É na Safra Lx, um espaço multidisciplinar orientado para a comunidade artística e cultural, que Diogo Barros Pires, também responsável pela gestão deste projeto, partilha parte do seu trabalho como pintor. "I de IV" reúne mais de 50 obras do artista, propondo-nos uma viagem pelas suas memórias e vivências.
É um apanhado e é uma retrospetiva
Esta exposição reúne trabalhos que fizeste nos últimos 15 anos...
Exatamente, desde há 15 anos, mas trabalho há mais tempo do que isso com a pintura.
E, para ti, o que foi mais desafiante no processo de preparação da exposição?
A parte mais complicada do processo, construções à parte, é a de estares a abrir as tuas coisas, trabalhos de anos, uma grande quantidade, pôr contra a parede, pensar se faz sentido, não faz sentido. Custa, às vezes, ver algumas coisas. Nós temos de reviver as memórias. Mas sim, é um apanhado e é uma retrospetiva por isso.
E que memórias, temas, partilhas aqui?
Memórias de encontros meus, pessoas que são importantes na minha vida, relacionamentos diversos, momentos desses relacionamentos. Temos uma pintura que é uma ida da minha namorada às compras. Trazia dois sacos de plástico e fiquei muito interessado pelas formas que estavam nos sacos, a tentar adivinhar o que é que tinha ou não comprado. A que está ao lado [na exposição], estava na praia e vi duas garotas a jogar voleibol. Achei porreiro porque pareceu-me o nascimento da Vénus com o cabelo ao ar. Despoletou-me isso.
Os nossos tempos são distintos
Nestes dois casos, são situações diferentes, mas são momentos do quotidiano. É isso que te inspira?
Sim, porquê? Acho que os suportes mudaram um bocadinho, os materiais também, mas a base da pintura é a mesma. Quando olho para a pintura, acho que sou maioritariamente figurativo, o que procuro representar são momentos do meu dia a dia. Se calhar há 500 anos, os meus momentos podiam até ser parecidos na sua parte mais ontológica, mas os nossos tempos são distintos. Portanto, se calhar uma natureza morta leva com um iPhone. Na realidade, já faz parte. De repente, há uma tomada na casa e há sempre um objeto a ser carregado. Quantas vezes não estás com os teus amigos a tentar perceber onde é que podes pôr o telefone a carregar? Portanto, faz parte do meu elemento do dia a dia.
Mas, quando pensamos em memórias, pensamos sempre em algo com mais significado...
Que o pode ter, mas, às vezes, estamos com alguém que amamos ou que respeitamos e, de repente, está aquela luz a bater, há aquele elemento, há ali qualquer coisa, um bocado poética, se tu quiseres, que nos chama a atenção. Não precisa de ser uma grande paixão, uma grande tristeza. Simplesmente, tu olhas para a pessoa de quem tu gostas, está ali, há ali alguma particularidade e, às vezes, o mais simples é aquilo que te fica na cabeça.
Espero bem que não haja ninguém que fique indiferente
Então, és muito observador...
Claro, porquê? Imagina, tu como repórter, quando estás no teu dia a dia, se calhar há momentos que não chamam a atenção a um não repórter, mas a ti prendem-te a atenção, porque vês o interesse jornalístico. Como pintor ou como artista, há coisas no dia a dia que se calhar as pessoas não dão valor, mas que me estimulam o olhar, mesmo que subconscientemente. Por vezes, estás a pintar e começam a sair-te só umas cores e pensas: "são as cores do metro". Se calhar é porque comecei a andar de metro todos os dias para vir para o Lumiar. Aquilo manifestou-se na minha pintura. Portanto, o trabalho está em ti, mesmo quando não estás com a mão na massa, estás a trabalhar e a processar a realidade com olhar crítico.
E como é que apresentas a exposição para quem ainda não a conhece?
Acima de tudo, acho que é uma boa maneira de conhecer o meu trabalho, há realmente um apanhado de diferentes anos. É uma boa maneira de conhecer a Safra, porque, para além de estar construída de uma maneira que temos acesso aos ateliers de cada uma das pessoas que cá estão - e são pessoas de diferentes práticas, com diferentes interesses e produções -, também acho que quero criar é um convite à visita. Não há entrada. Quero que as pessoas venham, que as pessoas não tenham vergonha a comentar, a dar a sua opinião, por mais suportada que seja ou não. Nisto das artes, estamos a brincar com as sensações. É o nosso material. Portanto, vai haver pessoas que vão gostar, outras que vão detestar e espero bem que não haja ninguém que fique indiferente.
Mas quero que se sintam confortáveis para sentir isso. Porque não há certos e errados na pintura. Há muitas coisas em que há certos e errados. Aqui há uma sensação, que a partilhem, que a mostrem, porque estamos cá para ouvir, para além de mostrar.
Quando se cresce num subúrbio de Lisboa é, claro, que temos nossos amigos, a nossa vida, mas não há uma grande oferta do que fazer
A exposição é de há 15 anos, mas já pintas há muito mais tempo. Em que ano é que começaste a pintar? Quando é que surgiu o bichinho e como é que se desenvolveu?
Penso que o bichinho sempre esteve presente, mas houve momentos que me desenvolveram mais. Tudo começou com a escrita. Acredito que é aquilo que nós temos maior proximidade: pensamos, lemos, a palavra faz parte do nosso dia a dia. E eu escrevia quando comecei a vir para Lisboa. Era a maneira que tinha de lidar com a rotina do transporte, tinha que apanhar o comboio, depois o metro.
Vens de onde?
Cresci entre a Parede e Carcavelos. Acho que as pessoas não percebem que quando se cresce num subúrbio de Lisboa, é claro que temos nossos amigos, a nossa vida, mas não há uma grande oferta do que fazer. E até termos a nossa DTR ou o nosso carro, o nosso círculo é baseado onde os nossos pés nos levam. Não há transportes públicos, não há nada. Quando cheguei a Lisboa, comecei a dar-me com pessoas mais parecidas comigo, comecei a ver coisas que não tinha acesso na Parede. Claro que vinha ao Garage, àquelas coisas, mas não passava daí. E, quando estava no transporte, a lidar com aquela ansiedade de ir para a escola - que há no início - comecei a escrever, a escrever, a escrever. Um dia a minha irmã, que gostava de mudar a mochila de três em três meses para uma nova da moda, deixou uma que gostei bastante. Dentro havia uma caixinha com lápis de cera. Aquela porcaria ficou-me na mão. Estava a escrever um poema e fui desenhar o que escrevi. Gostei. Gradualmente, passei a desenhar cada vez mais e a escrever menos. Passei a escrever sobre o que tinha desenhado. Comecei a criar mais, a brincar com a cor, com as poucas cores que tinha naquela caixa. Depois, conhecia pessoas como o Miguel Rondon e outros artistas. Passei a relacionar-me com eles, a sair com eles à noite, a ver o que faziam. Portanto, foi assim: havia o bicho, mas também tive a sorte de estar rodeado de situações e de pessoas que me ajudaram a criar. O Miguel, como me conhecia nessa altura, via os meus desenhos e dizia: "pá, miúdo, faz isto, experimenta, deixa-me ver mais".
Podemos ser um sapateiro incrível com criatividade e podemos crescer como o Manolo ou o Louboutin
E como é que a pintura passou a ser uma profissão?
Por uma questão prática, quando tive de escolher o que tinha que estudar, decidi estudar economia. Consegui ter um bom trabalho, o que me permitiu explorar mais coisas que antes não conseguia. O trabalho duro deu-me bastante metodologia e muitas pessoas diziam que essas coisas não são criativas. Acho que há criatividade em tudo e é isso que nos diferencia. Em qualquer negócio, desde o mais simples até à coisa mais complexa ou mais emocional, penso que deve haver sempre criatividade. Criatividade não é só dos artistas é de todos nós. Podemos ser um sapateiro incrível com criatividade e podemos crescer como o Manolo [Blahnik] ou o [Christian] Louboutin. Cresceram por serem diferentes. O Facebook existe por alguém ter sido diferente e ter sido criativo. E daí, tudo o que fiz, trouxe ferramentas. Ter arranjado o telhado [da Safra], ter construído as coisas, foi porque também trabalhei num estúdio artístico e aí via os carpinteiros a trabalhar, os escultores e eu dizia 'também quero fazer, quero ajudar.' E da minha outra vida trouxe, se calhar, uma metodologia de trabalho, trabalhar no duro, termos um prazo de entrega. De outras coisas foram os elementos da cor, outras foi a carpintaria. E, com tudo isso, as coisas foram crescendo até onde estão hoje. Nunca deixei de pintar. Todo o tempo livre e dinheiro que tinha eram para investir, porque estas coisas são caras. Isso também se nota no meu trabalho: os antigos eram em cartão que apanhava no lixo, por exemplo, com três ou quatro cores. Por sorte, vivia por cima de uma loja de bicicletas [tinha cartão gigante]. O bicho sempre esteve lá. Claro que a Safra também foi um grande salto. Já antes, tinha tido um estúdio grande, porque as pessoas [donas] confiavam em mim. Mas também vem do meu outro trabalho. É por confiarem em mim por causa da minha outra vida que também me permitem brincar como artista do outro lado. Por haver um bocado essa dualidade.
E criaste aqui [no Lumiar] a Safra. Como é que surgiu o convite para os outros artistas?
Foi um desafio grande. Os proprietários viram o que tinha feito no meu antigo atelier, explicaram-me as condições do espaço e deram-me as chaves assim: 'brinca'. Claro que, com algumas limitações, mas disseram 'brinca'. E, como é óbvio, é um espaço enorme, tem as suas despesas. Tinha que arranjar outras pessoas com quem partilhá-lo para conseguir ter fundo de maneio. No início, isto começou pouco antes do Covid, foi um grande susto. Bati mesmo no fundo. Acho que nunca fiquei assim tão assustado a nível financeiro, porque é preciso muito investimento. Na altura, tinha que aceitar quem viesse, como é óbvio, com os problemas que podem advir disso. Por sorte, começaram a aparecer cada vez mais pessoas. Hoje, já conseguimos fazer filtro, conseguimos perceber logo quem é que quer mesmo, porque não desiste à primeira, insiste, propõe soluções, oferece trabalho em troca de espaço. Começas a ganhar a sinergia. Aqui aprendi, acima de tudo, a por o chapéu de senhorio. É um chapéu muito especial. Felizmente, quem está aqui agora é boa gente. Esta exposição também só existe graças a eles.
Sou eu quem dá a cara na base diária
Em suma, quais são as tuas funções e papel na Safra?
O meu papel é um bocado de coordenador. Por sorte, a máquina já está oleada, já temos as coisas a funcionar e gosto de dizer que sou o sócio-gerente do espaço. Há outras pessoas envolvidas, mas sou eu quem dá a cara na base diária e quem garante que as coisas estão a funcionar, que dou na cabeça, que vejo se está tudo bem e que também assume as responsabilidades quando alguma coisa corre mal.
Disseste que a exposição acaba por dar uma oportunidade de se ver o trabalho dos teus colegas. Também pretendes promover o trabalho de outros artistas?
Claro que sim. Acho que a exposição é um pretexto ótimo para virem conhecer o meu trabalho, a Safra e o trabalho individual de cada uma das pessoas que compõem o espaço e que garantem que existe. No tempo deles, à maneira deles, sem qualquer tipo de obrigação.
Nós temos preconceitos, mesmo que não tenhamos noção disso
Para que nasce a Safra?
Acho que muita gente se foca no custo financeiro da criatividade e faz todo o sentido. Porém, muitos de nós nos esquecemos da necessidade de espaço para o ato criativo. Há sítios que precisamos de ter algumas características para a natureza do seu trabalho, mas as especificidades do trabalho artístico-oficinal são: parede, chão, teto, água e eletricidade. É disto que as pessoas precisam. E espaço, porque fazer um móvel não é a mesma coisa que fazer uma apresentação PowerPoint num computador. Como pintor, em casa, há coisas que não consigo fazer, mas, como consultor, esse meu outro lado, consigo fazer. A primeira coisa foi suprir a necessidade que existe de espaço.
Aqui trabalham pessoas de diferentes nacionalidades. Traz algum benefício a nível de troca de experiências?
Claro que sim. Por exemplo, para fazer a minha exposição, a coisa que demorei mais tempo a fazer foi a folha de sala. Tenho aqui ao meu lado um designer turco, muito porreiro, que me viu fazer e, em 15 minutos, melhorou-a. Outro exemplo, umas modistas tinham feito um vídeo, mas não estavam a perceber como fazer uma coisa. Disse-lhes: 'batam à porta do atelier ao vosso lado, ele faz pós-produção de vídeo'. Cria-se essa sinergia. A parte das nacionalidades, acho que nos traz outra maneira de olhar para a vida. Porque, quando fiz Erasmus, gostei muito de estar fora de Portugal. Acima de tudo, destruí bastantes preconceitos. Nós temos preconceitos, mesmo que não tenhamos noção disso. Há coisas que não têm a ver com nacionalidade, têm a ver só com a educação e com a maneira de estar na vida. E, por sorte, as pessoas que cá estão olham para a vida da mesma maneira mesmo que com olhos distintos, outra formação, outro paladar.
A primeira exposição de Diogo Barros Pires, “I de IV”, pode ser vista na Safra Lx até ao dia 19 de janeiro de 2025.
As visitas, de segunda a quarta-feira, devem ser marcadas com antecedência enquanto que, às quintas e sextas, o espaço está aberto entre as 15h00 e as 21h00. Já ao fim de semana, a Safra funciona entre as 14h00 e as 20h30.
Onde fica a Safra Lx? A Safra fica na Estrada da Torre, nº 47-A, 1750-296, Lisboa.
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