“Quero fazer-te notar uma coisa: muitos, hoje, sabem o teu nome, mas não te chamam pelo nome. Com efeito, o teu nome é conhecido, aparece nas redes sociais, é processado por algoritmos que lhe associam gostos e preferências. Mas tudo isso não interpela a tua singularidade, mas a tua utilidade para pesquisas de mercado”, disse o Papa Francisco aos jovens nas recentes Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa.

Independentemente da idade, muitos de nós, utilizadores das redes sociais, já sentimos que, no fabuloso mundo virtual, “há gato”. É precisamente para isso que nos alerta Jaron Lanier, “o pai” da realidade virtual, no seu novo livro Dez Argumentos para Apagar já as Contas nas Redes Sociais (edição Ideias de Ler). Para o autor “a influência que esta nova forma de nos relacionarmos com os outros e com aquilo que nos rodeia está a ter na transformação do mundo num lugar sombrio e demente”.

Num crescendo argumentativo, Lanier demonstra como as redes sociais trazem à tona o que há de pior nos seres humanos e, com o acordo tácito de milhares de utilizadores, nos enganam com ilusões de popularidade e sucesso, distorcendo a noção de verdade, desligando-nos dos outros mesmo quando estamos mais “conectados” do que nunca, tudo para nos roubarem o nosso livre-arbítrio, bombardeando-nos com anúncios direcionados. Ciberbullying, fake news, manipulação económica, apatia, voyeurismo, assédio, adição e frivolidade são alguns dos perigos apontados pelo autor e dos quais devemos ter plena consciência.

Sem que a exposição da malevolência que governa os modelos de negócios das redes sociais na atualidade o impeça de continuar otimista em relação à tecnologia, Lanier aponta um cenário humanista para o futuro das redes sociais, tendo como valor supremo o bem-estar e o progresso equilibrado do homem.

jaron Lanier
jaron Lanier Jaron Lanier numa apresentação musical em 2009. créditos: Wikimedia Comuns

De Dez Argumentos para Apagar já as Contas nas Redes Sociais publicamos o excerto abaixo, retirado do quinto capítulo da obra:

As redes sociais estão a transformar o que dizes em algo sem sentido

Aquilo que dizes não significa nada sem um contexto.

Este facto simples pode passar-nos facilmente despercebido no quotidiano e nos contactos interpessoais, porque o contexto geralmente é óbvio. Suponhamos que digo: “Deixa-me em paz! Não te posso prestar mais atenção agora!” Parece estranho ou cruel, a menos que me veja a dizê-lo à nossa gata Loof (dei-lhe este nome porque ela não é reservada – em inglês, aloof significa alguém que é reservado), que tem o costume de chamar a nossa atenção de uma forma que ultrapassa, em muito, o razoável.

Ecrãs na primeira infância: “As crianças precisam de uma educação humana” – Catherine L’Ecuyer
Ecrãs na primeira infância: “As crianças precisam de uma educação humana” – Catherine L’Ecuyer
Ver artigo

O princípio torna-se mais evidente em situações extremas. Se vires alguém num carro com chamas a sair do motor e gritares: “Fogo!”, podes salvar a vida dessa pessoa. Se gritares o mesmo numa discoteca apinhada de gente, podes morrer esmagado durante a fuga em debandada que se seguirá, quer haja ou não fogo.

Online, é frequente termos pouca capacidade, ou nenhuma, de conhecer ou influenciar o contexto no qual a nossa expressão será entendida. A forma mais fácil de compreender o princípio é ter em atenção exemplos extremos.

Os exemplos “extremos” mais bem documentados são aqueles em que a pessoa que se exprime tem alguma influência e capacidade para forçar uma mudança. Por exemplo, considere o seguinte problema para anunciantes no Youtube: durante algum tempo, foi prática comum os anúncios a coisas inócuas, como os sabonetes, serem transmitidos logo a seguir ou imediatamente antes de horríveis vídeos de recrutamento de grupos terroristas. Quando os anunciantes se queixaram – e só então -,  a Google começou a erradicar conteúdos relacionados com terrorismo. Foram pagas indeminizações em dinheiro aos anunciantes afetados. Os anunciantes são os verdadeiros clientes, por isso têm uma palavra a dizer. Conseguirão os utilizadores comuns dizer o mesmo sobre o contexto em que são posicionados pelos esquemas BUMMER?

Ora, os exemplos extremos mais comuns podem surgir quando mulheres e raparigas que se tentaram expressar online percebem que as suas palavras e imagens foram sexualizadas e incorporadas num quadro violento ou manipulador. A presença online de mulheres foi muitas vezes transformada grotescamente para fins de humilhação, vergonha e assédio. Durante anos, mulheres preeminentes enfrentaram o assédio (por exemplo, as afetadas pelo “Gamergate”), mas agora isso está a acontecer a quaisquer mulheres.

Estes exemplos extremos só acontecem porque as regras do jogo no ambiente BUMMER nos dizem que não conhecemos o contexto no qual estamos a expressar alguma coisa e, portanto, não dispomos de uma maneira fiável de saber como é que isso será apresentado a terceiros.

Nascido em Nova Iorque em 1960, Jaron Lanier é um moderno “homem do Renascimento”: aos 14 anos, ingressou na universidade para estudar matemática, o que acabaria por levá-lo à programação. Em paralelo, desenvolveu um interesse pela arte, e tornou-se músico, multi-instrumentista e artista gráfico. Considerado o “pai” da Realidade Virtual, concebeu, nos anos 1980, os primeiros produtos comerciais de RV, entre os quais se incluem protótipos de aplicações fundamentais, tais como simulações cirúrgicas. Simultaneamente, é um defensor apaixonado de políticas económicas humanistas sustentáveis em contexto digital, e da liberdade do ser humano.

Este problema tornou-se tão difuso que é quase invisível, como o ar. Renunciámos à nossa ligação ao contexto. As redes sociais transformam o sentido numa mixórdia. Tudo o que disseres será contextualizado e interpretado pela forma como os algoritmos, multidões de indivíduos reais e multidões de pessoas falsas, que na realidade são algoritmos, combinam o que disseste com aquilo que outras pessoas dizem.

Não há, jamais, quem saiba ao certo como é que aquilo que estás a dizer será recebido, mas, em situações não BUMMER, geralmente conseguimos aventar hipóteses como algum grau de certeza. Às vezes falo em público e, instintivamente, adapto a minha apresentação a quem me está a escutar. Digo coisas diferentes a uma audiência de alunos do ensino secundário, por comparação com as que digo numa sala cheia de analistas quantitativos. Isto é, tão-só, uma parte normal da comunicação.

Falar por intermédio das redes sociais não é propriamente falar. O contexto é aplicado àquilo que é dito depois de o ser, para os fins e lucros de outrem.

Isto muda aquilo que pode ser expresso. Quando o contexto é aplicado na plataforma, a comunicação e a cultura tornam-se triviais, fúteis e previsíveis. Uma pessoa tem de se tornar incrivelmente extrema se quiser dizer alguma coisa que sobreviva, ainda que por breves instantes, num contexto imprevisível. Apenas uma comunicação cretina consegue essa proeza.

Sentido entreaberto

A BUMMER substitui o nosso contexto pelo seu próprio contexto. Do ponto de vista dos algoritmos, deixamos de ser um nome e passamos a ser um número: o número de seguidores, de “gostos”, de cliques ou de outras medidas de quanto contribuiu para a máquina BUMMER, momento a momento.

Amiúde, a ficção científica distópica imagina um império maléfico que substitui nomes por números. Os estabelecimentos prisionais reais fazem-no aos presidiários. Há um motivo para isso. Tornar-se um número é ser-se explicitamente subserviente a um sistema. Um número é uma verificação pública de diminuição da liberdade, do estatuto e da individualidade. Para mim, é especialmente arrepiante, porque a minha mãe sobreviveu a um campo de concentração, onde o número de cada um era tatuado no braço. Na atualidade, isso ficaria demasiado caro. Os nazis limitar-se-iam a guardar o nosso número e os nossos dados biométricos na nuvem.

Tudo isto pode parecer demasiado sombrio para as pessoas que jogam o jogo dos números das redes sociais. Deparo-me com um dilema exclusivo dos tempos modernos. Se as pessoas querem ser subordinadas, quem sou eu para lhes dizer que devem lutar pela sua dignidade individual? Isso não faz de mim aquele que não está a respeitar a vontade dos demais?

Por causa do dilema que acabei de referir, não quero criticar as pessoas que parecem gostar da situação, como, por exemplo, os jovens que estão a tentar ser influenciadores nas redes sociais. Em vez disso, vou concentrar-me nas pessoas que estão a tentar fazer alguma coisa que não seja ser um número, mesmo que sejam subordinadas à nova realidade da supremacia dos números.

As pessoas descobrem fontes de conteúdos, como websites de notícias, principalmente através da BUMMER, pelo que esses sites têm de cooperar para ser favorecidos pelos algoritmos e pelas multidões.

Uma sala de imprensa que visitei há pouco tempo tinha uns ecrãs enormes por toda a parte, a fazer lembrar uma zona de controlo da NASA, mas a transmitir estatísticas ao segundo referentes a cada publicação criada pelos presentes na sala. Presumivelmente, os redatores e outros criadores deverão estar colados a estes números para assim maximizarem o “envolvimento”. São obrigados a tornar-se componentes da máquina BUMMER. Tenho pena deles.

Nos últimos tempos, este problema foi associado ao feed do Facebook, mas é um fracasso ao nível de toda a BUMMER. Já era um problema antes da existência do feed do Facebook. Agora que o Facebook [que passou a designar-se Meta a partir de 2021] anunciou que diminuirá a ênfase dada a notícias no seu feed, talvez as coisas melhorem um pouco; não obstante, é difícil imaginar que as notícias fiquem doravante instantaneamente isentas do colapso de contexto provocado pela BUMMER. Para que as notícias recuperem contexto, as pessoas terão de as descobrir através de sistemas não BUMMER. Que sistemas serão esses? Tenho esperança de que as pessoas desenvolvam relações diretas, de preferência através de subscrições de fontes de notícias e outros conteúdos.

O que faz o ChatGPT e como funciona? No interior desta “mente de IA” com o cientista Stephen Wolfram
O que faz o ChatGPT e como funciona? No interior desta “mente de IA” com o cientista Stephen Wolfram
Ver artigo

Entretanto, há imensos problemas relacionados com a submissão do jornalismo ao deus das estatísticas. Algumas das críticas são familiares: clickbait em excesso diminui o nível de discurso público; os redatores não têm espaço para correr riscos.

Lembras-te de como os algoritmos BUMMER se otimizam de forma automática e constante, com exceção dos que estagnam? Descrevi o processo no Argumento Um. Toda a gente, incluindo os jornalistas, é obrigada a participar no jogo da otimização, com a esperança de tirar o máximo partido da BUMMER. Uma fonte noticiosa continuará a fazer ajustes ao conteúdo que produz até que ajustes posteriores deixem de gerar resultados melhores. Depois disso, instala-se a repetição. É por isso que muito do clickbait tem tantas semelhanças – porque só existe este truque esquisito para o otimizar.

O que prende as pessoas não são os ajustes, mas o ambiente BUMMER. No mundo real, fora da BUMMER, há complexidade e subtileza suficientes para que os ajustes não obriguem toda a gente a ficar presa no mesmo lugar. O feedback é uma coisa boa, mas dar demasiada importância ao feedback imediato num ambiente online limitado de forma artificial redunda em resultados ridículos.

Deixo aqui um enquadramento menos totó da mesma ideia: e se escutar uma voz interior ou dar ensejo a uma paixão pela ética ou pela beleza desse origem a um trabalho mais importante a longo prazo, ainda que considerado menos bem-sucedido no momento? E se ter um alcance mais profundo num reduzido número de pessoas fosse mais importante do que alcançar toda a gente com coisas sem substância?

Urge fazer outras perguntas. Primeiro, porquê acreditar nos números? Conforme disse no argumento anterior, grande parte do mundo online é falso: leitores falsos, comentadores falsos, recomendações falsas.

Reparo que os sites de notícias que estão a tentar atrair anunciantes diretamente muitas vezes parecem apresentar um número de leitores espetacularmente mais elevado para artigos sobre produtos que podem ser anunciados (como, por exemplo, escolher a sua próxima máquina de jogos) do que para artigos sobre outros temas.

Isto não significa que o site esteja a forjar os números. Talvez um gestor tenha contratado uma empresa de consultoria que utilizou um algoritmo para otimizar a escolha de serviços de medição, para associar o tipo de estatísticas de utilização que o site poderia utilizar para atrair anunciantes. Por outras palavras: os proprietários do site não forjaram os números conscientemente, mas, de certa forma, sabem que as suas estatísticas fazem parte de um enorme bolo de patranhas.

A culpa não é do site. Há muito poucos sites de notícias independentes, e são valiosos. Foram encurralados pela BUMMER e são extremamente vulneráveis. Há vinte anos que se diz às agências noticiosas (em especial àquelas que apoiam o jornalismo de investigação, que é dispendioso) que delas depende serem suficientemente ágeis para engendrar novos planos de negócios capazes de enfrentar as “perturbações” das grandes empresas tecnológicas, mas nunca ninguém contribuiu com um conselho verdadeiramente eficiente.

Assim, as notícias definharam, apesar de elas próprias serem cada vez mais motivo de notícia. Há uma obsessão constante da BUMMER com as notícias e, todavia, nos EUA quase já não há agências noticiosas de investigação regionais. Na nossa grande nação, restam poucas organizações noticiosas independentes com recursos e influência.

Quando os redatores deixam de sentir entusiasmo pelo desejo de chegar às pessoas diretamente e, em vez disso, têm de despertar o interesse de um sistema de distribuição de números que não é necessariamente fiável, estão a perder a sua ligação ao contexto. Quanto mais sucesso um redator tiver neste sistema, menos saberá sobre o que está a escrever.

Mesmo quando os leitores são reais, não falsos, os algoritmos estão a encaminhá-los para conteúdos em particular, pelo que as suas escolhas não são propriamente independentes. Por definição, as medições não são válidas. Não podemos dizer a alguém que vá para um dado lugar e depois alegar que descobrimos uma coisa nova porque sabemos aonde essa pessoa foi. Este é outro problema omnipresente que é tão difícil de ver como o ar.

Aqui fica um ponto de vista positivo: o facto de o jornalismo independente estar em apuros na sombra da BUMMER é um sinal da sua integridade. Os jornalistas conseguiram manter padrões mais elevados do que os influenciadores das redes sociais, mas também pagaram um preço. As notícias reais são agora apelidadas de «falsas» porque, pelos padrões da BUMMER, o que é real é falso; no ambiente da BUMMER, a realidade foi substituída por números estúpidos.