Porque nos assalta depressão? O que nos torna vulneráveis a ela? De que forma é que a atual sociedade contribui para este cenário? E que trunfos tem quem consegue escapar a esta epidemia do século XXI? Carlos Braz Saraiva, médico psiquiatra do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina, responde a estas questões, numa entrevista exclusiva à Saber Viver. Aprenda com o especialista a detetar, prevenir e lidar com esta doença.
O que distingue a tristeza da depressão?
Tristeza é um sentimento comum a todos nós, a depressão uma doença que só ocorre a alguns. Enquanto uma pessoa triste irá recuperar desse estado emocional transitório, o deprimido é alguém que tem o humor depressivo, algo profundo e persistente. Há ainda outro sintoma cardinal, a incapacidade para sentir prazer.
Depois acrescem outros sintomas como as perturbações do sono, do apetite, da perda de peso, sentimentos de culpa, de desvalorização, perda de auto-estima, alterações da concentração, culpabilidade, ideação suicida, entre outros.
A atual sociedade contribui para o avolumar dos casos de depressão?
O atual ritmo de vida não se compadece com os ritmos biológicos. Quase todos nós vemos televisão em excesso, deitamo-nos tarde e somos solicitados para acordar cedo para produzir. Isto foge aos ritmos biológicos naturais. Tentamos viver contra a natureza o que tem custos, nomeadamente enxaquecas, insónias e irritabilidade.
As pessoas tomam comprimidos para dormir e cafés para acordar. Há uma grande perversão da própria sociedade que é consequência do ritmo endiabrado exigido pela máquina de produção.
Mas só alguns de nós quebram?
Isso tem a ver com a carapaça psicológica. Nem todos estamos preparados para enfrentar as agruras da vida ou porque não nos ensinaram em criança, ou porque a nossa autoestima é pobre ou porque o estímulo nefasto é demasiado grandioso ou por falta de amparo em períodos críticos do desenvolvimento.
Que armas tem quem não sofre de depressão?
Uma família que suporte emocionalmente é fundamental nos períodos críticos. Ter escapatórias sociais também. Há pessoas que graças aos seus hobbies conseguem lidar melhor com situações mais problemáticas do dia a dia. Mas também a existência de um confidente, principalmente na adolescência é importante. A pessoa sentir-se só e amargurada é meio caminho andado para ficar desesperançada.
O que contribui para que sejamos mais suscetíveis a viver uma depressão?
Há a ideia de que todos temos que ser melhores do que os outros. E isto é uma ratoeira. Todos temos um ranking e não é nenhum drama não estarmos à frente. Tem de se fazer o melhor possível naquilo que se tem mais aptidões, sem ter de se sacrificar ou lutar em frenesim por uma fasquia que provavelmente é impossível de alcançar. Temos que conhecer os nossos limites. Mas não estamos preparados para aceitar pequenas perdas diárias. Não gostamos de falhar.
Veja na página seguinte: O stresse pode causar depressão?
O stresse pode ser um fator determinante na depressão?
Nem todo o stresse é maligno. Quando é propulsivo, quando funciona como uma mola para as pessoas serem capazes de desempenhar as suas tarefas é benigno. O problema é a dose, o quanto baste. Enquanto que há pessoas que conseguem integrar o stresse e dar a volta ao texto outras ficam reféns desse estímulo potencialmente doloroso que lhes vai alterar os comportamentos.
Como podemos contrariar o stresse?
Um ponto essencial é a higiene do sono. As pessoas não podem ter uma vida frenética, consumir estimulantes e querer dormir. Por outro lado, os portugueses são conhecidos por ingerirem sal a mais, estarem a ficar obesos e não praticarem desportos, nem andar a pé.
Atuar a estes níveis é importante também porque o facto de as pessoas se sentirem bem melhora a autoestima, o que funciona como um escudo protetor contra determinados desaires da vida que poderão eventualmente levar a quadros depressivos.
Qual a relação entre autoestima e depressão?
A baixa autoestima é uma dimensão fragilizadora que pode fazer com que uma pessoa se deprima mais facilmente e prejudicar a saída da depressão.
Indivíduos pessimistas são mais propensos a sofrer de depressão?
São. Aliás há um conceito muito curioso que é uma medida do pessimismo que é a desesperança. No fundo, é a persistência de um pessimismo que não tem a perspetiva de finitude. Mas, pelo contrário, um curso longínquo. É como se fosse um pessimismo da alma que percorre meses ou anos. Essas pessoas são mais atreitas a deprimirem-se.
Qual a relação entre ansiedade e depressão?
Na depressão é muito frequente existirem sintomas ansiosos que só devem ser valorizados se devido à sua severidade forem capazes de prejudicar o desempenho social, profissional, familiar. Nesses casos considera-se que é uma ansiedade excessiva e só nessa perspetiva é que devemos considerar a eventualidade de fazer a medicação específica, caso a caso.
Como se pode impedir que a ansiedade se instale?
Tem de haver um retorno ao corpo e é preciso que as pessoas encontrem tempo para desenvolverem atividades. Por exemplo nadar permite aprender a respirar e se a pessoa respirar melhor não hiperventila, não tem dores de cabeça, nem tremores, nem falta de ar.
Grande parte das doenças da ansiedade estão relacionadas com dificuldades em fazer uma respiração saudável. Para além disso, as pessoas deviam andar no mínimo 30 minutos a pé, todos os dias, em passo rápido. Depois há todo o conjunto de cuidados alimentares.
Veja na página seguinte: Há fatores hereditários na base da depressão?
Há fatores hereditários na base da depressão?
Sim. Sabe-se hoje que existem certos neurotransmissores que nos quadros depressivos graves estão perturbados. Quando se prescrevem antidepressivos procuram-se corrigir os déficits cerebrais para melhorar a sintomatologia. O problema é que se o raciocínio fosse tão linear a questão estava resolvida. Davam-se geralmente comprimidos e todas as pessoas melhoravam. Na prática, não é assim.
Porquê?
A questão de fundo é que não há depressão, há depressões. O modelo neurobioquímico não explica tudo o que acontece com os deprimidos. Há depressões em que os fatores persistem e, portanto, é um pouco como a ideia de estar a chover e querermos atravessar uma rua, mas como não podemos fazer a chuva parar temos que atravessar com um guarda-chuva. É isso que, muitas vezes, acontece na consulta. O doente leva o guarda-chuva mas a chuva vai continuar.
A chuva continua porque há outros fatores envolvidos?
Exactamente. Fatores sociais, familiares. Nestes últimos, estamos a falar também de questões relacionadas com o património genético. Há determinado tipo de depressões que são hereditárias ou, pelo menos, as pessoas pertencentes a essas famílias têm maior probabilidade de, em determinada fase da sua vida, se deprimirem tal como os seus antepassados.
Há outras causas?
Por exemplo, segundo a teoria do desamparo aprendido determinadas pessoas chegam à conclusão de que façam o que fizerem são sempre penalizados e, portanto, o castigo é inevitável, independentemente das suas atitudes. Isto leva-as a ter uma convicção de que não vale a pena lutar. Há muitas famílias em que isto é comum. As pessoas têm um ar resignado, acreditam que nada vale a pena o que é uma dimensão depressivogénea.
Situações traumáticas podem desencadear uma depressão?
Sim. Por exemplo, os homens são mais susceptíveis a ataques à sua honra, ao seu património e a conflitos laborais. As mulheres são mais suscetíveis a perdas amorosas, conflitos com os filhos, àquilo que se move no plano dos sentimentos.
E enquanto que os homens, muitas vezes, vivem enclausurados nos seus problemas, as mulheres aproximam-se da religião, das amigas e vão ao médico. A depressão é mais comum no sexo feminino mas isso não significa que o sofrimento dos homens não exista.
O divórcio e a morte de alguém próximo podem ocasionar uma depressão?
A morte do cônjuge, o divórcio, a perda de um filho, são exemplos de acontecimentos traumáticos que muitas vezes significam uma depressão grave. Muitas vezes isso é interpretado como uma derrota pessoal. É muito comum os deprimidos distorcerem cognitivamente o facto, interpretarem-se como derrotados, em vez de o encararem como uma nova etapa da vida perante uma circunstância adversa.
É possível prevenir a depressão?
É possível prevenir algumas depressões. Agora trata-se de uma doença que existirá sempre, que provavelmente irá existir mais no século XXI e será uma das doenças mais incapacitantes. É possível intervir sobre alguns dos fatores que poderão levar a uma depressão, nomeadamente familiares, sociais, profissionais ou de stresse, entre outros.
Veja na página seguinte: As consequências de uma depressão não tratada
Em que situações se justifica recorrer a um psiquiatra?
Caso uma depressão seja grave ao ponto de impedir a pessoa de funcionar no seu dia a dia, esta deve procurar de imediato auxílio especializado, sob pena de ver agravar o problema com o decorrer do tempo. Há depressões que são relativamente ligeiras em que a pessoa, apesar de se sentir desconfortável e desanimada, ainda vai funcionando. Nesses casos, eventualmente o médico de família está apetrechado para fornecer ajuda.
É possível ultrapassar uma depressão só com a ajuda de um psicólogo?
Não. A depressão é uma doença e deve caber a um médico decidir sobre a relevância de uma psicoterapia. Em certos casos faz todo o sentido haver um acompanhamento psiquiátrico, complementado por uma intervenção psicoterapêutica, protagonizada pelo psicólogo. Mas essa é uma decisão médica.
Qual é a taxa de sucesso do tratamento da depressão?
Setenta a oitenta por cento dos doentes trata-se relativamente bem. Normalmente, o tratamento é feito durante um ano, sendo que ao fim de um mês já há resultados.
Quais podem ser as consequências de uma depressão não tratada?
A principal complicação é o suicídio. Mas há outras! A pessoa deixa de funcionar ou seja deixa de desempenhar atividades domésticas, falta ao trabalho. Também existem problemas de repercussão familiar. Há divórcios por causa das depressões, por incompreensão e há situações críticas de grande tensão familiar.
Que percentagem de pessoas com depressão tenta o suicídio?
Cerca de trinta por cento pensa no suicídio e dez por cento comete suicídio, nessa depressão ou no futuro. A principal doença associada ao suicídio é a depressão, entre cinquenta a oitenta por cento dos casos, segundo os estudos.
Texto: Nazaré Tocha com Carlos Braz Saraiva (psiquiatra e professor universitário)
Comentários