Poeta, ensaísta e ficcionista prolífico, Jim Harrison foi um dos autores mais amados da América - o que se deve, também, aos seus textos sobre comida. Harrison, nascido em 1937 e falecido em 2016, é conhecido como “o poeta laureado do apetite”. Gastrónomo voraz e sem “ideologia gourmet”, os seus textos sobre a matéria foram publicados pelo The New York Times. Publicou duas dezenas de romances. Um dos seus livros inspirou o filme Lendas de Paixão, interpretado por Brad Pitt e Anthony Hopkins. A Portugal a veia gastronómica de Harrison chega à boleia do livro Uma Grande Almoçarada(edição Quetzal). A obra reúne

alguns dos melhores ensaios sobre comida do autor. Neles espelha-se o prazer e a alegria da mesa, mas também a felicidade da partilha - desde o almoço francês com 37 pratos até à cómica peça sobre as colunas e os críticos de vinho, as evocações dos seus amigos e companheiros de comida (de Orson Welles a Jack Nicholson e Anthony Bourdain), o elogio do alho, a disputa entre vinhos tintos e brancos ou a “politização” da gastronomia.

Harrison é sempre o grande amante da natureza, da poesia, herdeiro da tradição zen ou das influências de Walt Whitman, Dylan Thomas ou Rimbaud. E tanto escreve os mais belos poemas sobre pássaros e árvores ou sobre a intimidade com a natureza, como - muito politicamente incorreto - evoca um jantar, um delírio culinário, um menu ideal, uma digestão inesquecível. De Jim Harrison retemos as seguintes palavras: “Tenho constatado com frequência, tanto em Nova Iorque como em Paris, que a cozinha altamente refinada é concebida para quem não tem apetite. A vida é brutal, mas a ideia de deixar de lado a gastronomia deixa-me perplexo. A vida é tão curta, porque é que não havemos de comer bem ou de trazer os outros para o prazer da nossa mesa”.

Do livro publicamos o excerto abaixo:

Comendo Serpentes

Todos sabemos que se Adão e Eva tivessem comido a serpente em vez da maçã, o mundo seria um lugar melhor, mas os canadianos inteligentes perguntarão: melhor do que o quê? O mundo paralelo de que falavam os antigos, onde a terra é mar e a terra é selva? Os homens cristãos ciumentos estão eternamente preocupados com o facto de os cães pequenos, os gatos machos e as serpentes olharem por debaixo saias das suas mulheres, e esquecem-se das centenas de espécies de insetos com uma vida sexual intensa. Também se esqueceram da mensagem dos Evangelhos Gnósticos de que, enquanto membros da espécie mamífera, temos de comer os nossos medos. Quando a minha velha setter inglesa Tess se assustou durante a sua sesta no quintal com o aparecimento de um esquilo, não tardou a matar e a comer essa besta republicana que mina os alicerces da nossa existência, o chão.

A rapariga guiou pelo campo numa manhã quente de agosto, entrando no caminho de acesso a uma quinta abandonada, e apreensiva porque, pela primeira vez, guiava um carro em camisa de noite e sem cuecas.

Este é um ensaio complicado que exige um pouco de conteúdo sexual para manter a atenção dos leitores, especialmente dos milhões de fãs de hóquei perturbados que agora bebem cerveja enquanto olham para o armário das vassouras. Numa recente viagem a Toronto, um proeminente crítico canadiano, que não quer ser revelado sobre o assunto, gracejou que os romances de Updike, Roth e DeLillo poderiam ser muito melhorados se nas suas páginas fossem intercaladas fotografias de corpos. Ele bebia um copo grande de anis sem gelo e eu deixei passar a sugestão, manifestamente uma boa ideia, sem comentários. Não me vou arriscar por um galho que não esteja ligado a uma árvore. Toda a gente sabe que a crítica moderna é um condomínio fechado e que o ethos literário do nosso tempo é a contração, um minimalismo etiolado em que o cadáver se senta para dar o último suspiro.

Voltemos às serpentes. A primeira cascavel que comi foi cozinhada por um cirurgião reformado à beira de um riacho, enquanto fazíamos uma pausa para almoço durante a pesca à truta. Estávamos num desfiladeiro em Montana, onde os crotálidos abundavam. Achei que o meu amigo cirurgião tinha feito um trabalho bastante desajeitado ao esfolar a cobra e disse-lho, altura em que ele admitiu que o seu diploma de cirurgião tinha vindo por correio de Phoenix, Arizona. Sim, perdera muitos doentes, mas ele e a sua família tinham tido uma boa vida e isso é o mais importante na Califórnia. Quando ele atirou a cascavel inteira para as brasas, esta contraiu-se numa imitação alarmante da vida, com a alma que abandonava a cobra como que a pairar no fumo rançoso. A carne estava bastante boa, com muito sal, pimenta e Tabasco, fazendo-me lembrar o rato almiscarado da minha juventude, que comíamos na nossa pequena quinta perto do Big Swamp, no norte do Michigan.

Com destreza, despiu o seu peignoir azul e subiu à macieira com a graciosidade de um gibão.

Dentada após dentada, mastigamos a nossa comida com o tipo de heroísmo silencioso ignorado pelos jornalistas desportivos. Numa cultura em franca decadência, o periférico sobrepõe-se sempre ao originário; assim, as minhas proezas como comedor arrojado e alpinista têm sido pouco valorizadas num mundo de patins e discos de hóquei. Que orgulho senti naquela manhã de zero graus em que troquei a posição de guarda-redes de hóquei pelas salas quentes, embora bafientas, das artes e por escalar picos desconhecidos dos outros membros da irmandade do alpinismo. As verdadeiras montanhas não se medem em números, como não se pode dizer que uma rapariga é bonita por um metro e oitenta de altura e não descrever pormenores qualitativos, como a parte inferior dos joelhos, tão macios como a barriga de uma toupeira.

Bitoques, fermentações e tarântulas. Nada escapa ao prato e à escrita de Ricardo Dias Felner, “o homem que comia tudo”
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A vida parece estar a querer sufocar-me. No ano passado, com sessenta e seis anos, escalei uma montanha de dezanove mil pés no México, chamada Orizaba, e ainda tive de cozinhar no acampamento base, a onze mil pés, porque os outros membros da expedição eram os típicos totós da fruta e da granola. É claro que, a essa altitude, os soufflés estão fora de questão. Fiz um guisado de uma jiboia pequena mas demasiado velha com pimentos habanero e abóbora. O sabor dessa cobra assemelha-se um pouco ao do chow dog que me serviram e que comi sem querer no norte da Mongólia. Admito que a jiboia me fez deixar de comer cobras no ano seguinte, apesar das suas qualidades afrodisíacas. Fiz amor com três mulheres mexicanas depois de dançarmos ao som de uma música interna num parapeito a uma altura de mil metros. Ao amanhecer, preparei uma omeleta razoável com os ovos de uma águia-filipina da região, desviando os olhos dos embriões cor-de-rosa, estranhamente nutritivos. Tive de levar o Michael (ele pronuncia Michel), o poeta da expedição, montanha abaixo, por ele ter batido com o dedo do pé num livro que estava proibido de levar. Todos nós conhecemos alguns idiotas incapazes de ir à casa de banho ou de fazer amor sem a companhia de um livro ou de um computador portátil.

A meio do caminho para Veracruz, tivemos de esperar três horas pelos nossos tacos num restaurante com telhado de colmo, enquanto uma rapariga de doze anos escalfava o que eu pensava ser a cabeça de uma jiboia, mas que afinal era uma língua de vaca. Tal como o peixe, as cobras são melhor quando cozinhadas frescas e ali não havia refrigeração disponível, mas a língua de vaca bem salgada pode durar semanas, mesmo no equador. Enquanto eu dormia no meio da terra com os cães, o Miguel tentava seduzir a rapariga. Ela espetou-lhe um picador de gelo no dedo do pé, frustrando assim os seus impulsos sexuais. Quando chegámos a Veracruz, nadei algumas milhas no porto para inspecionar a hélice do cargueiro grego, arrancando-a ao último momento possível quando o vingativo capitão ligou o motor de doze mil cavalos e pôs o navio em marcha. Quando voltei a nado para o Empório, imaginei ter doze mil cavalos, mas o meu rancho em Montana só tem quatro hectares e meio.

“Comendo serpentes”. A lendária gula do gastrónomo e poeta Jim Harrison
“Comendo serpentes”. A lendária gula do gastrónomo e poeta Jim Harrison créditos: Quetzal

Este ano falta-me fôlego para fazer a subida ao Orizaba. No verão passado, matámos setenta e três cascavéis na minha propriedade de Montana, mas não tenho coragem de comer as poucas que guardei no congelador. É como um adolescente que se embebeda com gin, vomita, e depois fica intolerante a essa bebida, e é bem capaz de voltar a vomitar ao tomar banho com sabonete com aroma de zimbro ou de pinho. As nossas mentes frágeis enchem-se de tabus à medida que a vida passa. Uma tribo indígena venezuelana, por muito perto que esteja da fome, não comerá uma anaconda que tenha devorado um dos seus filhos.

É curioso que as nossas inteligências divinas, raramente utilizadas, consigam distinguir entre espécies semelhantes. Quem resiste a uma tigela quente de anguillas, “enguias bebés”, no seu banho de azeite e alho? Se não comêssemos esses bebés, eles acabariam por nadar até sete mil milhas até ao Mar dos Sargaços para acasalar, antes de regressarem às águas estuarinas da sua terra natal. Imaginem conseguirem, o que é passar uma vida inteira debaixo de água.

A rapariga ficou pendurada pelos joelhos no ramo de uma macieira, oferecendo a um gaio azul uma visão peculiar das suas partes. O pássaro deu um grito de alarme.

Penso que a última cobra que alguma vez comi foi durante os Jogos Olímpicos de Atenas, no verão passado. Estupidamente, envolvera-me com uma ex-bailarina de Nova Iorque que se tornara artista performativa, uma categoria das artes que tenho alguma dificuldade em compreender plenamente. Foi um caso patético de luxúria de um cota e meu pequeno lote de Viagras estava a desfazer-se com a humidade, de modo que eu secava o pó azul húmido com o secador de cabelo dela e snifava-o como se fosse cocaína nos velhos tempos. Também tinha diabetes não diagnosticada, por isso ou estava a dormir ou estava furioso e perdi o evento principal, a natação sincronizada feminina. Dormia num clube noturno quando a minha artista performática fazia a sua rotina alimentar, tentando atirar esparguete marinara a uma ninhada de leitões não desmamados. Ninguém de Nova Iorque sabe, mas as pessoas do campo sabem certamente que os leitões não desmamados só se interessam pelo leite da mãe.

“A cozinha italiana que conhecemos é uma invenção do século XX” - Luca Cesari, historiador
“A cozinha italiana que conhecemos é uma invenção do século XX” - Luca Cesari, historiador
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A multidão vaiou-a. Inconsolável, ela saiu a correr pela porta dos fundos para a noite de Atenas. O dono do clube noturno, um falso Zorba, quis cozinhar um dos leitões. Achei a farsa repulsiva e fui até ao complexo tailandês para ver um amigo, onde me serviram um guisado de víbora, alegadamente morta nessa manhã nas montanhas de Tessalónica. A comida é tão arriscada como a literatura, pelo que mais tarde me interroguei se o veneno do guisado teria entrado numa ferida no sítio onde mordi o lábio depois de ter consumido demasiado Viagra.

O lugar onde passámos o Inverno na Patagónia, Arizona, é a única região dos Estados Unidos com sete tipos de cascavéis, no entanto, já não me sinto tentado. As javelinas que comem as cobras são muito mais interessantes no prato, embora quando se abate uma javelina se deva ter o cuidado de cortar as glândulas de cheiro, que fazem lembrar uma esposa republicana depois de um baile inaugural. Em noites quentes de luar, observamos as cascavéis a fazerem as suas danças horizontais no quintal.

A rapariga caiu da macieira e correu pela relva do pomar, com as pernas tão soltas que dava pontapés no seu próprio rabo pálido.

Amanhã tenho de me submeter a uma intervenção médica em Tucson que implica um jejum de vinte e quatro horas. Para mim, trata-se de um facto inédito e suspeito que não me vou sentir nem um pouco como o meu velho herói Gandhi. Sem ser desagradavelmente específico, revelarei que o cirurgião, supostamente habilitado, irá visitar as minhas entranhas em duas direções para descobrir qual das minhas quinze mil refeições fez explodir a bombinha há algumas semanas. Vão por mim, sete jalapeños é demasiado num prato de porco tailandês. Às vezes pergunto-me se a minha sabedoria está em declínio. Quando ouço a expressão “a sabedoria do corpo”, fico intrigado. Talvez tenha comido demasiado do mundo? O ânus de um elefante cozinhado num buraco de pedras quentes pelos Kikuyu em África pode ter dado mau resultado, ou terá sido o pepino do mar com mil anos em Xangai? Talvez tenha sido o assado super-seco da mãe ou a rena fermentada de Labrador. O meu ADN perturbou as autoridades médicas de Tucson, ao ponto de terem sugerido a Menninger’s em vez da Mayo. No inverno passado, no Yucatán, um velho chefe maia sem pernas perguntou-me seriamente se eu era meio cão, depois de, num gesto de amizade instantânea, os seus ferozes cães de guarda terem tentado subir para o meu colo. Interrogo-me. Será que está na altura de me tornar outra pessoa? Depois de um mês a comer sobretudo iogurte e arroz, sonhei que estava a acampar num glaciar tão branco como a minha comida. Oh, como anseio por uma bochecha de porco estufada a nadar na sua gordura, um frango Szechuan cozinhado num par de quilos de pimenta fresca, ou mesmo uma simples trufa branca do tamanho de uma bola de basebol ralada numa tigela de pasta.

De volta ao carro, sentou-se nua sobre a pele quente e macia do assento.

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