
O movimento Pedalar Sem Idade (Cycling Without Age) nasceu em 2012 na Dinamarca com Ole Kassow e, em 2020, expandiu-se por mais de 50 países. É também nesse ano que chega a Portugal? Como é que o projeto nasce no país?
O movimento Pedalar Sem Idade em Portugal teve por base, de facto, o movimento internacional Cycling Without Age. No nosso país, começou em 2018, simultaneamente no Porto e em Lisboa, denominando-se formalmente Pedalar Sem Idade - Associação de Apoio à Terceira Idade. Esta Associação, que começou a fazer passeios de trishaw apenas em Lisboa em 2019, em 2021 transformou-se na Pedalar Sem Idade Portugal.
A ideia de Ole Kassow é simples, mas poderosa: possibilitar idosos e pessoas com mobilidade reduzida a voltarem a sentir a liberdade de andar de bicicleta. Combater a solidão e o isolamento social através de passeios regulares de trishaw é a missão que nos inspira desde o início. O facto de podermos fazer a diferença na vida destas pessoas é, realmente, gratificante. Uma atividade tão simples como a de dar um
passeio de bicicleta pode converter-se facilmente num gesto que muda a vida de tantos passageiros e pilotos voluntários.
Assim, o projeto tem tido grande aceitação no nosso país, ao contrário do que o atual Presidente da Direção esperava, devido ao que foi ouvindo quando teve a ideia de trazer o movimento para a cidade de Lisboa. E o impacto é evidente e mensurável, continuando a ser bastante positivo. A Pedalar Sem Idade está em expansão, chegando a cada vez mais regiões do território nacional. Hoje, contamos com uma rede de voluntários e beneficiários que experimentam momentos de liberdade e conexão intergeracional, sempre de forma gratuita, sustentável e solidária.
No vosso site lê-se que "o movimento Cycling Without Age não é sobre bicicletas, nem sobre mobilidade ou sustentabilidade" e que é antes "uma atitude". O que é que isto significa? Qual é o objetivo principal da Pedalar Sem Idade?
Sim, a Pedalar Sem Idade é, acima de tudo, sobre "uma atitude", o que ultrapassa uma simples "ideia gira com bicicletas". Apesar de incluir os temas de mobilidade e sustentabilidade, acrescenta o facto de ser uma resposta social. Isto porque, na verdade, o que define o movimento é a nossa atitude em relação à vida e às pessoas, acompanhada de empenho, vontade e, principalmente, muita responsabilidade.
Para integrar o projeto, dar prioridade às relações humanas é imprescindível e fazê-lo com generosidade é ainda melhor. Somos uma resposta social sustentável e inovadora para problemas graves e crescentes: a solidão e os problemas de saúde mental que dela advêm.
O principal objetivo da Pedalar Sem Idade consiste no combate ao isolamento e à solidão, levando as pessoas mais velhas, com mobilidade reduzida ou que de alguma forma se encontram nesta situação de vulnerabilidade a sentirem-se valorizadas. Pretendemos alertar para o facto de que é urgente repensar as
respostas sociais tradicionais existentes. Somos pessoas, seres relacionais que precisam de interação e de ter respostas individualizadas e, num país com um clima tão agradável como o nosso, precisam de sair à rua e viver as suas cidades. Levar estas pessoas a lugares onde nunca pensavam conseguir ou poder ir e fazê-las sentir que ainda têm muito para desfrutar é essencial.
Há tantas pessoas que, mais do que merecer, têm direito a sair da rotina diária e do seu habitual espaço de conforto e ainda viver momentos diferentes. Os nossos pilotos voluntários estão aptos para pedalar nos veículos adaptados que temos disponíveis, podendo, portanto, proporcionar momentos de liberdade e interação.
Os passeios contribuem para significativas melhorias no bem-estar, na autoestima e na confiança dos beneficiários, quebrando, ainda, o estigma de que a idade e a nossa condição física nos impedem de mergulhar em novas experiências. "Já não vale a pena" é uma frase que abominamos, porque vale a pena até ao fim da vida ser tratado com dignidade e respeito como seres únicos que somos.
Quando lemos “Pedalar Sem Idade” parece-nos que o foco é colocar "toda a gente" a andar de bicicleta, no entanto, o que o vosso projeto promove "são passeios gratuitos destinados à população sénior e pessoas com mobilidade reduzida, em bicicletas adaptadas, conduzidas por um voluntário treinado e formado, com o objetivo de combater o isolamento e a solidão destas pessoas". Não existem beneficiários interessados em pedalar? É possível acompanhar o passeio "a pedalar"?
O foco é, precisamente, colocar "toda a gente" a andar de bicicleta, mas de formas diferentes, ou seja, as pessoas que de alguma forma estão em situações de isolamento social ou solidão são o nosso público-alvo para os passeios, mas já tivemos voluntários a inscreverem-se, porque eles próprios se sentem sozinhos. As pessoas mais velhas são, de facto, os passageiros regulares que temos em maior número, mas passeamos pessoas com deficiência, pessoas com diagnóstico de doença mental (principalmente as que se encontram institucionalizadas) e pessoas que estão nos cuidados paliativos.
Ninguém fica indiferente à passagem de um trishaw. As pessoas interagem muito connosco nas ruas, acenam aos passageiros. Uma passageira, soltando uma gargalhada, disse uma vez com muita graça: "Sinto-me uma rainha, com o povo a saudar-me!" No sofá confortável que pode levar duas pessoas, juntamos amigos, pais e filhos, avós e netos. Num só passeio, chegámos a juntar três gerações, da avó
à neta como passageiras e o pai/filho como voluntário.
Que impacto é que esta iniciativa tem tido na vida dos envolvidos (beneficiários e voluntários)?
O estudo de impacto que realizámos ao abrigo da Portugal Inovação Social revelou que 84.89% dos passageiros diminuíram o nível de solidão e destes 53.4% diminuíram o nível de solidão em, pelo menos, 50%. Medimos os benefícios dos passageiros, mas também dos voluntários e das instituições parceiras e o feedback tem sido muito positivo em todos. Nos passageiros, observam-se, muitas vezes, melhorias significativas no bem-estar geral, no seu estado emocional e na saúde mental.
Estas afirmações têm por base estudos que realizámos no âmbito de projetos financiados e que foram feitos por entidades externas, como é o caso da Escola Nacional de Saúde Pública. Após um passeio de trishaw, já ouvimos relatos muito marcantes, tais como "Hoje, foi a primeira vez, em três meses, que eu não tive vontade de chorar", ou "Hoje, a solidão ficou em casa". Não temos a ambição de mudar o mundo, mas sabemos que mudamos a vida das pessoas que passeiam connosco. A nossa resposta permite que os passageiros se sintam menos isolados e promove a interação social e a criação de relações com pessoas que não conheciam antes. Para muitas pessoas, sobretudo as que têm mais dificuldades em
sair de casa sozinhas, esta é a única oportunidade que têm para "sentir o vento nos cabelos".
Os voluntários sentem-se, também, muito gratificados por poderem fazer a diferença na vida das pessoas. É um voluntariado com um retorno muito imediato. Os comentários que mais nos chegam estão relacionados com a emoção de ver a alegria das pessoas, os rostos antes e depois do passeio. Uma voluntária até partilhou connosco que a sua motivação para se juntar ao movimento partiu da avó
que, quando aderiu como beneficiária, melhorou bastante o seu bem-estar geral. Confessou algo como "perceber que isto faz tão bem à minha avó faz-me querer fazer isto a mais avós", o que demonstra o espírito de generosidade que está presente nos nossos voluntários.
A Pedalar Sem Idade contribui ativamente para a redução dos índices de solidão, tanto para os beneficiários, como para os próprios voluntários, que desenvolvem relações de amizade e carinho, a cada passeio. Neste contexto, tem sido frequente, e ainda bem, o feedback de sermos um movimento que proporciona momentos de alegria, conexão e respeito por todos os envolvidos.
Como vê a relação entre gerações que se cria entre os voluntários e os beneficiários do projeto?
A intergeracionalidade é uma das mais-valias da Pedalar Sem Idade Portugal, pois promove não só as relações entre mais novos e menos jovens, como também o sentido de cidadania, apelando ao respeito pelos mais velhos. Durante os passeios, partilham-se histórias de vida e experiências, enriquecendo passageiros e voluntários.
Os mais velhos trazem a sabedoria de quem viveu mais tempo e têm perspetivas de uma realidade diferente da da geração atual, criando momentos ricos de aprendizagem mútua.
O mais curioso é que nem sempre o mais velho é passageiro e o mais novo voluntário. Pode acontecer que o voluntário seja mais velho que o passageiro, quando fazemos passeios com pessoas com deficiência. De destacar que o voluntário ativo mais jovem tem 18 anos e o mais velho a realizar passeios regulares tem 72. Este último, frequentemente, passeia pessoas mais jovens que ele.
Quais são os maiores desafios que a Pedalar Sem Idade enfrenta no dia-a-dia?
Os passeios são gratuitos, porque alguém os oferece. Embora realizados por pilotos voluntários, existem custos associados à atividade, como o desgaste e a manutenção dos veículos, os seguros, e os recursos humanos da Associação, que precisam de ser cobertos. Por isso, o principal desafio é o financiamento.
A retenção de voluntários é outro desafio. Apesar de termos uma rede de voluntários fantástica e extremamente empenhada e dedicada, pode ser difícil encontrar pessoas que estejam dispostas a comprometer-se de forma regular, devido ao horário em que acontecem os passeios que está, na grande maioria, sobreposto ao horário de trabalho. Além disso, as condições urbanísticas nem sempre são favoráveis e, embora exista um planeamento cuidadoso dos percursos, alguns podem ser desafiantes para certos voluntários.
Outro desafio passa pela falta de sensibilização sobre as questões do envelhecimento e das consequências que dele advêm, como são o isolamento social e a solidão. Não são, ainda, uma prioridade política. A própria sociedade está muito pouco sensível à realidade de que o envelhecimento ativo, de que tanto se
fala, não se prepara aos 65 anos, quando se chega a idoso. A nossa velhice deve ser preparada nas escolas, pois falar das consequências negativas associadas à sedentariedade e ao isolamento, educando para a importância de sabermos poupar, incentivar a literacia financeira e educar para o respeito pelos mais velhos deve acontecer desde cedo.
Em 2024, a Pedalar Sem Idade conquistou o Prémio BPI | Fundação “la Caixa”. O que representa este reconhecimento para o projeto?
A conquista do Prémio BPI | Fundação “la Caixa” em 2024 foi um importante reconhecimento para a Pedalar Sem Idade e para todo o trabalho que temos desenvolvido ao longo dos anos. Foi devido ao valor que recebemos que foi possível inaugurar o nosso 12º capítulo (região) em Portugal, chegando a Mafra.
Para além do apoio prático, este prémio é também um incentivo para continuarmos a nossa missão de nos posicionarmos como uma resposta social inovadora e sustentável para um problema crescente – a solidão e isolamento social – e de proporcionarmos momentos de interação ao ar livre, quebrando as rotinas diárias de pessoas. Foi mais uma motivação extra para a nossa equipa, voluntários e parceiros, impulsionando-nos a manter o compromisso e a dedicação ao projeto.
De que forma este apoio ajudará a expandir e a fortalecer a iniciativa?
Como referido anteriormente, foi a partir do valor do Prémio que conseguimos inaugurar a nossa presença numa 12ª região - Mafra -, levando a iniciativa a mais pessoas que dela podem beneficiar. Mas esta abertura de capítulo conta, também, com o apoio do Município, que garante o apoio logístico de armazenamento do trishaw durante o projeto financiado mas, mais importante, acrescentará a este o
apoio financeiro, quando o prémio terminar.
À semelhança do que tinha acontecido em Coimbra, é, para nós, um modelo triangular exemplar: uma entidade privada que ajuda no arranque de um projeto de uma organização da economia social, que tem provas dadas de ter uma resposta com impacto, e uma entidade pública que aceita continuar a apoiar esse projeto no seu território, permitindo que a população continue a usufruir dos benefícios dessa
resposta.
Da nossa perspetiva, é uma boa prática, extraordinária, e que desejamos que se possa replicar. O reconhecimento pela nossa proposta tem sido essencial para consolidar o projeto e aumentar o impacto da nossa missão, permitindo-nos chegar a mais pessoas.
Há planos para alargar a Pedalar Sem Idade a mais cidades ou desenvolver novos formatos de participação?
O nosso objetivo é, sem dúvida, continuar a crescer e a levar a nossa resposta a mais regiões do país. No entanto, para já, estamos focados em consolidar e fortalecer as operações nos locais onde já estamos presentes: Almada, Cascais, Castelo Branco, Castro Verde, Coimbra, Guimarães, Lisboa, Mafra, Sintra, Torres Vedras, Vila Franca de Xira e Vila Real de Santo António. Estamos numa fase de transição digital, que nos vai permitir garantir que cada passageiro e voluntário tenha uma melhor experiência, com passeios mais ricos e diversificados, organizados e enriquecidos.
Como é que o público em geral pode contribuir para a Pedalar Sem Idade?
Existem várias formas de apoiar a Pedalar Sem Idade: tornando-se patrono, ou seja, oferecendo passeios, tornando-se voluntário, seja a pedalar ou através da ajuda na manutenção dos trishaws, ou contribuindo tornando-se num estabelecimento amigo da Pedalar, isto é, cafés, pastelarias, farmácias, floristas e outros, que enriquem e complementam os nossos passeios, oferecendo uma lembrança a voluntários e passageiros. Todas as contribuições são muito bem-vindas, sejam elas financeiras ou não, e fazem uma diferença significativa no cumprimento da nossa missão. É possível encontrar toda a informação no nosso website.
Que mudanças gostaria de ver na forma como a sociedade portuguesa encara o envelhecimento e a mobilidade dos mais velhos?
Como já referi, gostava de ver uma sociedade que, mais do que falar sobre envelhecimento, tomasse medidas concretas para alterar o status quo atual, que está ultrapassado e é inadequado às necessidades de hoje em dia. As pessoas com 90 anos de hoje não são as pessoas com 90 anos de há 30 anos. As necessidades básicas têm de ser atendidas, obviamente, nos lares, nos serviços de apoio domiciliário, passam por levar refeições e ajudar ou fazer a higiene das pessoas.
Mas é preciso mais. Falta a interação social, falta saírem de casa e passearem. Não é porque se é idoso que se perde o direito a gozar os pequenos prazeres da vida. As pernas já não deixam, demora-se muito tempo a chegar ao trishaw, mas não faz mal. Os voluntários não têm pressa. É um dos cinco pilares do movimento: devagar, que se junta a generosidade, histórias, relações e sem idade.
Devagar, porque os passeios, desde o momento em que nos dirigimos a qualquer passageiro, até que o deixamos, não têm pressa. Generosidade, porque só graças a isso existem voluntários, a força motriz deste movimento internacional. Sem eles, não seria possível cumprir a missão. Histórias, porque se ouvem relatos de vida extraordinárias, a bordo de um trishaw. Relações, porque acreditamos que é o
melhor que podemos ter: relacionarmo-nos uns com os outros. Entre gerações, melhor ainda. E sem idade, porque até ao último dia da nossa vida, vale a pena desfrutar com respeito e dignidade que esta merece. Cada pessoa é um ser único e irrepetível.
Em suma, gostava que pudessem olhar para as questões do envelhecimento com estes olhos, perceber o quanto as pessoas são válidas e o tanto que têm ainda para oferecer, havendo uma maior consciência social, para que possamos ser uma sociedade mais justa, inclusiva e, no fundo, mais humana.
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