“Sabemos que os navios navegaram, que os Descobrimentos aconteceram, mas esta é a história que não nos foi contada: o relato fictício mantido pela única mulher com quem Cristóvão Colombo se casou, Dona Filipa Moniz de Perestrelo”. Com estas palavras retiradas da apresentação do livro As Descobertas da Madame Cristóvão Colombo (edição Casa das Letras) está dado o mote que ocupou anos de pesquisa à norte-americana Paula DiPerna. A autora, também exploradora e pioneira ambiental, recupera no seu romance aquela que diz ser uma “das mulheres mais negligenciadas da História”? Em entrevista ao SAPO Lifestyle, a autora defende este seu ponto de vista a propósito de uma figura nascida em 1455, filha de Bartolomeu Perestrelo, primeiro capitão do donatário da ilha do Porto Santo, e de Isabel Moniz. Filipa casou-se com Cristóvão Colombo por volta de 1479, de quem teve um filho, Diogo Colombo.

Para Paula DiPerna, autora que escreveu vários livros de não ficção, o presente romance “é um comentário apurado sobre as conquistas que mudaram o mundo para sempre, através do olhar da mulher que os viveu, vendo e registando o que mais ninguém viu”. Um livro que começa em Portugal, na realeza do século XV, percorre as ilhas atlânticas ensolaradas, as exuberantes florestas tropicais africanas e, depois, o Novo Mundo.

Uma conversa com a autora de As Descobertas da Madame Cristóvão Colombo não poderia esquecer a atividade de DiPerna em questões climáticas e a experiência que manteve ao lado do oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau. É por aqui que começamos.

Jacques-Yves Cousteau é uma personalidade estimada e recordada em Portugal. A Paula DiPerna viajou com o oceanógrafo por todo o mundo. Quer partilhar connosco um pouco dessa aventura?

Sim. Com Cousteau viajei pelo mundo e pude interagir com muitas personalidades importantes, incluindo presidentes dos Estados Unidos outros chefes de estado; o Secretário-Geral da ONU e inúmeros líderes ambientais globais. Como escritora e produtora de cinema, também trabalhei de perto com Cousteau em filmes e com narradores importantes, como o ator britânico Anthony Hopkins e a atriz britânica Charlotte Rampling. Tive experiências incríveis. Vivi um ano na Amazónia e experienciei a estação das chuvas. Imagine, podíamos remar nos nossos botes até o topo das árvores porque o nível do rio subia continuamente. A principal conquista com Cousteau foi garantir uma moratória permanente sobre a exploração de minerais e petróleo na Antártida, o que alcançámos através de um lobby persistente junto de líderes mundiais, como o então Presidente de França, Miterrand, e o Presidente dos EUA, George Bush [pai]. Tenho muito orgulho nesse facto.

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A ideia para o meu romance, As Descobertas da Madame Cristóvão Colombo [com o título original The Discoveries of Mrs. Christopher Columbus] deu-se enquanto estava em Cuba com Cousteau. Encontrava-me no convés do Calypso, o barco do oceanógrafo, num belo cenário na costa sul da ilha, no Arquipélago da Rainha. Na época, estava a ler o diário mantido por Cristóvão Colombo e os seus escritos sobre aquele lugar tão belo eram realmente simples e práticos. Naquele momento, tive a ideia do romance: “e se”, disse a mim mesmo, “uma mulher estivesse a bordo? Que reações teria frente a este lugar? Mais profundas?” Naquele momento nasceu este meu romance.

Na breve biografia que acompanha o seu livro lemos que foi “pioneira nos mercados de carbono em todo o mundo”. Pode explicar-nos o que fazia?

Encabecei a criação da Bolsa do Clima de Chicago (CCX), que foi o primeiro mercado a negociar reduções certificadas de emissões de gases do efeito estufa. Mais tarde, também atuei como presidente da divisão internacional e lançámos o primeiro mercado piloto de carbono da China. Fiz isso em parceria com o Professor Richard L. Sandor, um renomado economista, amplamente conhecido como o “pai dos futuros financeiros” [constituem a base do denominado mercado de futuros] e que foi presidente e fundador da CCX.

No seu livro Pricing the Priceless desenvolve um princípio interessante: uma transformação financeira para salvar o planeta e resolver a crise climática. Quer brevemente explicar-nos?

A ideia subjacente a Pricing é a de que não podemos continuar a valorizar em centenas de milhões de dólares serviços dispensáveis, como o Uber, que é conveniente, mas, certamente podemos viver sem ele, enquanto a atmosfera, que é indispensável e necessária à nossa sobrevivência, é valorizada igual a zero. A minha tese defende que precisamos de começar a considerar os recursos naturais e o capital natural como ativos naturais, e todos os ativos requerem uma gestão e manutenção cuidadosas. Se pensarmos na natureza como um bem, não a consideraremos tão garantida como se fosse um bufete onde comemos à descrição.

Paula DiPerna
Paula DiPerna Paula DiPerna no decorrer da apresentação do seu livro em Lisboa este mês de outubro. créditos: Casa das Letras

Olhemos para o seu romance As Descobertas da Madame Cristóvão Colombo. O que a levou a interessar-se pela figura de Filipa Moniz de Perestrelo de modo a torná-la protagonista do seu livro?

Assim que me perguntei o que teria dito uma mulher face ao Novo Mundo, tal como já referi antes, comecei a investigar se, de facto, existiam mulheres na vida de Colombo. Descobri que ele casara realmente com Filipa, uma nobre portuguesa, filha de um navegador famoso [Bartolomeu Perestrelo] e que desapareceu da História na época em que Colombo deixou Portugal e foi para Espanha. Comecei um exercício especulativo: dado os seus antecedentes e ligações, esta mulher, muito provavelmente, ajudou Colombo durante a sua estada em Portugal. De outra forma, como poderia o navegador ter conhecido o Rei de Portugal, sem a ajuda de alguém local, alguém bem-nascido e com estatuto em Portugal? E, então, comecei a pensar que era plausível que Filipa tivesse, como se diz atualmente, trabalhado em rede com Colombo, por amor e fé nele. Ou talvez ela mesmo tivesse alimentado a ideia de navegar rumo a ocidente, embora como mulher não conseguisse executar o projeto. Quem sabe se, de facto, Dona Filipa usou Colombo para promover a sua grande ideia?

Depois, do ponto de vista criativo e narrativo, pesquisei bastante para garantir precisão nas minhas descrições e inventei uma história totalmente nova, baseada nas poucas informações que temos sobre Filipa. E, no romance, os seus olhos abrem-se para muitos aspetos da jornada, inclusive que, talvez, a descoberta daquele continente possa ser uma faca de dois gumes, trazendo colonialismo e traição. Para mim, ela tornou-se uma mulher de verdade com sentimentos reais.

Porque nos diz na apresentação ao seu livro que Dona Filipa Moniz de Perestrelo foi uma “das mulheres mais negligenciadas da História”?

Escrevi essa frase porque Filipa desapareceu da História, porque para muitos ela parecia ser uma nota de rodapé na narrativa de Colombo. Mas, para mim, de forma alguma isso assim era. É verdade que o meu romance é ficção, mas construí-o sobre um andaime de factos. Na verdade, Filipa Moniz de Perestrelo existiu e foi uma personagem real da História. E, de facto, casou-se com Colombo. Sei que há especulações de que o próprio Colombo era português, mas, independentemente disso, com certeza o seu casamento com Filipa melhorou a sua posição social e o seu estatuto. E, por extensão, este casamento colocou Portugal no centro da narrativa de Colombo, exceto que quando Filipa morreu, o seu papel desapareceu. Portanto, não sabemos muito sobre ela. Mas podemos intuir que ela deve, de alguma forma, ter desempenhado um papel importante. Contudo, esta mulher não ficou inscrita na História porque, na época, as mulheres eram ignoradas.

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A sua narrativa decorre através do olhar de uma mulher do século XV. Como encontrou a “voz” para esta personagem?

Pesquisei bastante sobre o período, em particular sobre a história da vida privada, como as pessoas se divertiam, as estruturas sociais, o vestuário e assim por diante. Visitei também todos os locais de Portugal onde o livro se situa – Sintra, Porto Santo, Madeira, Largo do Carmo em Lisboa – e passei horas e horas em museus, a observar artefactos e pinturas, tentando “ouvir” a voz de uma mulher daquela época. A evidência visual também pode “falar”.

O resto da “voz” vem dos meus sentidos internos, como seria de facto uma mulher daquela época? E, claro, a voz de Filipa também tinha de fazer sentido e agradar ao leitor de hoje. Então, tentei conferir-lhe charme, inteligência, cordialidade e sabedoria, bem como outros aspetos da voz, como insegurança, medo, falta de confiança, desejo sexual e sensual - tudo formando uma voz que ela poderia ter tido se, ao menos, a pudéssemos ter ouvido

Escreveu o livro em 1994. Se o escrevesse hoje teria colocado Dona Filipa Moniz de Perestrelo perante as mesmas perguntas, dilemas, apreciações?

Sim, porque as questões e revelações que Filipa teve de enfrentar são as mesmas que se colocam hoje: amor altruísta e ilimitado, justiça, confiança, traição. São, de facto, aspetos atemporais.

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O seu livro traz uma mensagem de empoderamento às mulheres?

Sim, embora esse não fosse o objetivo. Filipa está sempre empoderada em certo sentido. Ela é capaz de transcender os limites que lhe foram impostos, como o de não ter permissão para ler no Convento. Na sua época, na realidade, as mulheres não tinham permissão para ler ou, pelo menos, eram mantidas longe dos manuscritos. Ela encontra uma forma de contornar essa questão.

Depois, à medida que a história evolui, ela ganha poder de outras formas – explorando os seus contactos, fazendo sugestões gentis, avançando lentamente até culminar no encontro de Colombo com o rei português e depois na própria viagem. A cada etapa, Filipa aproveita o poder que possui para se fortalecer ainda mais. É claro que isso é muitas vezes inconsciente.

Assim, para as mulheres de hoje, especialmente para as mulheres mais jovens que têm de equilibrar a família e a carreira num mundo tenso, ser empoderadas é, em primeiro lugar, usar o que têm e depois, gradualmente, aperfeiçoar e desenvolver isso. E o “poder” pode ser intangível e subtil.  Filipa é mais do que a “mulher dos bastidores” porque é capaz de usar o seu amor por Colombo para se empoderar e se descobrir. O amor é sempre um bom ponto de partida para quase tudo.

Que lição para o presente podemos tirar deste seu livro?

Que o mundo é um lugar lindo, frágil e vulnerável a intrusões – grandes e pequenas. E que não há fim para a paleta de motivações e emoções humanas, seja na escala de poucas pessoas ou na escala de um Estado soberano. Também há muito sobre a História que não sabemos e talvez nunca venhamos a saber. Precisamos de ser humildes face aos acontecimentos de hoje, porque o que está a acontecer atualmente já aconteceu no passado, apenas numa escala ou local diferente.

A História pode ser o nosso guia para o panorama do presente, e Filipa é o nosso guia hoje para o que poderia ter acontecido no passado. A partir desta nova perspetiva, podemos aprender sobre nós e o nosso futuro. Além disso, espero que o meu romance seja uma boa história de amor.