Bitoques, alforrecas, tarântulas, chocos com tinta na frigideira, lagosta, raposa, ouriço-caixeiro, não escapam ao prato do jornalista e crítico gastronómico Ricardo Dias Felner. Petiscos que não ficam esquecidos num anónimo almoço ou jantar pretérito. Vivem nas crónicas que o profissional da comunicação com escrita em jornais como o Público e o Expresso e na revista Visão, nos lega.

Na senda do blogue que “alimenta” há alguns anos, “O Homem que comia tudo”, Felner, 44 anos, lançou já este 2020, livro de título homónimo. Junta-lhe, como subtítulo, a pista para a matéria-prima que encontramos em mais de 200 páginas: “Aventuras culinárias, receitas e restaurantes de Portugal e do Mundo” (edição Quetzal). Recordatório de que o mundo da cozinha é tão vasto como todas as geografias que possamos palmilhar e que cabe dentro do restaurante com três estrelas Michelin, mas também numa carrinha de street food.

No livro que sucede à sua obra de ficção “Herói no Vermelho” (edição Quetzal), o ex-diretor das revistas Time Out Lisboa e Time Out Porto, ora nos senta à mesa da tasca, ora nos encaminha para a companhia do génio da cozinha Ferran Adriá. Não lhe escapa à escrita a cachupa da Cova da Moura, os ramens servidos em jeito clandestino e a extinção dos pratos retangulares (“Ufa!”) e um bom frango assado.

À conversa com Ricardo Felner, procuramos os porquês para esta vocação para tudo se comer (as mães sempre com o seu quê de responsabilidade), o que faz do bitoque algo tão especial (é difícil atingir a simplicidade) ou a que sabe um punhado de insetos depois de salteados (agradáveis).

“É bom que percebamos que há muito mais para comer do que aquilo que andamos a levar à mesa há 30 ou 40 anos. Em casa, e com tempo, é possível, transformar coisas aparentemente monótonas em grandes alimentos e pratos”. Palavras de Felner que nos dão mote para iniciarmos conversa.

Ricardo, como é que se tornou neste homem que come tudo?

Nestas questões os pais têm muita responsabilidade. No meu caso, a minha mãe obrigou-me sempre a comer, mesmo quando eu não gostava do que chegava à mesa. Na realidade, não se desviava muito do seu receituário para nos fazer as vontades, a mim e ao meu irmão, ainda pequenos. Quando não gostávamos, tínhamos de comer. Julgo que assim acontece com todos nós. Depois, mais tarde, no correr da vida, o nosso gosto alarga-se para vários sabores. Pessoalmente, sou muito tolerante com os amargos. Julgo que esta minha vontade de comer tem muito a ver com isso. Há uns tempos, apanhei uns espargos selvagem que ainda não estavam no ponto ideal de maturação. Logo, são bastante amargos. Fiz os ovos com espargos e partilhei-os com um amigo que me diz: "isto está bom, mas está amargo". Para mim, aquele amargo era bom.

Pessoalmente, sou muito tolerante com os amargos. Julgo que esta minha vontade de comer tem muito a ver com isso.

Se disser que o Ricardo é um gourmet não sente que o estou a pôr numa categoria onde, atualmente, cabe tudo?

É uma categoria que não me diz grande coisa. Associa-se normalmente uma ideia de alguém que é um snobe da comida e eu não o sou [risos], antes alguém que dá muita atenção ao que come. Não como qualquer coisa. Aliás, aborrece-me comer sempre a mesma coisa. Comer é algo em que penso, a que dedico o meu trabalho, mesmo quando não é trabalho.

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E se lhe chamar foodie? O Ricardo dedica-lhes uma crónica no seu livro.

Mais uma vez não gosto de categorias. Foodie, tem outras ideias associadas com as quais também não simpatizo. É um fenómeno de moda, está muito relacionado com as redes sociais e algum oportunismo relacionado com o facto de algumas pessoas publicarem nesses meios.

Atualmente muito se fala de restaurantes, sobrestimando casas sem méritos. Isto, muitas vezes, à boleia de publicações nas redes sociais que mimetizam opiniões. Não corremos o risco de estar a criar ficções e com isso empobrecemos a nossa cozinha?

Julgo que há espaço para todo o tipo de comunicadores, não coloco os bons e os maus em lados diferentes da barricada. Julgo que seria bom que as pessoas percebessem que há uma diferença. Sou jornalista, não recebo nada das marcas. Há uns tempos, alguém me dizia: "parece que és patrocinado pelo Lidl". Isto porque fiz um post sobre os iogurtes daquela marca. Quando publiquei, não vi a abordagem por esse lado. Mas, calhando, mais de metade das pessoas que olharam para aquele texto, acharam que aquilo era, como se diz agora, um conteúdo patrocinado. Vale a pena explicar às pessoas que sou jornalista, obedeço a um código deontológico exigente. Escrevo sobre marcas porque estas estão nas nossas escolhas do dia a dia no que respeita à comida e são diferentes, há umas que valorizo outras que valorizo menos.

Mas, há nestas coisas uma zona cinzenta e uma fronteira ténue sobre o que é comunicação empresarial e jornalismo. O que me aborrece é que as pessoas encapotem que estão a ser pagas para fazerem uma comunicação. Julgo que isso não é muito digno.

Diz-nos o Ricardo que “o caminho aumenta o apetite”. Sente que quanto mais viaja e conhece mais apetite tem por ir mais além?

É verdade. É tão surpreendente encontrar um sabor novo, algo que nunca nos passou pela boca, que nunca sentimos. Às vezes emociono-me.  No fundo, é descobrir que este mundo nos está sempre a dar coisas boas e há muito por descobrir. Temos de sair e ir à procura. A questão do caminho também é uma espécie de metáfora. A comida também é esse lado de procura, de cultura, de geografia, de história. Achamos sempre mais interessante quando descobrimos um restaurante. Passa muito por essa descoberta, com a nossa curiosidade o arriscarmos entrar num sítio que desconhecemos.

É tão surpreendente encontrar um sabor novo, algo que nunca nos passou pela boca, que nunca sentimos. Às vezes emociono-me.

Faço-lhe agora a pergunta de outra forma: será que a distância é proporcional ao apetite que levamos pela comida? Isto porque podemos fazer grandes viagens pela cozinha sem sair, por exemplo, de Lisboa. O Ricardo pode dar-me um exemplo?

Quando fui para o jornalismo, a minha ideia era ser repórter de guerra e depois entrei no jornal Público. Fiz várias coisas, mas esse lado de aventura e de adrenalina, sinto que se transferiu para a comida. Mesmo não saindo de Lisboa é possível viajar bastante. É preciso quebrar alguns preconceitos que temos. Eu não digo que ir à Cova da Moura é como ir para a guerra, mas é preciso ter algum cuidado a determinadas horas. Mas é um bairro feito, essencialmente, de boa gente. Vale a pena lá ir comer uma cachupa. E, isso, é tão perigoso como andar na Rua Augusta às oito da noite.

“Partilhar”, “sazonal”, “local”, são uma espécie de mantra que hoje se repete em muitas mesas. Não lhe soam a bengalas para apimentar ementas sem alma?

Diria que há uns anos, no que respeita à febre das tascas modernas, dos petiscos para partilhar, bastava a alusão, ser algo informal, alegre e jovem, para termos um bom restaurante, o que não é verdade. Gosto da ideia de partilhar, gosto da ideia de experimentar muitas coisas e de ter um almoço ou jantar e, com estes, provar comidas diferentes, o que não invalida que goste, de vez em quando, de ter um prato só para mim. Gosto de provar várias coisas, até se calhar por defeito profissional. Isto não é um hábito muito português. Não é concebível um chinês ter uma refeição como um português, ou seja, sentar-se à mesa e comer um prato e terminar com um café. É um hábito de Portugal e de alguns países europeus.

No que respeita ao sazonal e ao local, confesso que simpatizo com os conceitos, embora eles estejam a ser usados mais como marketing do que como outra coisa. Sou fã do conceito por questões ecológicas, ambientais e de sustentabilidade e porque, normalmente, as coisas são melhores quando são comidas no seu tempo, na sua época e quando não andaram dez mil quilómetros em câmaras frigoríficas para chegarem a Lisboa.

Muitas vezes damos voltas e reviravoltas na cozinha e, no final, vamos encontrar a singeleza das cozinhas da mãe e da avó. É nesse campo quase intuitivo, antigo, que reside o segredo para a grande mesa?

Gosto muito quando sou surpreendido com novos sabores, novas ligações, mas é muito raro e muito difícil. A tradição não é só boa por assim ser, por ser uma coisa que está congelada há não sei quantos anos. A tradição é boa porque é um apuramento mais lento e sistemático de uma fórmula que funciona. São anos e anos a experimentar técnicas, temperaturas, conjugações de ingredientes. Há uma razão para a tradição, por norma, funcionar melhor do que a inovação em termos de paladar. Gosto das duas coisas. O que digo é que as duas coisas são muito sérias, tanto a inovação com a tradição.

Numa das crónicas que inclui no seu livro, o Ricardo traz à liça um gabiru, feito um inventor na cozinha. Atualmente temos muitos gabirus dentro das cozinhas dos restaurantes?

[risos] Temos, mas acho que já tivemos mais. Há dez ou 15 anos, tivemos uma fase que coincidiu muito, na alta cozinha, com o início da moda da cozinha asiática, plasmada no conceito de cozinha de fusão. Um “chefe”, saía da Escola de Hotelaria do Estoril, fazia um estágio de três meses num restaurante de fine dining, via por lá umas coisas, umas fermentações com soja, por aí fora. Depois, imaginemos, montava o seu restaurante e aplicava aquelas ideias e usava-as “à maluca”. Isto simbolizou muito esta ideia do “vamos inventar e misturar tudo, isto vai ser muito giro, muito exótico”.

Na cozinha de fusão, são muito poucos os sítios que a fazem bem e que saiba bem. É preciso estudar, testar, dar a provar e perceber se as coisas estão a funcionar minimamente. Há cozinha de fusão muita boa. O expoente máximo será o restaurante DSTAgE, em Madrid, com duas estrelas Michelin que faz isso extremamente bem.

Quanto ao gabiru das sopas, esse não faz fusão, experimenta o ´frasquinho` de especiarias e pensa: "se calhar esta sopa com um bocadinho de cravinho fica bem".

o homem que comia tudo
o homem que comia tudo "O homem que comia tudo", livro que reúne crónicas do jornalista Ricardo Dias Felner. créditos: Editora Quetzal

Ricardo, que prato é verdadeiramente original na nossa cozinha?

O bitoque marca a nossa identidade, é uma espécie de patinho feio da nossa gastronomia. É aquele prato que escolhemos quando o menu não nos parece muito interessante. O bitoque é a cozinha de conforto. Tem é de ser bem-feito. Há esta ideia de que coisas simples, que não muito sofisticadas do ponto de vista culinário, devem ser descartadas. O bitoque tem muitos detalhes e é raro conseguir comer um bom bitoque. É a prova de que o complicado é chegar àquela forma.

O bitoque é a cozinha de conforto. Tem é de ser bem-feito. Há esta ideia de que coisas simples, que não muito sofisticadas do ponto de vista culinário, devem ser descartadas.

Como é para si o bom bitoque?

Tem de ter uma carne com algum nervo, não gosto do bitoque limpinho, tem de ter a sua dose de gordura, ´aquele` molho, um ovo dourado. Comi um bitoque de um chef, de um restaurante Michelin que inclui na carta pratos mais simples. Não falta a sua versão do bitoque, assim como de outros pratos tradicionais. Normalmente não são grande coisa [risos].

Convive bem com a expressão “temos a melhor comida do mundo”, ou acha que o conteúdo desta frase começa e acaba nela mesma?

É que não temos a melhor comida do mundo, lamento dizer isto. Não temos nem a melhor, nem a pior. A nossa cozinha, olhada de qualquer ângulo não é melhor que a cozinha da Geórgia ou do México. Não a estou a comparar à cozinha francesa. Há a tentação de medir. Normalmente, compara-se com a cozinha francesa, japonesa, italiana e até com a chinesa que deu tanto de técnica e onde se faz tantas coisas que os chefs atualmente utilizam, como cozer a vapor, as marinadas, as fermentações. Os chineses fazem isso há séculos.

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Nós, temos de facto uma coisa muito boa: temos um território muito pequeno, mas com características geográficas, culturais, agrícolas muito diversas e isso dá-nos um receituário muito diverso. Que, na verdade, se está a perder. Diria que 80% do nosso receituário se está a perder. Atualmente, vamos a um restaurante tradicional alentejano e temos lá a sopa de cação, os secretos com migas, mas são meia dúzia de receitas tradicionais num universo de centenas de receitas. Vão-se perdendo, porque aquele produto deixou de ser produzido no Alentejo ou porque demora muito tempo a confecionar.

Hoje, há uma linguagem politicamente correta à mesa. Esquecemos as miudezas, a orelha e o focinho de porco, para citar alguns exemplos. A cozinha “limpa” está a matar esta nossa mesa?

Sim. A nossa cozinha é de tacho e gosto particularmente dessa. Por isso sou muito sensível a esta forma de cozinhar e, diria, que estamos a voltar um pouco a essas raízes. Há uma tendência dos novos chefs, dos novos cozinheiros, mesmo os que já têm escola de fine dining, de voltar a esse princípio. Encontramos, cada vez mais, novos restaurantes com um ponto de vista mais moderno no que respeita à apresentação e decoração, mas sem desvirtuar o que é essencial no prato tradicional. Julgo que se está a voltar à cozinha de tacho, a algumas dessas tradições, ligadas à nossa cultura. Focinho do bom é mesmo bom, quando é bem cozinhado.

Por falar de cozinha fora da caixa. Como foi a experiência de andar de loja em loja a comprar insetos para os cozinhar?

Foi engraçado. Foi um pouco louco, é verdade. Predispus-me a cozinhar insetos. As Nações Unidas publicaram um estudo que salienta que a ingestão de insetos será uma forma de ajudar a minorar a fome no mundo. Os insetos têm muita proteína. A pretexto desse estudo, predispus-me cozinhá-los e comê-los. Fiz uma pesquisa sobre insetos para venda e não encontrei nada. Li, então, um texto em que alguém escrevia que era possível comprar insetos e larvas numa loja de animais exóticos. Isto porque são comida para as cobras. Aí fui eu comprar insetos: larvas, grilos, tarântulas. Comprei-os vivos, cozinhei-os de acordo com alguns escritos que fui lendo sobre como cozinhar insetos e, no caso da tarântula, falei com um autor americano. Havia ali uma questão com o veneno. Respondeu-me por e-mail e assegurou-me que não havia qualquer problema. Partilhei com os meus filhos. Fiz uma omelete de larvas e salteei umas quantas na frigideira. Pratos criados por mim [risos]. Lá está, um momento gabiru armado em chef [risos]

Temos de facto uma coisa muito boa: temos um território muito pequeno, mas com características geográficas, culturais, agrícolas muito diversas e isso dá-nos um receituário muito diverso.

As larvas ficaram boas?

Ficaram crocantes e são bastante agradáveis.

Já agora, um almoço com um texugo, uma raposa e um ouriço-caixeiro vale a viagem?

Vale a pena a viagem.  A ideia de experimentar as coisas uma vez vale a pena. Aqui há um propósito jornalístico. Não vou dizer às pessoas para que comam raposa, até porque a sua carne é muito rija. Não vou incentivar o consumo de ouriço-caixeiro porque é uma espécie protegida. Mas é muito bom, é um grande petisco. O prato mais difícil que comi foi a Caneja [Caneja de Infundice]. É uma espécie de tubarão ainda cozinhada por um grupo na Ericeira. O que acontece é que eles enterram o bicho uma ou duas semanas e este apodrece. Ocorre uma espécie de fermentação. É peixe que larga muito amoníaco. Paira um intenso cheiro a urina. Quando entra na boca, somos invadidos com uma fragrância intensa que sobe ao nariz. Na verdade, é uma questão de hábito. No fundo é um ritual, o de reunir os amigos e regar o prato com vinho por causa do amoníaco. E, então, bebe-se muito.

O Ricardo não fala muito de vinhos no seu livro. Interessam-lhe menos?

É uma matéria que me interessa menos. Embora goste muito de vinhos, é um mundo que envolve um conhecimento muito complexo. Continuo a aprender sobre vinhos e assim continuarei, mas o meu foco está mais na comida. Por outro lado, há uma certa monotonia na escolha das bebidas para acompanhar a comida. A falta de diversidade de opções na maior parte dos restaurantes, mesmo nos fine dining, não acompanha o vanguardismo que muitas dessas casas têm relativamente à comida e à cozinha. Por isso, não sou daquelas pessoas que acham que o vinho tem de acompanhar todos os pratos. É verdade que o vinho, pelas suas características, é a melhor bebida para se adaptar a mais comidas, mas há sumos, infusões, bebidas fermentadas que ligam bem com certas comidas. Gostava de ver mais opções nessa área.