios equitativos de distribuição, a pobreza e a desigualdade deverão aumentar ainda mais”, adverte a HRW, frisando ainda ser necessário “evitar medidas de austeridade que prejudiquem os direitos”, numa referência às opções assumidas na sequência da crise financeira de 2008 e que “aprofundaram as desigualdades”.

A diretora-executiva adjunta da HRW reforça: “Para traçar uma saída equitativa da pandemia de covid-19, os Governos devem assegurar o acesso universal à vacina, ou arriscam-se a aprofundar ainda mais a desigualdade e a erosão dos direitos humanos nos próximos anos”.

E defende que os Governos e as empresas “têm os instrumentos, incluindo vacinas, para gerir e acabar com a pandemia”.

“Como tal, é uma questão de terem coragem moral e a vontade política para fazer isso acontecer”, finaliza Tirana Hassan.