O norte-americano Mark Twain foi pródigo em elaborar na escrita e deixou-nos algumas frases célebres. Uma delas: “De todas as coisas que perdi, sinto mais saudades da minha cabeça”. Em certo sentido, parece que a nossa sociedade “perdeu a cabeça”, mas, ao contrário de Twain, ainda não se deu conta disso. O Henrique concorda?
Daquilo que conheço da História, não posso garantir que a sociedade alguma vez tenha “tido cabeça”, no sentido que lhe dá Twain. Apesar disso, revejo-me na ideia de que estamos a atravessar um período estranho. Das várias tendências “sociológicas” atuais, preocupa-me a atomização das pessoas em unidades viradas para dentro – e isso relaciona-se com o meu livro. O discurso típico da autoajuda alimenta uma moral individualista. Por trás das mensagens de encorajamento, há no discurso dos gurus a ideia de que a solução para todos os problemas está ao alcance de cada pessoa, no seu interior. Ora, a maior parte dos problemas são maiores do que nós. Sem desprezo pela importância de nos sentirmos bem na nossa pele, defendo a urgência de sairmos da contagem diária de calorias para pensarmos e agirmos em grupo.
Não há livro sem um objetivo. No caso do seu livro, qual foi a “gota de água” que o levou a dizer: “vou pôr em livro este tema”?
A ideia para o “Desista” surgiu durante a pandemia. Naquele cenário prolongado de catástrofe, de morte, de crise económica e social, espantou-me a tentativa de responder coletivamente ao colapso da saúde mental com arco-íris e mensagens positivas. A sofreguidão para repetir “Vai Ficar Tudo Bem”, quando era evidente que nada estava bem, no lugar de um apoio sério às pessoas mais afetadas, instalou um clima de distopia. Não subestimo a importância de encorajar as pessoas – tento praticá-lo, aliás -, mas o ultrapositivismo e a negação do sofrimento são uma forma pouco saudável de lidar com as crises. No meio de tantos gurus, mantras e rituais para “tirar partido da crise”, acabou por sair um livro de humor.
Numa consulta rápida ao dicionário, a palavra “desistir” dá-nos vários significados, entre eles “abrir mão de” e “abster-se”. No que toca ao seu livro, encontra analogia com estes significados?
Acredito que não perderíamos, como sociedade, em abrir mão deste ideal supérfluo e inatingível de felicidade.
O Henrique encontra uma explicação para nos vermos enredados nesta sociedade afogada em autoajuda e obcecada com a felicidade? Será um reflexo da superabundância?
É natural que a felicidade seja um dos nossos maiores desígnios. O que existe frequentemente na autoajuda é a procura de uma felicidade instantânea e permanente, como se fosse possível “ativar” a felicidade e estarmos conscientemente felizes 24 horas por dia. Tentá-lo não é só impossível. É contraproducente.
“Este livro é para profissionais na arte de estragar tudo no momento em que a vida parecia compor-se”, escreve no seu livro. A sociedade precisa de contratar mais destes profissionais?
Claramente.
O que define estes profissionais que os torna um público-alvo deste seu livro?
Para se ser profissional na arte de estragar tudo no momento em que a vida parecia compor-se, basta lidar de uma forma saudável com a ideia de que as dificuldades existem. Acredito que, de uma forma ou de outra, toda a gente já o sentiu.
Também nos diz que “falhar é um ato libertador”. Porquê?
Num panorama em que só somos encorajados a comunicar o que nos corre bem – o sucesso pessoal, profissional, familiar, etc. -, encontro um certo alívio na ideia de encarar o insucesso com naturalidade.
O Henrique dá-nos no seu livro alguns exemplos de mimetismos como, por exemplo, cantar à janela em tempos de pandemia, ou expressões como aquelas que vimos tantas vezes repetidas: “vai ficar tudo bem”. No fundo, dir-se-ia que traduzem aquele estar a que, comummente, chamamos “carneirada”. As redes sociais terão alguma responsabilidade nisto?
Tendo vantagens inequívocas na forma como facilitam a comunicação entre pessoas, as redes sociais têm contribuído para uniformizar comportamentos num meta-universo em que a norma é a “vida perfeita”. Há quem faça por romper com este ciclo vicioso, cultivando maior autenticidade no que publica, mas o clima dominante continua a ditar uma pressão para aparentarmos ser pessoas perfeitas, lindas, no auge da carreira, rodeadas dos melhores amigos, da família ideal, a viajar e a “aproveitar cada momento”. O contraste entre aquilo que aparenta ser a norma e a realidade de cada um mergulha as pessoas numa frustração profunda e silenciosa.
O que é um “feliz-opressor”?
Cunhei este termo no livro como sendo referente à pessoa que tenta impor aos outros a sua obstinação com a felicidade, acabando por enjoar e deprimir toda a gente. As redes sociais estão repletas de pessoas assim. Deixem as pessoas estar infelizes de vez em quando, caramba!
“Como garantir que a sua cara-metade não o/a pode ver à frente”, escreve o Henrique a intitular o capítulo 3 do seu livro. O Henrique está apostado em fadar as relações amorosas ao fracasso?
De todo. Tenho contacto, aliás, com uma série de relações maravilhosas. Poucas coisas me inspiram mais. O que não conheço é uma única relação onde não haja, por vezes, dúvidas, fases melhores e piores, discussões e divergências saudáveis. Curiosamente, se abrirmos o Instagram, estão lá aos milhares. Devem ter lido livros, que não este, com dicas infalíveis para “arrasar no amor”.
O mesmo fracasso enunciado acima parece aplicar-se às finanças pessoais na forma como nos orienta com o seu livro. Não é bom vivermos com desafogo financeiro e ‘poupadinhos’?
Nada me contentaria mais do que ver generalizado o desafogo financeiro. Só não acredito em nenhum guia que aconselhe toda a gente a arriscar, a poupar para investir ou a abrir uma start-up. Quem sustenta a sua família com um salário mínimo precisa é de um sistema económico justo, que dê às pessoas condições de vida dignas, e não de uma lição sobre arriscar e pensar positivo.
Leva para o seu livro algumas histórias de vida, embora uma delas nos situe há 14.000 anos, quando nos fala da dieta alimentar de Graahl, um nosso antepassado. É preciso recuarmos 14 milénios para encontrarmos uma alimentação sensata?
Deve ter havido um momento na História, algures entre hoje e há 14.000 anos, em que a prioridade da alimentação saudável e acessível a todos, em todas as partes do mundo, descambou para uma realidade atual em que, nos países do dito Ocidente, se tornou numa obsessão com o abacate e a quinoa.
O Henrique movimenta-se no mundo da cultura. Encontra aí pretextos para aconselhar este seu livro a alguém?
Não particularmente.
Qual foi o último livro de autoajuda que comprou?
Li e ouvi dezenas de best-sellers de autoajuda antes de escrever este livro. Infelizmente para quem os escreveu, foram-me todos emprestados.
Imagem cedida por Freepik.
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