Vivemos sem tempo, com quotidianos de correria entre este e aquele compromisso. Afundamo-nos em tarefas de agenda, balançando entre trabalho e vida pessoa. E, no pouco tempo que sobra, arranjamos uns quantos minutos para comer. Um ato mecânico, sem consciência dos alimentos e, também, sem coração. Juntamos a este frenesim a necessidade de mostrar que tudo está bem. As redes sociais ajudam. Embelezam-nos e às nossas vidas, tornando-as perfeitas. Mas, na realidade, algo (muito) não corre bem.
Querendo sintetizar o que levou a nutricionista Ana Bravo a publicar o seu sétimo livro, “Nutrição com coração” (edição Arena), o parágrafo precedente explica-o. A autora junta ao cenário anterior outros factores que alimentam o “monstro” do desequilíbrio nas nossa vidas: o fundamentalismo alimentar que escraviza as pessoas e que as afasta da consciência sobre o que comem e como o fazem.
Uma conversa com Ana Bravo onde expressões como “gostar da comida”, “da comidinha boa”, e “comida saudável e feliz” estão sempre presentes. A autora, com um percurso de 16 anos na área clínica, também na televisão e na blogosfera, fala-nos na sua conquista de tempo, de como afastou a sombra do burnout e do grande objetivo que a move: “tornar a vida das pessoas mais saudável e feliz”.
Ana Bravo, partindo do título do seu novo livro “Nutrição com coração - Equilíbrio Interior para uma alimentação saudável”, apetece perguntar se nos andamos a amar pouco no que toca à forma como comemos?
Sim, andamos a amar-nos pouco. Atualmente encontramos três realidades distintas. Uma, a das pessoas que não têm preocupação com a saúde, mesmo conscientemente. Gostam de comer e ponto final. Claro que há o reverso da medalha nestas situações.
Depois, há duas realidades opostas, ou seja, a das pessoas que se preocupam demais com a alimentação e fazem das suas vidas um conjunto de regras, com uma exaustiva leitura de rótulos e que comem sem sentir o gosto. No extremo e recorrendo a um termo técnico, refiro-me à Ortorexia [obsessão por ingerir alimentos considerados “bons” e “saudáveis”. Há muitas pessoas nesta condição.
Outra realidade, das três que referi, é o do ritmo acelerado das nossas vidas. Passamos os dias a correr e, neste contexto, as pessoas escolhem gastar menos tempo com a comida, muitas vezes para trabalharem mais quando chegam a casa. Faz-se a cedência à comida processada, sem interesse nutricional. Na realidade não se está a ganhar tempo, está-se a perder tempo de vida. E isto é transversal a todas as classes sociais. É preciso voltar a olhar para a alimentação como um ato de amor.
Passamos os dias a correr e, neste contexto, as pessoas escolhem gastar menos tempo com a comida, muitas vezes para trabalharem mais quando chegam a casa.
A Ana abre precisamente o seu livro com uma história sobre este ritmo acelerado. A sua história e a do “monstro” de que acabou de falar, o da falta de tempo e o parente próximo, o esgotamento. Quer partilhar connosco a sua história?
Nos primeiros 14 anos da minha vida profissional sempre procurei terminar todas as tarefas a que me propunha ou que me eram solicitadas, o mais rapidamente possível. Tudo tinha de estar feito com antecedência. Isto levou a que vivesse uma vida sem perceber o que fazia, sem tempo para mim. Tinha, naturalmente, cuidado com a alimentação, até mesmo por via do contexto familiar. Em determinada altura acusei o excesso de cansaço, privação do sono o que mexia com tudo o resto, inclusivamente dificuldade na concentração. Fui ao médico que me alertou para que estava na fronteira de um burnout. Reservei uma semana para pensar, fiz um retiro sozinha. Fazia falta escutar-me. Sou uma mulher da montanha, transmontana e fui para o meio rural. Percebi que embora adore o que faço, na época não gostava da forma como o fazia, com o amontoar de tarefas. Pensei, vou ficar doente.
Avaliei tudo o que me ocupava profissionalmente com a consultoria, consultas, blogue, livros, entre outros compromissos e tive de abdicar de alguns. Fechei esses compromissos e abrandei o ritmo.
Abre o seu livro com um texto da cantora Carolina Deslandes que escreve que a Ana é “alguém que nos faz sentir que não estamos sozinhos durante o processo” de aquisição de uma alimentação saudável. É comum as pessoas sentirem desamparo nesse processo?
É comum. No meu caso, há um acompanhamento em proximidade com os pacientes. Por exemplo, aumentei em 30 minutos o tempo das minhas primeiras consultas. Percebi que era preciso mais tempo com a pessoa na fase inicial, para perceber aquilo que não nos é contado logo e que exige mais entrega. Aí, os pacientes dão-me mais informação para os poder ajudar. Mais tarde, passado um mês, as pessoas voltam e já trazem um caminho. A primeira semana é a de um plano que é lhes é imposto. Não vão comer o que lhes apetece, quando lhes apetece. Mesmo que custe, têm de resistir. As três semanas seguintes já são semanas de uma avaliação pessoal. Embaladas no plano, as pessoas vão sentir as reais dificuldades. Terão dúvidas, apontam-nas e, na consulta seguinte, falamos.
Em determinada altura acusei o excesso de cansaço, privação do sono o que mexia com tudo o resto, inclusivamente dificuldade na concentração.
Nesse tempo que medeia entre as consultas as pessoas podem sentir-se desamparadas no meio social…
Sim e falamos disso nas consultas. Por exemplo, uma paciente só conseguiu equilibrar o peso e ter maturidade alimentar quando percebeu que não há a dieta do 8 ou do 80. Ou seja, neste caso particular, não convivia, não se exponha socialmente e, desta forma, emagreceu muito rápido. Mas era uma pessoa sociável e acabava por ceder. Ao fim de algum tempo tive de dizer-lhe que precisava de equilíbrio. Ou seja, num dia à sua escolha tem uma refeição livre e come o que quiser ou, em alternativa, se tem várias refeições de convívio, numa comete o excesso na entrada, na seguinte no prato principal e, numa outra, na sobremesa.
Escutamos amiúde a frase “somos o que comemos”. No entanto, a Ana lê esta frase de forma mais abrangente, não a associa só aos alimentos. Quer explicar-nos?
Falo de dois tipos de alimentação, a que nos serve para nutrir e aquela a que chamo o sentir. Ou seja, alimentar as nossas emoções. Nós não comemos só por necessidade fisiológica, porque, por exemplo, precisamos de cálcio e potássio. Não é isso que acontece. Temos de nos alimentar com aquilo que não fazia parte dos meus dias, como referi antes, a que nos toca no espírito ou, se quiser, na alma. Na sua ausência atingimos um desgaste extremo.
A Ana refere a alimentação consciente. É o oposto da alimentação como ato mecânico?
Falo frequentemente dos motivos que nos levam a escolher um plano alimentar. Muitas vezes o que percebo é que as pessoas vão à consulta porque têm um grupo de amigas mais magras, ou porque o namorado lhes diz que estão ´gordinhas`. A pessoa deve mergulhar em si mesma e pensar realmente o que a leva a fazer um plano alimentar. Quando essa vontade vem de dentro e não é imposta, vai resultar. Por exemplo, uma mãe que leva um filho contrariado à consulta de nutrição, não resulta.
Muitas vezes o que percebo é que as pessoas vão à consulta porque têm um grupo de amigas mais magras, ou porque o namorado lhes diz que estão ´gordinhas`.
Mas vivemos numa sociedade da imagem onde as redes sociais exploram a ideia de belo, de imagens editadas e retocadas. Esta pode ser uma realidade perigosa.
Sim, e muitas vezes as pessoas têm vidas infelicíssimas. Embora tenha um Facebook e Instagram, deixo neste meu mais recente livro a mensagem de que não vivo num mundo cor-de-rosa. Naturalmente não acordo sempre bem-dispostas, mas gosto de passar às pessoas uma boa energia. No livro refiro uma obra, “A coragem de ser imperfeito”, de Brené Brown. As pessoas não o assumem. Os influencers geralmente não o assumem. Por exemplo a Catarina Deslandes, de quem já falámos, está a ajudar com os seus dramas e sucessos.
Toca na questão do mundo cor-de-rosa. No seu discurso, a Ana refere exatamente que uma nova vida alimentar pode não ser um mar de rosas. Também se faz de dor?
Numa fase inicial custa, mas depois é um processo natural. A pessoa está a fazer por ela e sentir-se-á bem com o que faz consigo. Irá dormir melhor, estar mais focada. O meu processo demorou tempo, fiz retiros, fui para Bali [Indonésia] com um grupo de mulheres para meditar, encontrei o meu guru. Percebi que onde tinha mais paz era na natureza. Alguém me levou ao meu guru, no início estranhei e, depois, encaixou. Cada um encontra o seu caminho. Temos de nos respeitar.
Ana, voltando um pouco atrás, à questão da imagem. No seu novo livro não publica receitas com fotos editadas ou de estúdio. Há uma mensagem aqui?
Sim. Já o último livro “Sem culpa, com sabor”, com o selo do Serviço Nacional de Saúde, tem fotografias tiradas com o telemóvel, sem edição. A própria foto da capa foi captada por mim.
A que se refere a Ana quando fala de um “fundamentalismo que escraviza as pessoas”?
Refiro-me a um fundamentalismo de opinião a todos os níveis. Por exemplo, falar mal de todos os produtos processados. Há aqueles que, se escolhermos as melhores opções, são ótimos. Por exemplo os iogurtes ou o pão. Tudo vai mudando e nas padarias para responder à procura crescente de mais sabores, sementes, ingredientes da moda, não há só pão de mistura, há o de infinitas coisas. É claro que quando vamos ver a composição do pão, tem açúcar adicionado quando na realidade um pão deve ter farinha, água, fermento e sal. Na realidade, a indústria do pão embalado, tem feito um esforço no caminho oposto de reduzir os ingredientes desnecessários. Não estou a dizer que é maravilhoso. O que digo é que se melhoram produtos alimentares que começaram por ser maus e estão a progredir significativamente.
A Ana assume-se como uma comilona, aliás vem de uma região de boa mesa, Trás-os-Montes. A cozinha tradicional portuguesa, farta em certos ingredientes, como os enchidos, pode ser adaptada a uma dieta mais equilibrada?
Completamente. Lancei um livro, “Saúde no tacho - receitas saudáveis da cozinha portuguesa”, que começou por ser um programa de televisão. Fazíamos pratos tradicionais portugueses, mas adaptando-os a novos contextos, podendo comê-los todos os dias. Nesse âmbito, fazíamos provas cegas nas ruas e as pessoas identificavam o prato e gostavam. Desde que as pessoas tenham a dita consciência, aprendam a cozinhar, assimilam técnicas para reduzir a gordura, o sal. Por exemplo, deixei de comer carne no último Natal e não sinto a falta. O importante é uma alimentação que garanta o aporte de todos os nutrientes.
Quem não se lembra das papas de tapioca da avó? Isso é aconchego. Ou do bolo de maçã caseiro que nos reconforta. Cada pessoa terá o seu sentimento face à comida.
Neste seu mais recente livro a Ana faz uma abordagem às receitas agregando-as em “harmonia, “aconchego”…
Mas não é isso mesmo? Quem não se lembra das papas de tapioca da avó? Isso é aconchego. Ou do bolo de maçã caseiro que nos reconforta. Cada pessoa terá o seu sentimento face à comida. Devemos manter estas memórias com a comida saudável. As papas de tapioca da minha avó tinham muito açúcar. Eu não acrescente esse açúcar e, atualmente, a minha avó já come a tapioca sem açúcar.
Temos falado de conquistas. Para a Ana qual foi a maior conquista?
Sentir que as pessoas confiam em mim, que sou aquilo que mostro ser, que não fantasio no que toca à alimentação. Tenho muitos seguidores que me revelam a sua evolução, o que aprenderam. Claro que é uma conquista.
Como referiu deixou a carne. O que é para si um dia pleno e que lhe ilumine o coração?
Adoro a minha comida, nunca reservo menos de uma hora para o meu almoço. O que faço para gerir a minha semana é ter no frigorífico porções de legumes que me ficam para três dias. Tenho arroz ou quinoa e, depois, escolho a leguminosa que quero. Misturo, acrescento curcuma, outras aromáticas que goste. Aliás, tendo vivido ainda criança uns anos numa aldeia transmontana, próxima a Chaves, onde tinha acesso a uma horta de uma vizinha, adorava um prato de feijão e couves com azeite. Adoro genuinamente a cozinha saudável.
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