Nuno Sá é fotógrafo profissional subaquático desde 2008. Especializado em vídeo e fotografia de conservação da vida selvagem marinha, traz no currículo cerca de 20 prémios de alguns dos principais concursos internacionais de fotografia da natureza. As suas imagens estiveram expostas, entre outros, no Museu de História Natural de Londres e no Museu Nacional de História Natural Smithsonian, em Washington D.C.. Em 2014, Nuno Sá apostou no vídeo como ferramenta para promover a conscientização ambiental. Antes, lançara uma produtora especializada em imagens subaquáticas. Paralelamente mantém colaboração com gigantes da comunicação como a BBC, National Geographic Channel e Netflix. Uma ligação que tem permitido a Nuno Sá trabalhar em inúmeros ambientes, dos trópicos aos polos. Mergulhou com tubarões nas Bahamas, com tubarões-baleia no Quénia, com orcas e baleias-de-bossas nas águas geladas da Noruega, com baleias-francas-austrais na Argentina e em algumas das ilhas mais remotas do mundo, como Malpelo, Selvagens e Desertas. O cameraman e fotógrafo vive nos Açores, um território de vida marinha riquíssima. Sobre os primórdios do seu fascínio pelo mar, a concretização de sonhos e os desafios de uma profissão que o levam a ambientes extremos, conversámos com Nuno Sá.
O Nuno Sá foi notícia recentemente com a fotografia que captou na Fonte da Telha. Venceu uma das categorias do prémio internacional Underwater Photographer of the Year, com a imagem de um cachalote ferido a ser salvo por um grupo de banhistas. Olhamos para a fotografia e procuramos perceber a história que esta encerra. Quer contar-nos esse momento?
Sim. Não participava num concurso fotografia de natureza há bastante tempo. Tornei-me fotógrafo subaquático em 2008 e, depois, em 2014, enveredei pelo vídeo. Ainda faço fotografia de quando em vez, quando sou convidado para um projeto. Essa situação em particular, nasce de uma sequência que filmei para uma série que vai estar em exibição na Netflix e que se chama Our Oceans [Os Nossos Oceanos]. Andava atrás desta história há bastante tempo. Todos os anos, cerca de 20.000 baleias são mortas devido a colisão com navios. É um problema em crescendo à escala mundial, porque o tráfego marítimo explodiu 300% nas últimas duas ou três décadas e mantém o crescimento. Anteriormente, alargara contactos, através da rede de arrojamentos costeiros, para encontrar um exemplo como este que me permitisse contar esta história. Uma amiga, bióloga marinha, estava na praia da Fonte da Telha no dia em que o cachalote deu à costa, em abril de 2022. Ligou-me e informou-me sobre a presença do cachalote, o maior predador do nosso planeta que consegue mergulhar até grandes profundidades. Este animal, em condições normais, nunca estaria aqui na plataforma continental portuguesa junto à costa. O cachalote estava ferido e permanecia no meio dos banhistas e dos surfistas. Fui de imediato para a Costa da Caparica e, realmente, quando ali cheguei já havia um movimento enorme de pessoas dentro de água a tentar salvar a baleia. Infelizmente, não foi possível salvar o animal.
Inclusivamente, o Nuno descobre mais tarde que dois dos seus filhos estavam nesse grupo de banhistas.
Sim, são duas das pessoas que captei na fotografia, o que é curioso. Aliás, só descobri isso quando fui a Londres à entrega dos prémios e, na viagem de comboio, falávamos sobre a fotografia. Foi uma chatice, porque aquilo podia ter sido perigoso.
Começou a dedicar-se à fotografia subaquática em 2008. Nesse ano ganhou um concurso de fotografia organizado pela BBC e pelo Museu de História Natural de Londres, seguiram-se-lhe outros prémios. A fotografia, tirada em 2008 a um grupo de orcas ao largo da ilha de São Miguel foi a que catapultou a sua carreira?
Formei-me em Direito na Universidade Católica e comecei a mergulhar ainda nesse período. Apaixonei-me pelo mar e fiquei com a vontade de dedicar a minha vida aos oceanos. A primeira viagem que tinha feito foi aos Açores e resolvi viver no arquipélago. Mal cheguei aos Açores, arranjei emprego numa empresa de observação de cetáceos e também entrei no curso de Biologia Marinha. Comecei, então, a tirar fotografias como passatempo. Em 2008, li um artigo no jornal Açoriano Oriental que informava que um fotógrafo australiano chamado Wade Hughes tinha sido premiado no Wildlife Photographer of the Year, o maior concurso do mundo de fotografia de natureza. Ora, nos Açores, eu estava todos os dias a ter encontros fantásticos em alto-mar. Pensei que poderia concorrer e fui premiado na categoria “Animals in their Environment” (“Animais no seu Meio-Ambiente”) como uma fotografia de orcas ao pôr do sol. Não fazia ideia que era o primeiro português a ser premiado naquele concurso. Na época, comecei a ser convidado para integrar outros projetos internacionais e comecei também a ter alguma visibilidade nacional. Realmente, tinha o sonho de me tornar um cameraman ou um fotógrafo subaquático. Foi a minha oportunidade. E, em 2008, arrisquei. Diria que sim, que a fotografia que teve mais impacto numa carreira futura de aventuras no mar, terá sido “Orcas at Sunset” [“Orcas ao Pôr do Sol”].
Na altura disse em entrevista: “O sonho que tinha, de ser fotógrafo de natureza, era exatamente aquilo”.
Sem dúvida. Aliás, antes não era um apaixonado pela fotografia. Fui muito influenciado pelos documentários a que assistia na televisão quando era estudante de Direito. Recordo-me, por exemplo, dos documentários do Cousteau [Jacques-Yves Cousteau, oceanógrafo e cineasta] e as grandes produções da BBC, como por exemplo a série Blue Planet. Para mim, era um sonho ver aqueles ambientes fantásticos, um sonho poder um dia visitá-los. Primeiro, como referi, foi através da fotografia e, em 2014, surgiu outra oportunidade. Mergulhava nos Açores, conhecia as ilhas de trás para a frente. Todos os anos, as produções da BBC e da National Geographic visitavam aos Açores. Pensei: “Caramba, se eu tivesse uma câmara profissional, já conheço as espécies todas, conheço os sítios todos, provavelmente serei contratado”. E, realmente, comprei a minha primeira boa câmara de vídeo. Passados uns meses, fui contactado por um produtor da BBC que esteve ligado à série Blue Planet 2 e que me convidou para fazer umas histórias nos Açores. Foi uma sorte tremenda. Acabei por entrar no grupo e a partir daí comecei a ser convidado, primeiro para filmar cada vez mais nos Açores e, hoje, vou do Ártico à Antártida. Trabalho com a Netflix, BBC, Disney, todas com meios para enviar equipas para qualquer sítio do mundo.
Na sua resposta faltou-lhe acrescentar o talento. Que qualidades tem de ter um fotógrafo/cameraman subaquático?
Acima de tudo, percebi que estava a ser contratado para um nicho muito específico de indivíduos que acompanham histórias num determinado ambiente. Nessa altura, especializei-me em histórias pelágicas, em alto-mar, sem que se veja o fundo, ou seja, estou a trabalhar no azul. Também percebi que se tivesse outras valências, seria contratado para cobrir outro tipo de histórias. Por exemplo, atualmente trabalho com um aparelho que permite, basicamente, reciclar o ar que estamos a respirar, o que nos permite estar horas e horas debaixo de água. É o mesmo sistema que usam os astronautas. Também me especializei a mergulhar sob o gelo ou a mergulhar mais fundo, até aos 60 metros de profundidade. Muito do meu trabalho ainda se faz em encontros em alto-mar, em que uma pessoa, basicamente, está em apneia, só a usar os seus pulmões, ou recorre a uma ‘garrafinha’ de mergulho que nos permite leveza e agilidade. Por exemplo, conseguimos estar no meio de uma bola de isco que está a servir de comida a peixes, baleias, entre outros animais.
Também é preciso uma boa dose de espírito aventureiro e de coragem.
Sinceramente, estou a viver o meu sonho e nunca pensei nessa questão. Nunca defini um trajeto, fui ao sabor das oportunidades que o mar me foi oferecendo e procurei e procuro aproveitá-las ao máximo. Da mesma maneira que tive a sorte de entrar neste meio, posso passar de moda. Estamos a falar de poucas dezenas de camaramen subaquáticos que trabalham neste circuito em todo o mundo.
O Nuno mergulha nas águas portuguesas. É dos poucos que o faz com a capacidade de as olhar de forma profissional e de o transmitir a um público vasto. O que guarda o nosso mundo subaquático?
Portugal tem uma riqueza e diversidade únicas em termos mundiais. Temos um território vastíssimo e muito diversificado no que respeita a ecossistemas, com águas bastante frias e temperadas, com aspetos muito interessantes. Por exemplo, temos no Algarve, na Ria Formosa, a maior população de cavalos-marinhos do mundo. Por exemplo, no Canhão de Lisboa, saímos do rio Tejo e, passada meia hora, estamos a nadar com baleias comuns e com tubarões. Depois, temos o arquipélago da Madeira que está muito mais a sul, com águas mais quentes. Encontramos aí a foca mais rara do mundo, a foca-monge. Os Açores que são as Galápagos do Atlântico, apresentam-se como um hotspot de todas as grandes espécies migratórias do Atlântico.
No seu conjunto, estamos a falar de uma das maiores zonas económicas exclusivas do mundo e a segunda maior da Europa. Estamos a falar de uma área que compõe 97% do território português. Sempre olhei um bocadinho para a minha profissão como uma oportunidade para dar a conhecer esta vida marinha. Quando não estou nestas produções internacionais, tento fazer alguns projetos com a RTP. Comecei com uma série chamada Mar, a Última Fronteira, de seis episódios. Em 2023, lancei um documentário chamado Ilha dos Gigantes, sobre a população de tubarões-baleia na ilha de Santa Maria.
Confesso que muitas das histórias ainda são uma novidade para mim. Por exemplo, logo no início da minha carreira, em 2008, quando me tornei profissional, tive o meu primeiro encontro com tubarões-baleia nos Açores, o maior peixe do mundo. Trata-se do único sítio da Europa com esta população. Fui a primeira pessoa a fotografar um tubarão-baleia em Portugal. Passados uns meses, fotografei pela primeira vez um tubarão-frade que é o segundo maior peixe do mundo. Também era a primeira vez que esta espécie era fotografada nos Açores.
Em Portugal há mercado para o seu trabalho?
A dificuldade em Portugal é o financiamento, mesmo quando estamos a falar de verbas muito reduzidas quando comparadas com as produções internacionais. Mesmo assim é muito difícil obter financiamento. Também porque temos um mercado pequeno em termos de público. Tenho tido a sorte de trabalhar com a Fundação Oceano Azul, do Oceanário de Lisboa, que tem apoiado todas as produções com a RTP.
Especializou-se em encontros com grandes animais pelágicos como baleias, golfinhos e tubarões. O que se sente quando se mergulha num ambiente povoado por orcas ou tubarões?
Confesso que este tipo de trabalho é o mais difícil por ter uma taxa de sucesso muito pequena. Diria que em 90% dos meus dias não acontece nada quando estou a fazer essas histórias pelágicas. Agora, quando temos um encontro, torna-se um momento marcante na vida de uma pessoa. Por exemplo, as orcas constituem o topo da cadeia alimentar em termos de oceanos. Recordo-me que em 2008 quando tive um encontro com orcas debaixo de água pensei: “caramba, devia ter visto no Google se as orcas atacam pessoas” [risos]. Hoje, sei que não atacam no mar, embora haja ataques em cativeiro. Atualmente, já fotografei orcas da Noruega à Antártida. É um animal extremamente inteligente, capaz de transmitir o seu comportamento às novas gerações.
As fotografias que tira não têm apenas uma dimensão estética, há uma mensagem que lhes é inerente, a da preservação dos ambientes marinhos e das suas espécies. Com vê esse seu papel?
Sempre encarei essa questão como um papel implícito quando se consegue alcançar determinada visibilidade. Trata-se de um palco privilegiado a que temos acesso, pelo que há que transmitir uma mensagem. Seria um pouco absurdo se não o aproveitasse como alerta para os perigos sobre um ecossistema, uma espécie, um habitat. Se pensarmos nas séries televisivas, nos prémios de fotografia de natureza, percebemos que temos a oportunidade de chegar a milhões de pessoas. Criamos uma ligação emocional entre as pessoas e os animais, capaz de as levar a interessarem-se pela história.
Entre as muitas fotografias que já captou, há alguma que sinta ter tocado em particular uma comunidade?
Não sei. Sei que as fotografias vão contribuindo. Por exemplo, fiquei muito contente quando, em 2015, fui premiado no Underwater Photographer of the Year com uma fotografia de um cavalo-marinho na Ria Formosa. Dei à fotografia o nome de "50 Tons of Me" (“50 toneladas de mim”), porque, calcula-se, todos os anos se retire aos oceanos cerca de 50 toneladas de pequenos cavalos-marinhos. Foi a oportunidade para chamar a atenção para um problema que muitos desconhecem. Sabemos, presentemente, que pescamos mais de 100 milhões de tubarões por ano. Agora, muito pouca gente tem ideia de que estamos a falar de 50 toneladas de pequenos animais retirados aos oceanos. Confesso que em Portugal estamos muito longe de alcançarmos uma boa consciência ambiental. Os cavalos-marinhos da Ria Formosa deviam ser a bandeira de toda aquela região e devia haver um orgulho enorme naquele património natural. Mas, não é uma questão acarinhada.
Mergulha há perto de duas décadas. Tem percebido degradação do nosso ecossistema marinho?
Sempre que mergulhamos dentro de uma área marinha protegida, numa zona em que a pesca é proibida, é como se estivéssemos a passear numa floresta tropical, com uma abundância de vida incrível. Fora dessas áreas marinhas é como mergulhar num deserto. Por exemplo, a Madeira é pioneira, a nível nacional, na criação de áreas marinhas protegidas. Quando se mergulha numa área protegida, como por exemplo a do Garajau, encontramos um oásis de vida. Diz-nos muito sobre o que seriam os oceanos antes de começarmos a saquear a vida neles existente. Nunca estive numa expedição em que não encontrássemos o impacto humano de uma forma muito direta, mesmo nos sítios mais remotos do mundo. Numa expedição para a BBC, 300 quilómetros acima do Círculo Polar Ártico, filmámos uma sequência incrível de orcas e baleias-de-bossa a alimentarem-se de cardumes de arenque. No dia seguinte, estávamos a salvar uma baleia enredada em artes de pesca.
Há alguma uma fotografia, ou o contexto em que foi captada, que o tenha sensibilizado particularmente?
Sinceramente, acho que esta última fotografia do cachalote a ser salvo foi das que mais me tocou. Um animal imponente estava a morrer próximo ao areal, a sufocar por uma razão que, sabemos, se deve a nós. Por outro lado, vemos aquelas pessoas a tentar salvar aquele animal. Revela a nossa incapacidade para lidarmos com os problemas, mas, simultaneamente, este nosso desejo de preservar a vida, de a salvar.
Qual é o ambiente marinho onde ainda não trabalhou e adoraria trabalhar?
Tinha uma lista de sonhos e tenho-os concretizado. O único que me falta é visitar as Galápagos o que irei concretizar em agosto próximo. Por vezes, sou contratado para histórias que, depois, se revelam fantásticas. Recentemente estive a filmar para a Netflix uma sequência sobre um peixinho de água doce que existe em África, no lago Tanganica, um animal com sete centímetros de comprimento, um ciclídeo. Foi das histórias que mais gosto me deu fazer. Mas, em miúdo, os meus sonhos viajavam para os tubarões, as baleias, todas aqueles ícones fantásticos.
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