Robin Wall Kimmerer é mãe, cientista, professora emérita de Biologia Ambiental na Universidade do Estado de Nova Iorque, membro da Nação Potawatomi e fundadora e diretora do Centro para os Povos Nativos e o Ambiente. É também autora do livro A Sabedoria da Terra (edição Marcador) e defensora da ideia de que plantas e animais são os nossos mais antigos professores. No livro que assina, a autora une essas duas lentes de conhecimento para nos guiar numa “viagem que é tão mítica quanto científica, tão sagrada quanto histórica, tão inteligente quanto sábia”, nas palavras de Elizabeth Gilbert, autora de Comer, Orar, Amar.
Numa densa trama de reflexões, que vão da criação de Ilha da Tartaruga às forças que ameaçam hoje o seu crescimento, Robin Wall Kimmerer desenvolve a sua ideia central: o despertar de uma consciência ecológica requer o reconhecimento e a celebração da nossa relação recíproca com o resto do mundo vivo.
“Só quando conseguirmos ouvir as línguas de outros seres seremos capazes de entender a generosidade da terra e aprender a retribuir da mesma forma”, é uma das mensagens que a autora nos deixa neste seu novo livro.
De A Sabedoria da Terra publicamos o seguinte excerto.
Aprender a gramática da animacidade
Para sermos nativos de um lugar devemos aprender a sua língua. Venho aqui para escutar, para me aninhar na curva das raízes numa depressão suave de caruma, para repousar os ossos contra a coluna do pinheiro‑de‑weymouth, para calar a voz na minha cabeça até ouvir as vozes fora dela: o sussurrar do vento nas agulhas, a água a gotejar sobre a rocha, o percutir da trepadeira‑azul, os esquilos a cavar, as sementes de faia a cair, o mosquito nos ouvidos e algo mais — algo que não sou eu, para o qual não temos uma língua, a existência muda de outros em que nunca estamos sozinhos. Depois do bater do coração da minha mãe, foi esta a primeira língua que falei. Era capaz de passar um dia inteiro à escuta. E uma noite inteira. E, pela manhã, sem que o ouvisse, haverá porventura um cogumelo que não estava ali na véspera, branco‑ cremoso, que emergiu do manto húmido de caruma, da escuridão para a luz, ainda brilhante do fluido da sua passagem. Puhpowee.
À escuta em lugares selvagens, somos confidentes de conversas numa língua estranha. Agora penso que foi um anseio por compreender esta língua que ouço nos bosques que me conduziu à ciência, a aprender ao longo dos anos a falar uma botânica fluente. Uma língua que, por sinal, não deve ser confundida com a língua das plantas. Mas aprendi de facto uma outra língua na ciência, uma língua de atenta observação, um vocabulário íntimo que dá um nome a cada pequena parte. Para nomear e descrever é preciso primeiro ver, e a ciência aperfeiçoa o dom da visão. Venero a força da língua que se tornou uma segunda língua para mim. Mas sob a riqueza do seu vocabulário e do seu poder descritivo, há algo que falta, a mesma coisa que cresce à nossa volta e em nós, quando escutamos o mundo. A ciência pode ser uma linguagem da distância, que reduz um ser às suas partes funcionais; é uma linguagem de objetos. A língua que os cientistas falam, por mais exata que seja, baseia‑se num profundo erro de gramática, numa omissão, numa grave perda na tradução das línguas nativas destas paragens. O meu primeiro contacto com essas ausências linguísticas foi a palavra Puhpowee, pertencente à língua do meu povo. Encontrei‑ a num livro da etnobotânica anishinaabe Keewaydinoquay, num tratado sobre os usos tradicionais dos fungos pelo nosso povo. Explicava ela que Puhpowee se traduz como “a força que faz os cogumelos emergir da terra da noite para o dia”. Enquanto bióloga, fiquei espantada com a existência de tal palavra. Com todo o seu vocabulário técnico, a ciência ocidental não tem um termo destes, não tem palavras para representar este mistério. Seria de pensar que, se alguém tinha palavras para significar a vida, seriam os biólogos. Mas, na linguagem científica, a nossa terminologia é utilizada para definir os limites do nosso conhecimento. O que escapa à nossa compreensão permanece sem nome.
Nas três sílabas desta nova palavra, vislumbrei todo um processo de observação atenta nos bosques húmidos matinais, a formulação de uma teoria para a qual o inglês não tem equivalente. Os criadores desta palavra compreendiam o mundo do ser, repleto das energias invisíveis que animam todas as coisas. Durante muitos anos guardei‑a como um talismã e busquei a companhia das pessoas que deram um nome à força vital dos cogumelos. A língua que contém Puhpowee é uma língua que eu desejava falar. Assim, quando aprendi que a palavra para nascimento, emergência, pertencia à língua dos meus antepassados, para mim tornou‑se um novo ponto de referência.
Se a história tivesse sido diferente, provavelmente eu falaria bodewadmimwin ou potawatomi, uma língua anishinaabe. Mas, à semelhança de muitas das trezentas e cinquenta línguas indígenas das Américas, o potawatomi está em risco de extinção e a minha língua é o inglês. Os poderes de assimilação cumpriram com sucesso o seu desígnio, porque a minha e a vossa oportunidade de ouvir essa língua foi suprimida da boca das crianças índias nos internatos estatais onde eram proibidas de falar a sua língua nativa. Crianças, como o meu avô, que foi levado da sua família quando era um rapazinho de nove anos. Esta história não só dispersou as nossas palavras, mas também o nosso povo. Hoje, vivo longe da nossa reserva e, por isso, mesmo que falasse a língua, não teria ninguém com quem falar. Contudo, aqui há uns anos, no verão, no nosso encontro tribal anual, foi organizada uma aula de línguas e eu entrei na tenda para ouvir. Havia uma grande excitação em torno desta aula porque, pela primeira vez, todos os membros da nossa tribo que falavam a língua com fluência se encontravam presentes como professores. Quando eram chamados ao círculo de cadeiras articuladas, moviam‑se lentamente: à exceção de uns quantos, todos necessitavam de bengalas, andarilhos e cadeiras de rodas. Contei‑ os à medida que ocupavam as cadeiras. Nove. Nove falantes fluentes. Em todo o mundo. A nossa língua, desenvolvida ao longo de milénios, cabia em nove cadeiras. As palavras que enalteciam a criação, contavam as velhas histórias, que adormeciam os meus antepassados, dependem hoje das línguas de nove homens e mulheres perfeitamente mortais. Cada um dirige‑se à vez ao pequeno grupo de alunos interessados. Um homem de longas tranças grisalhas conta como a mãe o escondeu quando os agentes índios apareceram para levar as crianças. Ele fugiu do internato, escondendo‑se debaixo da saliência de um talude onde o som do riacho abafava o seu choro. Os outros foram todos levados e lavaram‑lhes as bocas com sabão, ou pior, por “falarem essa língua índia suja”. Como só ele ficou em casa e foi criado a chamar as plantas e os animais pelo nome que o Criador lhes deu, está aqui hoje como um transmissor dessa língua. Os motores da assimilação funcionaram bem. Os olhos do orador brilham ao dizer‑nos: “Somos o fim do caminho. Somos tudo o que resta. Se os jovens não aprenderem, a língua morrerá. Os missionários e o Governo dos Estados Unidos terão finalmente a sua vitória”.
Uma bisavó no círculo aproxima‑ se no seu andarilho do microfone. “Não são só as palavras que vão perder‑se”, diz. “A língua é o coração da nossa cultura; encerra os nossos pensamentos, a nossa maneira de ver o mundo. É demasiado bela para que o inglês a explique”. Puhpowee.
Jim Thunder, o mais jovem dos intervenientes aos setenta e cinco anos, é um homem robusto e moreno, de semblante sério, que apenas falou em potawatomi. Começou num tom solene, mas à medida que se entusiasmava com o tema, a sua voz pairava como uma brisa nas bétulas e as suas mãos começaram a narrar a história. Cada vez mais animado, levantou‑se, mantendo‑nos extasiados e silenciosos, apesar de quase ninguém compreender uma única palavra. Fez uma pausa, como se tivesse atingido um clímax na sua história e olhou para a plateia com uma expressão expectante. Uma das avós atrás dele tapou a boca para reprimir o riso e o seu rosto austero abriu‑se de repente num sorriso tão grande e doce como uma melancia rachada. Dobrou‑ se com um ataque de riso e as avós, rindo a bandeiras despregadas, limpavam as lágrimas, enquanto nós olhávamos espantados. Quando as gargalhadas diminuíram, falou finalmente em inglês: “O que acontece a uma piada quando já ninguém é capaz de ouvi‑la? Quando o seu poder desaparecer, serão apenas palavras solitárias. Para onde irão? Irão fazer companhia às histórias que nunca mais poderão ser contadas”.
Tenho agora em casa notas autocolantes espalhadas noutra língua, como se estivesse a estudar para uma viagem ao estrangeiro. Mas não vou ausentar‑ me, estou de regresso a casa. Ni pi je ezhyayen? É a pergunta na pequena nota amarela na minha porta das traseiras. Tenho as mãos cheias e o carro está a trabalhar, mas transfiro o saco para o outro lado e faço uma pausa suficientemente longa para responder. Odanek nde zhya, vou à cidade. E é o que faço, para trabalhar, para as aulas, para reuniões, para ir banco, ou ao supermercado.
Falo o dia todo e, por vezes, escrevo toda a noite, na minha bonita língua materna, a mesma que 70% das pessoas no mundo utilizam, uma língua considerada como a mais útil, com o vocabulário mais rico do mundo moderno. O inglês. Quando chego à tranquilidade da minha casa à noite, espera‑me uma nota fiel na porta do armário. Gisken I gbiskewagen! Obedeço e dispo o casaco. Preparo o jantar, tirando utensílios dos armários em que se lê emkwanen, nagen. Tornei‑me uma mulher que fala potawatomi com os objetos domésticos. Quando o telefone toca, mal olho para a nota que ali está quando dopnen o giktogan. E quer seja um advogado ou um amigo, é o inglês que fala. Mais ou menos uma vez por semana, é a minha irmã da Costa Oeste que diz Bozho. Moktthewenkwe nda — como se precisasse de se identificar: quem mais fala potawatomi?
Dizer que é falar requer uma certa imaginação. No fundo, não fazemos mais do que lançar frases confusas uma à outra num simulacro de conversa: Como é que estás? Estou ótima. Ir à cide. Ver pássaro. Pão frito bom. Soamos como o Tonto num diálogo de Hollywood com o Mascarilha. “Eu tentar falar bom índio”. Nas raras ocasiões em que conseguimos exprimir uma ideia semicoerente, inserimos livremente palavras em espanhol, aprendidas no liceu, para preencher as lacunas, criando uma língua a que chamamos spanawatomi.
Às terças e quintas às 12h15, hora de Oklahoma, participo na aula de língua potawatomi à hora do almoço, transmitida a partir da reserva através da Internet. Somos geralmente cerca de dez, em todo o país. Juntos aprendemos a contar e a dizer passa o sal. Alguém pergunta: “Como se diz por favor, passa o sal?” O nosso professor, Justin Neely, um jovem dedicado ao renascimento da língua, explica que embora haja várias palavras para obrigado, não existe uma palavra para por favor. A comida destinava‑se a ser partilhada, não era necessária uma cortesia adicional; era um dado cultural adquirido que as pessoas pedissem respeitosamente. Os missionários tomaram esta ausência como mais uma prova de falta de educação.
Muitas noites, quando devia estar a classificar testes ou a pagar contas, estou no computador a fazer exercícios sobre a língua potawatomi. Ao fim de alguns meses, dominei o vocabulário básico e sou capaz de combinar com confiança as imagens dos animais com os seus nomes indígenas. Lembra‑me do tempo em que lia livros ilustrados aos meus filhos: “Consegues indicar o esquilo? Onde está o coelhinho?” Nestes momentos, digo a mim mesma que não tenho tempo para isto e, além disso, não tenho grande necessidade de conhecer as palavras para robalo e raposa. Uma vez que a diáspora tribal nos deixou dispersos por todo o lado, com quem ia utilizar as palavras?
As frases simples que estou a aprender são perfeitas para a minha cadela. Senta! Come! Anda cá! Quieta! Mas como ela mal responde a estas ordens em inglês, estou relutante em treiná‑la para ser bilingue. Um aluno perguntou‑me uma vez, num tom de admiração, se eu falava a minha língua materna. Fui tentada a dizer: “Sim, falamos potawatomi em casa” — eu, a cadela e as notas autocolantes. O nosso professor diz‑nos para não desanimarmos e agradece‑nos sempre que dizemos uma palavra — agradece‑nos por insuflarmos vida na língua, mesmo que só conheçamos uma palavra. “Mas eu não tenho ninguém com quem falar”, queixo‑me. “Nenhum de nós tem”, responde ele para me tranquilizar, “mas um dia havemos de ter”.
Por isso, aprendo o vocabulário, mas tenho dificuldade em ver o “coração da nossa cultura” ao traduzir cama e lava‑loiça em potawatomi. Aprender substantivos foi bastante fácil; afinal de contas, tinha aprendido milhares de nomes latinos botânicos e termos científicos. Raciocinei que isto não podia ser muito diferente — apenas a substituição de um por outro, uma questão de memorização. Pelo menos no papel, onde podemos ver as letras, isto é verdade. Ouvir a língua é uma história diferente. Há menos letras no nosso alfabeto, pelo que a distinção entre as palavras para um principiante é muitas vezes subtil. Com os bonitos grupos de consoantes de zh, mb, shwe, kwe e mshk, a nossa língua soa como o vento nos pinheiros e a água nas rochas, sons com os quais os nossos ouvidos podem ter estado mais delicadamente sintonizados no passado, mas deixaram de estar. Para aprender de novo, é preciso realmente ouvir.
Com efeito, falar requer naturalmente verbos e é aqui que a minha proficiência básica em dar nomes às coisas deixa de existir. O inglês é uma língua baseada em substantivos, de alguma forma apropriada a uma cultura obcecada com os objetos. Só 30% das palavras inglesas são verbos, mas essa proporção em potawatomi é de 70%, o que significa que 70% das palavras têm de ser conjugadas e 70% têm tempos e casos verbais diferentes a dominar.
Muitas vezes, as línguas europeias atribuem um género aos substantivos, mas o potawatomi não divide o mundo em masculino e feminino. Os substantivos e os verbos são animados e inanimados. O tempo que designa ouvir uma pessoa é completamente diferente do que designa ouvir um avião. Os pronomes, artigos, plurais, demonstrativos, verbos — todos esses elementos sintáticos, em que nunca acertei nas aulas de inglês do liceu, estão todos estruturados em potawatomi em torno do mundo vivo e do mundo inanimado. Tudo, desde formas verbais diferentes e plurais diferentes, varia em função do estado animado daquilo sobre o que se está a falar.
Não admira que só restem nove falantes! Eu bem tento, mas a complexidade causa‑me dores de cabeça e os meus ouvidos mal conseguem distinguir entre palavras que significam coisas completamente diferentes. Um professor assegura‑nos de que essa fluência acaba por vir com a prática, mas um outro ancião admite que estas semelhanças próximas são inerentes à língua. Como nos recorda Stewart King, um guardião do conhecimento e excelente mestre, a intenção do Criador era divertir‑nos, pelo que o humor foi deliberadamente integrado na sintaxe. Mesmo um pequeno lapso linguístico pode converter “Precisamos de mais lenha” em “Despe a roupa”. Com efeito, aprendi que a mística palavra Puhpowee é utilizada não apenas para cogumelos, mas também para alguns outros corpos que crescem misteriosamente durante a noite.
Uma ocasião, pelo Natal, recebi de prenda da minha irmã um conjunto de ímanes para o frigorífico em ojíbua ou anishinabemowin, uma língua muito semelhante ao potawatomi. Coloquei‑os na mesa da cozinha à procura de palavras familiares, mas quanto mais olhava, mais preocupada me sentia. Entre os mais de cem ímanes, só havia uma palavra que reconheci: megwech, obrigado. A leve sensação de realização depois de meses de estudo evaporou‑se num instante. Recordo‑ me de folhear o dicionário de ojíbua que ela me enviou, procurando decifrar os ímanes, mas a ortografia nem sempre coincidia, as letras eram demasiado pequenas, havia inúmeras variações da mesma palavra e eu comecei a achar a tarefa excessivamente complicada. Os fios do meu cérebro começaram a emaranhar‑se e, quanto mais me esforçava, mais a cabeça me ficava em água.
As páginas tornaram‑se desfocadas e os meus olhos pousaram numa palavra, um verbo, naturalmente: “ser sábado”. Ora! Larguei o livro. Desde quando é que “sábado” é um verbo? Toda a gente sabe que é um substantivo. Agarrei no dicionário, folheei mais algumas páginas e tudo me parecia verbos: “ser uma colina”, “ser vermelho”, “ser uma longa extensão de areia”, e depois o meu dedo parou em wiikwegamaa: “ser uma baía”. “Ridículo”, protestei mentalmente. “Não há justificação nenhuma para complicar tanto as coisas. Não admira que ninguém fale a língua. É fastidiosa, impossível de aprender e, pior ainda, está completamente errada. Uma baía pertence claramente à categoria de pessoa, lugar ou coisa: um substantivo e não um verbo”. Estava prestes a desistir. Tinha aprendido algumas palavras, cumprido o meu dever para com a língua transmitida desde o meu avô. Os fantasmas dos missionários nos internatos deviam estar a esfregar as mãos de contentes ante a minha frustração. “Ela vai capitular”, diziam.
Nesse momento, juro que ouvi o disparo das minhas sinapses. Uma corrente elétrica percorreu‑me o braço até ao dedo e praticamente chamuscou a página onde se encontrava essa palavra. Nesse instante, senti o cheiro da água da baía, vi‑a marulhar na praia e ouvi‑a infiltrar‑se na areia. A baía só é um substantivo se a água estiver morta. Quando baía é um substantivo, é definida por humanos, presa entre as suas margens e contida na palavra. Mas o verbo wiikwegamaa — ser uma baía — liberta a água dos seus grilhões e deixa‑ a viver. “Ser uma baía” encerra o assombro de, durante este momento, a água viva ter decidido abrigar‑se entre estas margens, dialogando com as raízes de cedro e um bando de mergansos. Podia não o ter feito, podia tornar‑se um curso de água, um oceano ou uma queda de água, e também existem verbos para isso. Ser uma colina, ser um areal, ser sábado, são verbos possíveis num mundo em que tudo tem vida. Água, terra e até um dia, a língua é um espelho que reflete a animacidade do mundo, a vida que pulsa em todas as coisas, através dos pinheiros, das trepadeiras‑azuis e dos cogumelos. Esta é a língua que eu ouço nos bosques; é a língua que nos deixa falar do que cresce à nossa volta. E os vestígios dos internatos, os espectros dos missionários armados de sabão, baixam a cabeça derrotados.
Esta é a gramática da animacidade. Imaginem que viam a vossa avó, de avental, diante do fogão e comentavam sobre ela: “Olha, isso está a fazer sopa. Isso tem cabelo grisalho”. Éramos capazes de rir entredentes de tal erro, mas também o estranharíamos. Em inglês, nunca nos referimos a um familiar, nem a ninguém, como isso. Seria um ato de profundo desrespeito. Priva uma pessoa de identidade e afinidade com os demais, reduzindo‑a uma simples coisa. É por isso que em potawatomi, e na maior parte das línguas indígenas, utilizamos as mesmas palavras para designar o mundo vivo que utilizamos para a nossa família. Porque o mundo vivo pertence à nossa família.
A quem estende a nossa língua a gramática da animacidade? Naturalmente, as plantas e os animais são seres animados, mas no meu processo de aprendizagem, vou descobrindo que o entendimento do potawatomi do que significa ser animado diverge da lista de atributos dos seres vivos que todos aprendemos em biologia elementar. Em potawatomi elementar, as rochas são animadas, como as montanhas, a água, o fogo e os lugares. Os seres estão imbuídos de espírito, os nossos remédios sagrados, as nossas canções, os tambores e até as histórias são animadas. A lista de coisas inanimadas parece ser mais limitada, preenchida com objetos feitos pelas pessoas. Sobre um ser inanimado, como uma mesa, dizemos: “O que é?” E respondemos Dopwen yewe. Mesa é. Mas de uma maçã, devemos dizer: “Quem é esse ser?” E responder Mshimin yawe. Maçã esse ser é. Yawe, o verbo ser animado. Eu sou, tu és, ele/ela é. Para falar dos que possuem vida e espírito, devemos dizer yawe.
Que confluência linguística levou yahweh do Antigo Testamento e yawe do Novo Mundo a coincidir na língua dos piedosos? Não é isto simplesmente o que significa ser, ter o sopro da vida dentro de si, ser a descendência da Criação? A língua lembra‑nos, em cada frase, a nossa afinidade com todo o mundo animado. O inglês não nos dá muitas ferramentas para incorporar o respeito pela animacidade. Em inglês, ou se é humano ou se é uma coisa. A nossa gramática encapsula‑nos pela escolha de reduzir um ser não humano a isso ou a atribuir‑lhe um género inadequado como ele ou ela. Onde estão as nossas palavras para a simples existência de outro ser vivo? Onde está o nosso yawe? O meu amigo Michael Nelson, um especialista em ética que reflete profundamente sobre a inclusão moral, falou‑me de uma mulher que conhece, uma bióloga de campo que estuda as criaturas não humanas. A maioria dos seus companheiros não caminha sobre duas pernas, pelo que a sua linguagem se alterou para dar resposta às suas relações. Ajoelha‑se num trilho para inspecionar um conjunto de rastos de alces, dizendo: “Já passou alguém por aqui esta manhã”. “Está alguém no meu chapéu”, diz ela, enxotando uma mosca. Alguém e não uma coisa. Quando estou nos bosques com os meus alunos, a ensinar‑lhes as dádivas das plantas e como chamá‑las pelos nomes, procuro ser cuidadosa com a linguagem que uso, ser bilingue entre o léxico da ciência e a gramática da animacidade. Embora eles ainda tenham de aprender as funções científicas e os nomes latinos, espero estar também a ensinar‑lhes a conhecer o mundo como um lugar de residentes não humanos, a saber que, como escreveu o ecoteólogo Thomas Berry, “devemos dizer que o universo é uma comunhão de sujeitos e não uma coleção de objetos”.
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