Filha da Minha Mãe, romance de estreia de Diogo Costa e Rafael Felizardo, convida-nos a acompanhar o doloroso despertar de Emília, uma jovem de 18 anos presa numa teia de amor e controlo, tecida pela figura da mãe, Adélia. A morte do pai inaugura uma viagem íntima para Emília — não só pelo luto, mas pela procura da própria voz, silenciada desde sempre por laços de sangue e lealdades herdadas. Neste retrato das relações familiares, os autores mergulham na complexidade emocional do vínculo mãe-filha, evitando os caminhos óbvios, para enveredarem na ambiguidade que habita todas as histórias reais.

Diogo e Rafael, leitores ecléticos e escritores cúmplices, assinam esta narrativa a quatro mãos. Nesta conversa, revelam como se construíram as personagens, os dilemas e emoções que, inevitavelmente, se erguem perante o escritor. Falam da experiência de criar Emília, da escolha de escrever a partir da voz de uma mulher e das perguntas que ficaram — sobre identidade, liberdade e o momento em que deixamos de ser apenas filhos para nos tornarmos inteiros. Partilham-se também as reações dos leitores. Diogo e Rafael revelam ainda os efeitos desta experiência nas suas vidas — uma reconexão com a autenticidade pessoal — e anteveem o trabalho que já preparam e que antecipam como distinto da obra aqui em apreço com a chancela da Manuscrito.

O Diogo e o Rafael escreveram este vosso romance de estreia a quatro mãos. Querem partilhar com os leitores como decorreu a colaboração neste projeto emocionalmente intenso? Houve separação na construção das personagens, dos capítulos, ou a escrita foi uma construção a dois?

Como George R. R. Martin certa vez disse, existem dois tipos de escritores: o que semeia, e o que faz a jardinagem. Tivemos a sorte de nos complementarmos. O Rafael é o semeador e o Diogo é o jardineiro. A criatividade e a facilidade de visualização do Rafael definiam o curso da narrativa, o faro e a sensibilidade do Diogo engrossavam-na. Assim, cada um contribuiu de igual forma em tudo, tendo por base as suas competências específicas enquanto escritor. Não houve um capítulo, uma página, um parágrafo que não passasse pelas mãos dos dois. Muitos foram os jantares em que discorremos, horas e horas, sobre a forma que cada personagem ia ganhando dentro de cada um. Portanto, sim: foi mesmo escrito a quatro mãos.

Antes de serem escritores, o Rafael e o Diogo são leitores. Como se definem enquanto leitores? Que autores e obras preenchem os vossos dias? E como influenciaram a vossa voz narrativa?

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Somos ambos bastante ecléticos. Embora o Diogo esteja um pequeno degrau acima do ecletismo e seja capaz de ler mesmo qualquer coisa, o que não é o mesmo que dizer que gosta de tudo o que lê.

A julgar pela nossa estante, diríamos que os autores que preenchem os nossos dias são Dostoievski, Afonso Cruz, José Saramago, Eça de Queirós, Virginia Woolf, Tolstoi, Murakami, João Tordo, Annie Ernaux, George Martin, Stephen King, James Baldwin. São tantos e tão bons que é quase um insulto a todos os demais que faltaram mencionar. Mas aquele que mais nos influencia é sem dúvida o maravilhoso Dostoievski. Aquele homem conhecia mesmo a alma do ser humano. Era capaz de olhar para ela e pintá-la como ninguém.

Olhemos para o vosso livro de estreia, descrito como um “romance coming-of-age” (Álvaro Curia), focado no despertar de uma filha e na desconstrução de uma relação familiar tóxica. Esta é uma obra endereçada a um público em específico?

Não. É uma história dedicada a todos nós. Não somos todos filhos e filhas? Não passamos todos pelo desafio que é construir a nossa identidade separada dos nossos pais? Apenas uns com mais tribulações do que outros. E mesmo que esta não seja a história de todos nós, será certamente a história de alguém. Pensamos que seja este um dos papéis da literatura: dar a conhecer vivências, estimular a empatia, criar o espaço que precisamos para aceitarmos ou curarmos velhas feridas.

Filha da Minha Mãe apresenta uma relação mãe–filha tensa e ambígua. O que os levou a escolher justamente esta dinâmica familiar como tema central à narrativa?

Ambos perdemos os nossos pais demasiado cedo. O Rafael perdeu o pai aos dois anos e o Diogo aos 24 anos. Quando ambos saímos de casa para viver a nossa vida, enquanto adultos e enquanto casal, começámos a questionar-nos sobre quem seriamos para lá das nossas mães que, durante tanto tempo, tinham sido o nosso mundo. Quanto daquilo que eu gosto é, efetivamente, um gosto meu? Quanto daquilo que eu penso é, efetivamente, a minha voz pensante?

Diogo Costa tem 31 anos, nasceu e cresceu em Lisboa. Mestre em Engenharia Informática e de Computadores pelo Instituto Superior Técnico, trabalhou em várias empresas da área, no entanto nunca conseguiu sentir-se completamente realizado em nenhuma delas. Desistiu da carreira como informático para se tornar controlador de tráfego aéreo.

Rafael Felizardo é natural de Lisboa, tem 32 anos e é licenciado em Direito. Trabalha como advogado no contexto empresarial, enquanto persegue um sonho antigo: o de tirar o curso de Psicologia na Faculdade de Psicologia de Lisboa.

Sendo este o nosso primeiro romance, pareceu-nos natural debruçarmo-nos sobre um tema que nos fosse minimamente familiar: a emancipação. Por outro lado, não queríamos, de todo, cair na tentação de o tornar autobiográfico. Efabular a partir da perspetiva de uma mulher pareceu-nos a solução mais óbvia para nos distanciarmos das nossas histórias pessoais, embora com o desafio acrescido de termos de investigar e honrar a experiência da mulher.

Olhemos para a personagem Emília, com apenas 18 anos. Emília confronta-se com a morte do pai e a influência sufocante da mãe. Por que quiseram retratar este momento de transição tão específico — e potencialmente traumático — para uma jovem mulher?

Foi esse o desafio que nos impusemos. Imaginar uma pessoa, ou conjunto de pessoas, num determinado dilema, numa situação limite, definidora do resto da sua vida. Porque é nas dificuldades que podemos retirar as maiores aprendizagens. Claro que só aprendemos quando experienciamos as coisas na nossa própria pele. Mas gostamos de acreditar que, através das experiências dos outros, talvez possamos estar mais atentos e, em vez de nos atirarmos para o abismo de cabeça, atemos pelo menos uma corda a um tronco de árvore antes de nos atirarmos.

Como construíram Emília enquanto voz narrativa? O que procuravam transmitir através dos seus pensamentos, dúvidas e medos?

Não partimos com uma ideia clara de quem a Emília é. A voz da Emília foi sendo construída à medida que ela nos ia contando a sua história. Fomos mais o instrumento dela, do que ela o nosso. A nossa missão era apenas verter a sua essência em cada página, fosse ela qual fosse, com todos os seus moralismos e contradições, certezas e incertezas, escudos e vulnerabilidades. No fundo, o que procurávamos transmitir era a sua condição humana.

Filha da Minha Mãe
Filha da Minha Mãe créditos: Manuscrito

A narrativa desenvolve-se num universo de emoções contraditórias: gratidão, culpa, libertação. Gostaria de vos ‘escutar’ sobre o equilíbrio delicado entre empatia e crítica na construção da mãe de Emília, evitando cair no estereótipo da “mãe vilã”?

Adélia não é, de facto, vilã nenhuma. Em primeiro lugar, é uma mulher; que também foi filha, que cresceu, que amou e que acabou por se tornar mãe. Porém, não nos podemos esquecer de que quem está a contar esta história é a filha dela. E, como filha, a visão que a Emília tem da sua mãe será sempre toldada pela sua própria experiência. A imparcialidade só é possível até ao ponto em que ela conseguiu curar a sua dor em relação à mãe — um caminho que ela ainda se encontra a percorrer. Toda a narrativa é precisamente a tentativa da Emília em se aproximar da meta desse caminho.

Emília percebe que, por influência materna, nunca fez o Caminho de Santiago — um dano simbólico. Até que ponto esse sonho adiado representa a luta pela sua autonomia e identidade pessoal?

Esse é, sem dúvida, um ponto chave que, se não fosse a morte do pai, facilmente lhe poderia ter passado ao lado. Afinal, a palavra da Adélia era a lei — e ela não se aplicava só à Emília. É fácil para ela acreditar que, se o pai estivesse vivo, não haveria discussão quanto a ela fazer o Caminho. Mas para alguém de fora, como o leitor, talvez surjam algumas dúvidas. Talvez esse sonho adiado só tenha conseguido adquirir o peso que adquiriu na sua luta pela autonomia e identidade pessoal, porque o pai morreu.

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Já receberam testemunhos de leitores que viveram experiências semelhantes? Houve alguma mensagem de leitores com histórias que se cruzam com as protagonistas? Se sim, como reagiram?

Sim, já recebemos partilhas de leitores que identificaram muitos pontos em comum com a história da Emília. E que, tal como ela, ainda se debatem com as suas relações com os progenitores. Só podemos agradecer a vulnerabilidade dos leitores em partilharem as suas experiências connosco. Enternece-nos o coração, cheio de gratidão e de respeito. Por outro lado, preenche-nos uma sensação de missão cumprida, por termos honrado a história de tanta gente através da história da Emília, bem como a esperança de que se sintam um pouco menos sozinhas.

A leveza não existe num tema tão denso como aquele que levam para o vosso livro — mãe manipuladora, morte do pai, pressão familiar. Da mesma forma, não saímos iguais como autores dos temas que tratamos. Que Diogo e Rafael saíram ao escreverem as últimas palavras de Filha da Minha Mãe?

Enquanto autores, ao escrevermos este livro fizemos o favor a nós próprios de nos relembrarmos de encontrar a coragem para sermos autênticos. Antes de sermos filhos, ou pais, ou irmãos, ou amigos, sejamos. Queremos acreditar que com o fim desta experiência emergiram um Diogo e um Rafael mais fiéis a si mesmos.

No vosso futuro enquanto escritores prefiguram-se novas narrativas centradas em relacionamentos familiares complexos? No fundo, o que gostaria de saber é se já trabalham num próximo livro?

Não necessariamente. Não vamos querer cingir-nos ao contexto familiar. O mundo é tão grande… E nós somos feitos de tantas coisas, de tantas experiências que extravasam as nossas origens.

Já estamos, de facto, a trabalhar num próximo livro. Uma narrativa, uma voz e uma história completamente distintas de Filha da Minha Mãe.