Num tempo digital, de mãos que substituíram os territórios do papel pela urgência de dedilhar ecrãs, Ivo Meco, professor e divulgador científico, propõe-nos uma viagem em contracorrente; um caminho de contemplação e de conhecimento, de reflexão e de reencontro. Em Das Plantas num Livro (edição Pergaminho), o autor - que também assina as ilustrações da obra - palmilha séculos de história e distintas geografias para nos oferecer um objeto em livro que pensa o próprio livro e a natureza que lhe é intrínseca. Antes de ser artefacto, o livro foi árvore e é memória dessa ascendência no meio natural. “O corpo deste livro é feito de árvores”, escreve o autor no prólogo e acrescenta: “Ato de justiça feito ao sacrifício cometido, seria merecido que todos os livros tivesse como epitáfio e memorando no seu frontispício ou folha de rosto a seguinte frase. Eu, livro, já fui árvore e sou memória de plantas”.

Bétula, papiro, cedro-do-líbano, bambu, palmeiras, cânhamo, linho, incluem-se nas 12 espécies vegetais que dão corpo ao livro urdido por este apaixonado pela botânica, nascido em 1980 em Sines, sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Botânica e convidado residente da série documental Paraíso, emitida na RTP2, em 2017 e 2018.

“As plantas são os pilares da civilização. Desde tempos imemoriais, foram não só sustento, mas inspiração e linguagem sagrada. Na cadencia dos ciclos, teceram mitologias, crenças e expressões artísticas, espelhado a íntima relação entre os Humanos e a Natureza. Das folhas dos carvalhos sagrados de Dodona, que revelavam respostas aos suplicantes, aos papiros que orientavam os mortos na viagem para o Além, cada planta transporta uma história do engenho humano e da sua busca incessante de significado”, escreve no prefácio ao livro Luís Mendonça de Carvalho, titular da Cátedra UNESCO em Etnobotânica. Diretor do Museu Botânico do Instituo Politécnico de Beja.

Acrescenta Ivo Meco as seguintes palavras no prólogo à obra: “Livros, jornais, revistas, folhetos, cartazes, cadernos, papel para escrever ou imprimir, liso, quadriculado ou de linhas, papel vegetal e papel kraft, papel de limpeza, papel higiénico, lenços e toalhas de papel, caixas de cartão, cartão prensado e cartonado, caixas de ovos... (...) O contacto com o papel está presente na nossa vida muito antes sequer de desenvolvermos a coordenação necessária entre os músculos da mão, a visão e o cérebro de modo a conseguirmos desenhar as primeiras letras com algum rigor”.

A botânica, a literatura e a memória entretecem as páginas do livro. Uma teia de temas que convoca à reflexão palavras de figuras como Virginia Woolf e Eça de Queirós, a entrelaçarem-se na verve de Fernando Pessoa, Heródoto ou Yasunari Kawabata e no virtuosismo de Clarice Lispector, Paulina Chiziane ou Umberto Eco.

A obra que chega agora aos escaparates, sucessora do primeiro livro do autor, Jardins de Lisboa – Histórias de espaços, plantas e pessoas (2019) é, a vários tempos, um ensaio de etnobotânica, uma meditação poética sobre a linguagem, a diversidade e o engenho humano.

“Hoje em dia, enquanto caminhamos a passos largos na Era Digital, é recorrente e diário o uso de tecnologia como os tablets, os leitores de livros digitais, os smartphones que, facto curioso, permanecem submetidos à forma retangular de um livro e, simultaneamente, ao formato de uma porta ou de uma janela”, sublinha Ivo Meco no livro. Tema que trazemos para esta entrevista. Uma conversa que nos conduz aos porquês e ao exercício da escrita.

Há um momento inaugural em que nasce a ideia para um livro. No caso do Ivo, qual o contexto em que surge o impulso para escrever a presente obra?

O primeiro impulso veio da vontade de divulgar botânica, algo que já me move também nas visitas guiadas a jardins e na escrita do meu livro anterior, o Jardins de Lisboa – Histórias de espaços, plantas e pessoas. Existe bastante divulgação na área, mas muitas vezes em quadrantes diferentes, como o herbalismo, ou seja, a utilização de plantas comestíveis e medicinais. A minha abordagem centra-se mais na importância das plantas no nosso quotidiano e na nossa formação. Este livro surge como uma tentativa de contrariar a "impercepção botânica", isto é, a dificuldade em perceber a importância singular das plantas.

Inicialmente, a ideia era escrever um livro em formato de gabinete de curiosidades botânicas. Ao pensar nas plantas sobre as quais queria escrever e nas suas curiosidades, percebi que muitos dos materiais à nossa volta têm origem botânica — inclusive o papel. Isso levou-me a escrever um primeiro capítulo sobre o papel, que acabou por crescer e tornar-se um livro inteiro, dada a abundância de informação e a complexidade do tema.

Ou seja, o livro partiu sem uma estrutura fechada e foi-se construindo a partir da experiência da própria escrita e pesquisa?

Sim, já me tinha acontecido isso no livro anterior. Começo com um plano geral, faço um esqueleto com capítulos e pontos a abordar, mas a verdade é que, à medida que avanço na leitura e na escrita, o próprio livro começa a orientar-me. Neste caso, aquilo que era um capítulo tornou-se o livro inteiro. Outras plantas foram surgindo de forma quase acidental, à medida que aprofundava a pesquisa.

Este livro é também uma celebração da literatura enquanto produto cultural universal, no qual as plantas estão sempre presentes, ainda que de forma subtil.

Mais do que o objeto livro, o Ivo concorda que nos oferece uma história do papel enquanto fundação para a construção da civilização?

Sem dúvida. Estamos habituados à narrativa mais comum — o papiro, o papel chinês, o cânhamo — mas a história do papel é muito mais diversa, antiga e disseminada geograficamente. Fiquei surpreendido ao descobrir, por exemplo, que no continente asiático se escrevia em folhas de palmeira. Na América do Sul, onde a tecnologia chinesa nunca chegou, desenvolveu-se uma técnica própria com outras fibras vegetais, como o papel amate. Estes aspetos não são amplamente divulgados, mas mostram o engenho humano e a diversidade de soluções culturais que diferentes povos criaram.

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Aliás, o reconhecimento do engenho humano atravessa todo o livro...

Sim. Apesar das coisas terríveis atribuídas à nossa espécie, há também grandes feitos. O livro é, além de científico, um elogio à cultura. Impressiona-me pensar como, há milénios, se criaram materiais que nos permitiram preservar memória e projetar ideias para o futuro. O papel, nesse sentido, é talvez tão importante quanto a roda ou o fogo. Foi graças ao papel que muitos pensamentos chegaram até nós. Por isso, este livro é também uma celebração da literatura enquanto produto cultural universal, no qual as plantas estão sempre presentes, ainda que de forma subtil.

Há pouco o Ivo caracterizou o livro como um “gabinete de curiosidades”. Aliás, tanto quanto sei, tem em casa um “gabinete de curiosidades de objetos naturais”. O Ivo quis trazer para este livro aquele carácter universalista e de espanto que caracterizava estas coleções no século XIX?

Sim, essa era a ideia inicial: um gabinete de curiosidades botânicas. Talvez venha a ser um próximo livro. Sempre me fascinou esse espírito de síntese e espanto dos gabinetes de curiosidades — condensar num espaço físico ou num objeto toda a maravilha do mundo. No caso das plantas, elas são um ponto de partida que nos leva à literatura, à música, à moda, aos perfumes, às formas de pensar. São a base de muita coisa.

Em momento anterior, o Ivo referiu que quis deixar neste seu livro “pequenas marcas de quem sou”. Quem é o Ivo expresso neste livro? Onde encontramos essas marcas?

Tal como no livro anterior, considero importante que um autor deixe algo de si naquilo que escreve. Neste livro, isso é mais explícito. Está lá o meu olhar sobre o mundo e a minha forma de o pensar. Sou um apaixonado por botânica e cultura, mas também um defensor da liberdade e da diversidade. Há referências e escolhas que refletem isso, tanto na seleção de autores como nas ideias que discuto. Falo abertamente sobre diferentes expressões identitárias, autores de várias proveniências, géneros, religiões — todos contribuem para a riqueza comum. A conclusão do livro é também uma reflexão sobre a importância do papel enquanto símbolo dessa diversidade e da liberdade.

O seu livro convoca-nos a uma reflexão ecológica. Aliás, parte do objeto livro para estabelecer esta ligação primordial com a natureza. Vinca mesmo a ideia do livro como “memória da árvore”. O que sobra dessa memória no objeto livro?

Sim. Há uma frase minha que uso frequentemente — “Eu, livro, já fui árvore e sou memória de plantas”. Devia estar carimbada em todos os livros. É um lembrete de que aquilo que temos nas mãos já foi um corpo vivo. A maior parte das pessoas não tem essa consciência. Este livro tenta torná-la mais presente. O papel é um suporte fundamental da nossa aprendizagem, da memória, da projeção do pensamento. E mesmo com o digital, continua a ser um pilar da nossa identidade.

Transformamos matéria viva em memória. E essa memória pode durar séculos.

Para este livro, o Ivo “varreu” a literatura de diferentes geografias. Quer, brevemente, contar-nos esse périplo e o que de maravilha lhe ofereceu?

No início, não previa incluir literatura. Era para ser um livro de curiosidades botânicas com foco científico. Mas a certa altura percebi que havia espaço para mais. Se já estava a referir Plínio ou Aristóteles, por que não explorar também outras fontes, inclusive poéticas? Foi uma aventura. Durante um ano e meio, li e escrevi intensamente. Parti das plantas para procurar ligações com contextos geográficos onde eram relevantes. Por exemplo, para o papel inventado na China, procurei autores chineses. Também tentei perceber se existiam referências semelhantes noutras culturas.

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Deparei-me com lacunas, como a dificuldade em encontrar autores africanos traduzidos e acessíveis. Recorri à internet para procurar poesia de países como o Uganda. Descobri também uma poetisa aborígene australiana dos anos 1970, a Oodgeroo Noonuccal — só consegui o livro dela através do eBay. Foi um percurso de descoberta. Pedi também a amigos que me recomendassem livros que gostassem, independentemente do tema. Assim descobri autores que ainda não conhecia, como Afonso Cruz, de quem me tornei leitor assíduo. Através das referências dele, cheguei a outros nomes. Foi um verdadeiro percurso de exploração literária.

O que presidiu à escolha das 12 espécies que encontramos na presente obra?

Todas as espécies estão de alguma forma ligadas ao papel. As duas espécies que se afastam mais do tema central são o cedro e a romanzeira. O cedro nunca foi utilizado para produção de fibra, mas foi essencial como meio de transporte: os papiros egípcios espalharam-se pelo Mediterrâneo através de embarcações feitas com madeira de cedro. A romanzeira, por outro lado, surgiu recorrentemente nas leituras que fui fazendo. Aparecia mencionada em várias tradições literárias, e como era uma planta de que gosto particularmente, decidi incluí-la. Sendo eu o autor, faz sentido que a minha visão pessoal também esteja presente no livro.

A romanzeira é, de facto, uma espécie com um peso cultural muito grande.

Sem dúvida. A menção a esta espécie encontra-se desde a Mesopotâmia até à atualidade. Está presente na literatura do Afeganistão, do Irão, da Turquia, de Portugal. É uma planta transversal a muitas culturas, e por isso merece esse destaque.

Ao correr do livro, deparamo-nos com inúmeros artefactos que nos ligam ao mundo vegetal e que, aliás, são dele tributários. Quer com isso, através dos objetos do dia a dia vincular-nos a um mundo que, aparentemente, deixámos para trás?

Sim. A ideia foi tentar revalorizar essa ligação que se foi perdendo. No dia a dia, estamos habituados a olhar para o que nos rodeia sem pensar na sua origem. Dou-lhe um exemplo: quando vemos uma pintura, o nosso olhar vai automaticamente para o animal, se este fizer parte da representação, e não para as plantas, mesmo que estejam representadas com detalhe. Isso é uma resposta biológica. Mas, ao longo da história, aprendemos a contrariar certos instintos — com educação e cultura. Esta impercepção botânica é, além de biológica, cultural. E se a cultura pode moldar a forma como olhamos o mundo, então temos margem para recuperar essa atenção às plantas e ao papel que têm nos objetos do nosso quotidiano.

Cita Eça de Queirós, a partir do livro A Cidade e as Serras, quando se refere ao Eucalipto. Estávamos em 1901 e o escritor profetiza uma paisagem coberta por esta espécie. O Ivo acrescenta no mesmo capítulo as seguintes palavras: “talvez o eucalipto releve sobre nós, enquanto indivíduos e enquanto espécie, muito mais do que aquilo que nós imaginamos”. O que revela?

Esse capítulo sobre o eucalipto foi muito importante. Brinco com o facto de ser uma planta exótica — e como o termo “exótico” tanto atrai como repele. Há uma espécie de contradição: achamos fascinante aquilo que vem de longe, mas só quando somos nós a ir buscá-lo. Quando chega até nós, espontaneamente, já não gostamos tanto. Esse pensamento atravessa a forma como lidamos com o eucalipto, mas também outras expressões do “outro”, inclusive culturais. O capítulo cruza isso com temas como os acordos ortográficos, o receio da mudança, e até com a xenofobia.

Por outro lado, o eucalipto levanta questões práticas. Queremos acabar com o plástico, usar mais papel. Mas o papel tem de vir de algum lado. Mesmo o papel reciclado só aguenta seis ou sete ciclos de reutilização — depois, as fibras perdem qualidade. Ora, se queremos papel em grandes quantidades, temos de o produzir, e o eucalipto, pela sua produtividade, é a espécie escolhida. Portanto, estar contra o eucalipto e, ao mesmo tempo, exigir mais papel, é uma contradição. Não é a planta que está em causa, mas sim a forma como é cultivada e explorada. E é isso que devemos discutir.

Estar contra o eucalipto e, ao mesmo tempo, exigir mais papel, é uma contradição.

E é aí que questiona a ideia de “floresta”?

Exatamente. Considero o eucaliptal uma cultura vegetal, mas não uma floresta. Uma floresta pressupõe diversidade, interdependência entre espécies, e aqui isso não existe. Dizer que o eucaliptal promove biodiversidade é, no mínimo, discutível. Pode ser um mal menor, sim, para responder a necessidades humanas. Mas é importante ser claro nas definições.

Da leitura do seu livro recordo, por exemplo, as descrições que faz das bibliotecas extintas, dos livros naufragados no esquecimento, do conhecimento que se evaporou. O seu livro é também uma história de perda?

Sim, é uma história de perda. Nunca tinha pensado nisso dessa forma, mas é verdade. Cada livro é também uma história da vida das plantas que lhe deram origem. Mas é também uma forma de ganho: transformamos matéria viva em memória. E essa memória pode durar séculos. Um livro permite que alguém que viveu há 2000 anos nos fale hoje, diretamente. É quase uma conversa com o passado. E isso é extraordinário.

É como lançar ao oceano uma garrafa com uma mensagem, à espera que alguém a encontre e a leia.

Sim, e durante este ano e meio fui muitas vezes à Biblioteca Nacional. Tocava em livros e pensava: “há quanto tempo este livro não era aberto?”. Os livros só fazem sentido quando são lidos. O escritor Alberto Manguel diz isso — os livros esperam por um leitor. Escrever é essa tentativa de deixar uma mensagem que mais cedo ou mais tarde será escutada.

Já leu excertos do livro aos seus alunos?

Ainda não. Tenho alguma vergonha. Mas vou fazer uma apresentação em Almada, na biblioteca, no dia 23 de julho. Hoje ofereci o livro a uma colega, professora de Português, que o levou para a sala de aula. Alguns alunos já o folhearam e vieram dizer-me que gostaram das imagens.

Acima de tudo, gostava de deixar vincado que este é um livro para quem gosta de plantas, de literatura, de história — mas, acima de tudo, para quem é curioso sobre o mundo. É uma pequena janela para o espanto. E espero que, ao ler, as pessoas se interessem pelos autores que menciono, muitos deles menos conhecidos, e que procurem também a sua poesia e as suas histórias.