Ana Correia identifica-se com o pronome "Ela", porém, não se importa que utilizem outros para se referirem a si. "Sinto-me uma mulher não-binária, por isso, estou muito confortável com qualquer pronome", diz ao SAPO Lifestyle, explicando que, como a confundem "tantas vezes, sem querer, com um homem", deixou de lhe fazer confusão tratarem-na por outros pronomes.

À vontade para ser tratado por ele ou ela, sente-se o influenciador digital Kiko Is Hot. "Sinto-me de igual forma em contacto com o meu eu masculino e feminino", justifica.

Como representantes da comunidade LGBTQIA+, ambos estiveram, no mês passado, na apresentação do projeto Kiehl’s Open Doors que, em parceria com a Associação Casa Qui, procura apoiar jovens desta comunidade em situação de vulnerabilidade.

Durante a apresentação, onde Kiko Is Hot e Peperan partilharam os seus testemunhos, revelaram-se dados preocupantes. Segundo o estudo "The Free Project: Relatório sobre jovens LGBTQ+ e clima escolar em Portugal", da Universidade do Porto, 10% dos jovens LGBTQIA+ não são aceites por nenhum membro da sua família, 38% escondem a sua identidade da família e 19% confessam que os pais já usaram nomes pejorativos por causa da sua identidade. Mais de 50% dos jovens trans lamentam não ser tratados pelo nome que desejam em casa.

Peperan, que cedo percebeu que o seu Eu não encaixava naquilo que a sociedade esperava de uma mulher, levou o seu tempo a perceber o porquê e quais as repercussões que o facto teria para o resto da sua vida.

"Consoante fui crescendo, fui percebendo que era por causa da minha orientação sexual, da minha expressão de género e por causa da forma como eu vejo o mundo, ou seja, fui quase completamente contra tudo aquilo que esperam de uma mulher na sociedade", constata a criadora de conteúdos digitais. "Felizmente, também fui percebendo que tenho direito ao meu espaço, independentemente de não corresponder a esses standards arcaicos do que deve ser uma mulher", acrescenta.

"Nem mulheres, nem homens, se deveriam sentir obrigados a cumprir com o quer que seja. Quanto mais livres pudermos ser, melhor". É com esta afirmação que Ana finaliza a sua resposta acerca da altura em que começou a ganhar consciência da sua identidade de género.

Quando o julgamento começou

Acreditamos ser iguais, "normais", até ao dia em que a sociedade nos mostra o contrário. É o que a história de Kiko nos demonstra (como outras que já ouvimos). "Quando entrei em contacto com outras crianças, quando o julgamento começou. A comparação foi óbvia e percebi que não me encaixava nos moldes que a sociedade tinha feito para um menino", partilha.

Mas como explicar ao mundo quando se é jovem ou criança que talvez não venhamos a ser aquilo que a sociedade espera que sejamos?

Para Ana Correia, o mais complicado foi contar aos familiares. "Venho de uma família do Minho, onde ainda há muito presente alguma rigidez devido à religião, já para não falar da homofobia presente 'naturalmente' na nossa sociedade", comenta. “A verdade é que durante o meu crescimento, fui muito bombardeada com micro agressões. Nem sequer era preciso que fossem dirigidas a mim, para perceber que ser gay não era uma coisa "boa".

Felizmente, a família de Peperan recebeu-a de braços abertos, porém, reconhece que receou, antes de "sair do armário", que  "a família ainda estivesse presa à religião ou ao que a sociedade diz".

Em relação aos amigos, não existiram problemas. "Sem pensar nisso, fui-me rodeando de pessoas que pensavam como eu. Por isso, quando chegou a altura de contar, todos reagiram obviamente da forma mais natural possível e felizes por eu começar a viver o meu verdadeiro eu".

No caso de Kiko Is Hot, o processo de "coming out" levou-o a cortar relações com o pai. Considera que foi ao progenitor a quem foi mais difícil revelar o seu verdadeiro eu. "Ainda hoje nunca tivemos uma conversa sobre o assunto, porque ele nunca se mostrou muito disponível para tal", relata.

"Gostava que o meu pai pudesse ter sido a minha zona de conforto quando o procurei e mostrou ser mais uma fonte de julgamento", recorda. "Não foi fácil, mas neste momento está afastado da minha vida e é o que recomendo a toda a gente que não se sente apoiado. Não é só por ser família que o meu amor e compreensão vão ser incondicionais", declara.

Não é só por ser família que o meu amor e compreensão vão ser incondicionais

Para as psicólogas, Ana Catarina Velez e Ana Beato, o processo de coming out para jovens pode ser um momento aterrador. Existem primeiro as dúvidas e, depois, o medo da rejeição. É, por isso, que Peperan gostava que as famílias "pensassem mais antes de dizer coisas homofóbicas, transfóbicas, etc, etc".

"Acho que posso falar por muita gente quando digo que o caminho desde que nos apercebemos que somos da comunidade LGBTQIA+ até ao coming out, é que é assustador, por ouvir pessoas que nos são próximas a dizer sem problema coisas como 'os gays não deviam adotar, senão os filhos também ficam gays', 'o natural é um homem com uma mulher', 'essa lésbica quer é ser um homem', 'se tens cromossomas XY então vais ser sempre um homem', por aí fora", desabafa Correia. "Isso é que nos faz ter medo de mostrar o nosso verdadeiro 'eu' e de o assumir perante todos", afirma, acrescentando que "o melhor que se pode fazer é ser inclusivo e ter a noção que a pessoa ao nosso lado pode estar a precisar de um porto seguro para poder contar a sua verdade".

Consciente de que nem todos têm o privilégio de serem aceites por aqueles que os rodeiam, Ana decidiu apoiar o projeto Kiehl's Open Doors, lançado no passado mês de julho. "É extremamente importante reconhecer que existem imensas pessoas em Portugal que não têm qualquer tipo de suporte emocional nem financeiro por parte da sua familia e que são postas na rua sem qualquer tipo de compaixão", comenta. "Ao reconhecer isto, criam-se espaços para que estas pessoas possam ser acolhidas, ajudadas e respeitadas. E é exatamente isso que a Kiehl's Open Doors em parceria com a Casa Qui está a fazer." A opinião é partilhada por Kiko. "Acredito imenso no projecto Casa Qui, acho urgente neste momento a sua existência e agradeço imenso à Kiehl’s por se mostrar disponível nesta parceria".