Fará sentido falar de doença valvular cardíaca no meio da crise sanitária provocada pela COVID-19, com o sistema de saúde sob enorme pressão e com a atenção de todos focada nos efeitos da pandemia? Sim! Mais do que antes: em primeiro lugar, a doença valvular cardíaca é frequente e particularmente concentrada nas faixas etárias mais avançadas e, portanto, mais frágeis.
Segundo dados publicados no “Heart Disease and Stroke statistics” de 2021, publicado na prestigiada revista Circulation, 4,3 por cento das pessoas com mais de 70 anos têm estenose valvular aórtica; no mesmo documento a presença da doença da válvula mitral é de 5,2 por cento na população geral. Segundo, os modelos de simulação prevêem que a população de doentes idosos com doença valvular aórtica duplique, na Europa e nos Estados Unidos, até 2050.
Além de ser uma doença muito comum e em forte crescimento, a doença valvular tem um impacto negativo extremamente relevante na vida dos doentes e custos para o sistema de saúde: no caso da insuficiência mitral, por exemplo, estudos recentes reportaram uma taxa de mortalidade entre 35 e 45 por cento, a dois anos e uma taxa de internamentos por insuficiência cardíaca descompensada acima de 60 por cento, devido à fuga de sangue na válvula mitral que surge com diversas doenças, tais como os enfartes.
O que se pode fazer para combater esta doença?
O tratamento da patologia valvular progrediu vertiginosamente em duas décadas: além da grande evolução no tratamento farmacológico da insuficiência cardíaca, assistiu-se ao refinamento das técnicas cirúrgicas e ao aparecimento dos tratamentos através de cateterismo, como a válvula aórtica percutânea (VAP) e o clip mitral. Existe, portanto, um conjunto abrangente de opções terapêuticas à disposição dos clínicos, com tratamentos ainda mais eficazes e menos invasivos desde que usados atempadamente.
Portanto, uma doença grave, frequente e em crescimento, e com múltiplas opções de tratamento, cada vez menos invasivas e adequadas, também, a doentes frágeis – estamos a seguir o caminho correto? Infelizmente, não.
Qual o motivo de tanta preocupação? Em Janeiro passado teve lugar o congresso científico de Cardiologia de Intervenção do grupo Vap APIC, onde são apresentados anualmente os dados do Registo Nacional de VAP e clip mitral. A situação está longe de ser tranquilizadora. Os números dos procedimentos de VAP não mostraram um crescimento substancial em relação ao ano passado, mantendo um volume anual abaixo dos 80 casos por milhão de habitantes, muito inferior à média europeia que já vai em 140. Mas, ainda mais preocupante é a situação do clip mitral, com apenas 4,2 casos por milhão de habitantes, uma estagnação em contraciclo Europeu, com os nossos vizinhos de Espanha (9,5 casos por milhão) e Itália (18,3 casos por milhão em 2019), onde claramente muitos mais doentes tem acesso a este tratamento.
As explicações para este panorama pouco animador são várias, desde algum desconhecimento em relação a novos procedimentos, até às ineficiências da referenciação.
No entanto, a maior limitação atual reside na capacidade da rede de centros que devem providenciar estes tratamentos. Por exemplo, os Centros de Referência em Cardiologia de Intervenção Estrutural, criados em 2014 com objetivo de concentrar volume e expertise num ambiente multidisciplinar, carecem de regras clara para a referenciação de doentes e de um financiamento que permita dotá-los de recursos humanos e infraestruturas adequadas.
É fundamental planear e fomentar, desde já, um plano para capacitar e desenvolver a rede de centros que tratam a patologia valvular cardíaca. E esta necessidade é ainda mais crucial num contexto de grande pressão sobre as listas de espera provocada pelos constrangimentos da pandemia.
Em conclusão, mesmo em tempos de COVID-19, não se pode esquecer que as doenças cardiovasculares continuam a representar um dos maiores inimigos para a saúde da nossa população; que a doença valvular cardíaca afeta uma grande parte dos doentes mais frágeis, os mesmos que são mais vulneráveis às complicações da infeção por COVID-19 e que queremos manter em segurança, fora dos hospitais. Temos muitas opções de tratamento, muitas delas com a capacidade de uma reabilitação rápida dos doentes. Precisamos que os decisores nos ajudem à levá-las a quem precisa.
Um artigo de opinião de Bruno Melica, cardiologista de intervenção no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e membro da Comissão Científica do Valve for Life Portugal.
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