Giambattista Basile, Hanna Dyab, Gabrielle-Suzanne de Villeneuve não nos surgem como resposta óbvia para a autoria de alguns dos contos de fadas que melhor conhecemos. Contos como “A Bela e o Monstro, “Aladino” ou “A Rainha do Gelo”. O escritor de viagens britânico Nicholas Jubber dedicou os últimos anos a desbravar caminho em direção às origens mais profundas de histórias que nos encantam. O produto deste trabalho tomou a forma do livro Os Contadores de Histórias – A história secreta dos contos de fadas e dos seus autores (Bertrand Editora). A investigação de Nicholas Jubber, leva-nos a diferentes continentes e épocas; da tundra siberiana, a florestas medievais europeias, até a algumas das mais exuberantes cidades do Oriente e do velho continente.
Tendo como mote o lançamento do mais recente livro do autor apaixonado pelo nomadismo, enveredamos numa conversa repleta de aventura, tragédia, e magia, povoada por autores que todos conhecemos, mas também aqueles que as circunstâncias e o tempo trataram de relegar para os território do esquecimento. Nicholas Jubber recorda-nos que estas histórias preservam valores e conceitos intemporais para os humanos, como a liberdade, a amizade e o amor. O autor não esquece a sua infância e de como, aos sete anos, sob o calor de um edredão, construiu mundos imaginados. Isto, enquanto lia Um Tesouro da Literatura Infantil orientado pela luz de uma lanterna.
Que história secreta dos contos de fadas e autores é aquela que nos conta no seu livro?
A história dos contos de fadas está cheia de “segredos”, porque muitas das vidas por trás das histórias foram esquecidas, obscurecidas ou riscadas. Por exemplo, “A Bela e o Monstro” é uma história muito famosa, mas poucas pessoas conhecem o percurso da mulher que escreveu essa narrativa, publicada em 1740. Uma mulher chamada Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, que se inspirou no conto arquétipo sobre a heroína forçada a viver com o monstro, para lhe dar o título, os nomes das personagens e o modelo narrativo que os leitores reconhecem atualmente. E a razão pela qual a identidade desta autora foi ofuscada liga-se às leis de licenciamento e à atitude em relação à autoria feminina no século XVIII. Outro “segredo” é o de Hanna Diyab, o contador de histórias sírio que narrou o conto de “Aladino e a Lâmpada Maravilhosa” e “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, entre muitas outras histórias d’As Mil e Uma Noites que não foram incluídas nos manuscritos originais traduzidos pelo francês Antoine Galland. Portanto, este livro não é sobre um, mas antes sobre muitos “segredos” diferentes, vidas ocultas e histórias que iluminam o pano de fundo dos contos mágicos que recordo.
Neste, tal como nos seus livros anteriores, sente-se a sua vontade de viajar, de procurar novas terras e outros tempos. Os contos de fadas são para si uma forma de libertação?
Julgo que todo o storytelling [contar histórias] é uma forma de libertação, porque, tal como a viagem, oferece-nos a oportunidade de nos imaginarmos, de nos aventurarmos e permite-nos deixar para trás todos os problemas e ansiedades.
No prólogo do seu livro refere que as fadas voltaram à sua vida três vezes. Há algo que ligue os três momentos?
Sim, de facto menciono que os contos de fadas tiveram uma influência particular em três momentos da minha vida. Cada um deles são momentos-chave: a infância, a adolescência e a paternidade. Acho que fui atraído pelos contos de fadas nessas etapas porque nos oferecem arquétipos que se ligam a momentos cruciais nas nossas vidas. E, porque em cada uma dessas etapas eu estava particularmente recetivo a histórias mágicas.
Ainda se recorda dos primeiros contos de fadas que leu?
Sim, ainda me lembro do entusiasmo que esses contos me transmitiram e a forma como espicaçaram a minha imaginação. Ler, aos sete anos, “A Rainha da Neve” [de Hans Christian Andersen] com uma lanterna debaixo do edredão, foi uma experiência que jamais esqueci. Imaginava que a cama se estava a transformar na Lapónia e eu cavalgava as renas até ao palácio da Rainha. Em criança, senti-me muitas vezes envolvido nas histórias que lia e isso fazia parte da emoção. Ou seja, não apenas ler a história, mas as muitas histórias diferentes que ela desencadeava no meu íntimo.
Escrever este livro foi para si uma aventura em diferentes países. Quer contar-nos até onde o levou a pesquisa?
Viajei à Lapónia no encalço do conto “A Rainha da Neve”; para a região da Basilicata em busca dos primeiros contos de fadas italianos; estive em França a estudar a vida e obra da baronesa de Villeneuve e, na Alemanha, no trilho dos Irmãos Grimm [Jacob e Wilhelm Grimm]. Mais distante, fiz viagens ao Médio Oriente e a Caxemira, lugares associados às narrativas d’ “As Mil e Uma Noites” e à incrível coleção de lendas indianas do século XI, intitulada Kathasaritsagara.
Nas viagens que descreve houve algum momento particularmente emotivo?
Uma das minhas experiências preferidas foi sair da Floresta Negra, depois de ali acampar, para me deparar com um festival de bruxas que decorria numa aldeia alemã. As pessoas mascaravam-se de bruxas e estavam entretidas numa dança especial, como parte das celebrações do festival Fasnacht que decorre no sul da Alemanha todos os anos. Foi um lembrete de quão “vivas” estão na cultura popular muitas dessas personagens de contos de fadas.
Dragões, duendes, gigantes, bosques encantados, imaginados há centenas ou há milhares de anos têm lugar no mundo em que vivemos?
Sem dúvida. Esses seres e as suas histórias ainda estão entre nós porque continuamos a recordá-las. São contos que dialogaram com as pessoas ao longo de várias gerações. Dragões, duendes, gigantes, entre muitos outros, refletem uma panóplia de ideias diferentes: o nosso relacionamento com o ambiente, os nossos medos e, muitas vezes, uma certa hostilidade em relação à natureza, noções do que significa ser marginal ou não aceite. Claro que nem todas essas mensagens devem ser acarinhadas. Por exemplo, a demonização medieval dos anões reflete preconceitos de longa data. Julgo que nós, enquanto leitores adultos, temos de revelar cuidado face a esses contos e exercer o nosso próprio julgamento ao lermos e adaptarmos essas histórias para as crianças do presente.
Quer apresentar-nos alguns dos autores que incluiu no seu livro?
Sim. Giambattista Basile foi um cortesão e soldado da fortuna, nascido no século XVI, que lutou contra os otomanos em Creta e deambulou pelo Mediterrâneo em busca de um patrono. A sua irmã, Adriana, era uma das cantoras mais admiradas na sua época. Giambattista procurou durante algum tempo a proteção da irmã, antes de partir sozinho em viagem. Ao longo do caminho, Basile reuniu 50 contos mágicos [O Conto dos Contos, ou Pentamerão] que representam a primeira coleção integral de contos de fadas da Europa. Mantém-se como uma das coleções de histórias mais encantadoras já escritas. Entre os admiradores destas histórias estavam os Irmãos Grimm, que foram fortemente influenciados por elas.
Outro dos contadores de histórias de fadas é Ivan Khudiakov, um folclorista russo do século XIX que vagueava pelas aldeias a recolher histórias sobre Baba Yaga, a bruxa que habita na floresta, numa cabana assente em pernas de galinha. Khudiakov coligiu muitas outras histórias e produziu uma coleção de contos de fadas quando tinha apenas 18 anos. Também se envolveu num movimento político que estava determinado a sacudir o sistema. Volvidos alguns anos, foi preso devido ao papel que desempenhou numa conspiração para assassinar o czar Alexandre II. Foi, de facto, uma vida muito conturbada.
Velhas histórias estão constantemente a ser recordadas. Mas, as preocupações-chave sobre o amor, a amizade, a liberdade ou o desejo de melhorar as nossas vidas, permanecem consistentes.
Nos dias de hoje já não se contam histórias como no passado?
Considero que os melhores contadores de histórias estão permanentemente a encontrar novas formas de contar histórias antigas. O núcleo das histórias é consistente, mas as armadilhas nas nossas vidas e os nossos valores mudam e evoluem, tal como os formatos como as histórias são contadas. Contar histórias está em constante fluxo. Velhas histórias estão constantemente a ser recordadas. Mas, as preocupações-chave sobre o amor, a amizade, a liberdade ou o desejo de melhorar as nossas vidas, permanecem consistentes. Eis a razão que nos permite dizer que as histórias do passado, por vezes remoto, ainda podem “falar” connosco.
O que podemos aprender presentemente com estes contos de fadas?
Há valores fundamentais nestes contos que vale a pena considerar como lições de solidariedade, humildade e generosidade. Muitos contos de fadas encorajam-nos a ser gentis com estranhos, com os pobres, os desafortunados. Em “A Rainha da Neve”, Kai, o amigo de Gerda, está desaparecido e todos assumem que ele está morto. Contudo, Gerda recusa-se a desistir do seu bom amigo. Ou seja, é uma história sobre o poder da amizade.
Em “A Pulga”, conto de Giambattista Basile, um rei criou uma pulga até atingir o tamanho de uma ovelha. Chegado aí, esfolou o animal e prometeu a sua filha em casamento a quem adivinhasse a origem da pele. Vários senhores tentaram, mas sem sucesso. Um ogre adivinhou de que animal provinha a pele, e o rei teve que casar a sua filha com a criatura. É claro que muitas histórias são lidas atualmente com alguma estranheza e são mais difíceis de apreciar. Um outro exemplo é o conto “A Ursa”, também de Giambattista Basile e que pode ser associada ao incesto [nesta história, um rei pretende desposar a sua filha].
Um dos meus contos favoritos é sobre uma barata, um rato-doméstico e um grilo que causam estragos no quarto de dormir quando um senhor está a tentar consumar o seu casamento. Nem todas as histórias têm de nos ensinar algo, às vezes podemos simplesmente apreciá-las pelo puro prazer de as lermos em si mesmas.
O Nicholas conhece algum conto de fadas português?
Há algum tempo que me interesso por histórias de mouras encantadas e espero aprofundar o tema se visitar Portugal no próximo ano. Parecem-se histórias maravilhosamente misteriosas e atmosféricas, e profundamente entrelaçadas na história portuguesa. E, claro, admiro muito a arte da artista plástica Paula Rego.
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