
O francês Marcel Proust continua a convocar leitores e investigadores mais de um século volvido sobre a publicação de Em Busca do Tempo Perdido. O novo livro do escritor João Pedro Vala, Dicionário de Proust (Quetzal Editores), que verte da tese de doutoramento do autor, inscreve-se nessa longa linhagem de aproximações à obra proustiana, mas recusa o tom devocional. O autor que antes assinou títulos como Grande Turismo e Campo Pequeno, organiza o seu novo livro em 24 entradas não lineares. Aqui encontramos, entre outras, a aristocracia, a homossexualidade, o judaísmo, a guerra, o sadomasoquismo, o tempo, todos elas variações de um único tema: Marcel Proust.
João Pedro Vala, nascido em 1990, com uma licenciatura em Gestão e doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa, oferece-nos um guia de múltiplas leituras e de “intrincada arquitetura”, assim o sublinha o autor na nota introdutória à obra. Vala endereça o seu novo livro a iniciantes nos caminhos de Proust (por exemplo, o autor inclui um resumo dos principais livros de Proust), mas também nos desenrola um mapa paralelo para leitores experimentados no universo proustiano. Segundo João Pedro Vala, o romance de Proust não descreve a descoberta da essência do tempo, mas a construção de um abrigo perante a morte. “Chamemos-lhe religião, família, literatura ou wellness, todos o fazemos”, afirma. A proposta do Dicionário é, por isso, também um retrato da condição humana — fragmentária, contraditória, cheia de zonas brancas.
João Pedro Vala não abdica do humor face a algumas das perguntas que lhe deixamos nesta conversa, nomeadamente ao caleidoscópio de abordagens a que nos convoca e à forma como, enquanto recetores deste livro, deambulamos nas suas páginas: “alguns leitores contaram-me que leram o livro de trás para a frente e apareceu-lhes o general Spínola em ceroulas, mas não sei se acredito.”
Na sua escrita há influências prováveis e improváveis. Sobre umas e outras gostaria de o ouvir. Por exemplo, refere que muita da literatura que lê não capta a maneira de falar das pessoas e relaciona-a com o seu processo de pesquisa.
Sim, estou convencido de que a literatura não é uma atividade diferente de muitas outras, mais prosaicas. Estou convencido de que o impulso que nos leva à literatura não é diferente do que nos leva, por exemplo, a conversarmos uns com os outros, a desabafarmos uns com os outros ou a rirmo-nos uns dos outros. Nesse sentido, um escritor deverá ler (muito), mas deverá também manter-se de olhos e ouvidos abertos quando anda na rua, sem sobrancerias. Se sou muito influenciado pelos livros e ensaios que leio, pelos filmes que vejo e pela música que ouço, sou-o também pela forma como as pessoas falam à minha volta e pelas coisas que vão escrevendo nas redes sociais.
Numa entrevista anterior referiu que a “literatura é para derrotados”. É uma abordagem singular ao ato criativo. Sente-se um derrotado enquanto escritor?
Sinto que foram as derrotas que me conduziram à escrita, sim. Talvez nenhum outro escritor tenha descrito a beleza das plantas como Proust, que se aproximasse delas corria o risco de ter um ataque asmático e morrer. Ninguém me convence de que não haja aqui uma correlação. Nós escrevemos porque há uma derrota qualquer, chamemos-lhe asma, timidez, inadequação, chamemos-lhe o que quisermos, a afastar-nos do nosso objeto de desejo. Escrevemos porque há uma trepidação entre o que queremos e o que temos. É essa trepidação que nos remete para o lugar de observadores nostálgicos do mundo e é aí que os romances nascem.
Parece-me que nós escrevemos a partir do que somos. Enquanto romancista, não me vejo como um escritor, mas antes como o escritor do Grande Turismo e do Campo Pequeno.
Também se afirma como “nada metódico” no processo de escrita. Vê esta condição como uma virtude/oportunidade ou como uma provação no caminho de construção das narrativas?
Parece-me que nós escrevemos a partir do que somos. Enquanto romancista, não me vejo como um escritor, mas antes como o escritor do Grande Turismo e do Campo Pequeno e dos mais que possam vir. Ainda que me apontassem uma pistola à cabeça, não saberia dizer como se escrevem romances, só como se escrevem esses dois livros. Quero com isto dizer que eu estou preso à minha subjetividade e é dela que nascem os meus textos. Assim sendo, tudo o que eu sou será simultaneamente uma oportunidade e uma provação para a minha escrita.

O que aqui nos detém é o seu novo livro. Contudo, julgo que seria interessante para os leitores compreenderem o seu percurso enquanto escritor. Estreou-se com Grande Turismo, seguiu-se-lhe Campo Pequeno. São suas estas palavras: “Acho que os livros que escrevemos são sempre uma resposta ao mundo”. Que resposta ao mundo procurou dar com este díptico de obras?
Quando falo de mundo, falo do meu mundo, da minha vida, não do mundo em geral, que me interessa consideravelmente menos. Quando escrevo, não quero corrigir nem o mundo em meu redor nem quem eu sou. Tenho muitas reticências em relação à possibilidade de a beleza mudar o mundo.
Dito isto, quando usei essa palavra, resposta, talvez tivesse em mente uma resposta semelhante à que nos é dada por um espelho de feira popular. O mundo, isto é, o meu mundo entra na tenda e sai dali grotescamente deformado, com umas características exageradas e outras quase esquecidas, não só porque isso é divertido, mas também para que, por paradoxal que pareça, saia de lá a ver melhor.
A pergunta é direta: o que o detém em Marcel Proust? Ou, se quisermos, qual a melhor forma de apresentarmos este autor ao leitor que não conhece a obra desta figura maior das letras e da vida.
O meu fascínio por Proust nasce em primeiro lugar e sobretudo do maravilhamento que senti ao ler Em Busca do Tempo Perdido. Todos os fascínios subsequentes brotam desse momento inicial, do espanto por alguém tão frágil e tão igual a nós ter escrito um livro tão deslumbrante, tão extraordinário. Acho que o meu Dicionário nasce de uma rejeição violenta da ideia de que grandes livros nascem de grandes génios e por causa da sua genialidade. A genialidade de Proust existe, com certeza, e é um ingrediente na construção do livro. Mas é só quando se mistura com a sua pequenez, com a sua fragilidade, com a sua humanidade que pode nascer um livro assim. Quando falamos dos grandes génios, de Shakespeare, Proust ou Camões, descalçamos as nossas sandálias e aproximamo-nos não deles mas das suas estátuas, de onde posam altivamente bem acima de nós. Estou convencido de que ao fazê-lo, a luz dourada das estátuas nos cega para o mais importante. Tentei deixar a minha devoção de lado ao escrever este livro.
Este meu livro nasce da minha irritação em relação a muitas leituras canónicas de Em Busca do Tempo Perdido.
Amiúde, o João Pedro Vala refere que “os seus livros surgem de imagens, não de ideias”. Fundando-me nesta sua afirmação, gostaria de saber se, no caso deste seu Dicionário, também partiu de imagens?
Julgo que não. Isso acontece sobretudo nos meus romances. Este meu livro nasce da minha irritação em relação a muitas leituras canónicas de Em Busca do Tempo Perdido, que veem o livro como a descrição triunfal da descoberta da essência do tempo. Qual essência, qual carapuça. No fim do romance (e aliás, no começo, em certo sentido também), Proust está perto da morte. Está frágil e sozinho, porque muitos dos seus amigos morreram na guerra. Tem medo e forja um refúgio onde se abrigar, para que a morte não o amedronte tanto. Chamemos-lhe religião, família, literatura ou wellness, todos o fazemos.
O João Pedro Vala entrega ao seu Dicionário 24 entradas. Que critérios preponderaram na escolha destas entradas? Terá sido complexo, o exercício de ponderação entre uma obra que agradará ao leitor mais leal ao cânone proustiano e ao leitor estreante...
Este livro é uma adaptação livre da minha tese de doutoramento, que tinha 30 capítulos. Quando, depois de muitas indecisões, nos decidimos por este formato, tentei aproveitar algumas ideias centrais dos capítulos, mas muitos foram inteiramente reorganizados ou repartidos por várias entradas e outros ainda — mais técnicos, por assim dizer — foram apagados. Mas a minha prioridade foi sempre a de falar sobre Proust e sobre literatura para pessoas não especializadas, tenham elas lido o romance de Proust ou não. Quis que o livro fosse um guia para quem quer começar a ler Em Busca do Tempo Perdido e um companheiro para quem já tiver lido, mas sobretudo uma reflexão acerca do meu espanto perante Proust que é, em grande medida, também o meu espanto perante a literatura.

Num dicionário convencional, cada verbete segue uma ordem lógica ou alfabética estrita. No seu, as entradas ressoam umas com as outras de forma caleidoscópica. Como pensou o “movimento interno” deste seu dicionário?
Esse movimento interno já existia na minha tese porque já existe também no romance de Proust.
Não é possível falarmos, por exemplo, de Judaísmo em Proust sem falarmos da aristocracia parisiense na belle époque, sem falarmos de poder, sem falarmos de amor, tal como não é possível falarmos a fundo seja do que for sem com isso falarmos do mundo inteiro, da vida e da morte. A vida não é isolável nem dissecável, vem tudo agarrado a tudo. O meu trabalho foi só o de aceitar isso e navegar por entre todo esse caos. Às vezes consegui, noutras afoguei-me. Está tudo bem.
Se convidasse um leitor a explorar a “antecâmara proustiana” antes de se lançar no romance-mãe, quais as entradas do seu Dicionário recomendaria como pontos de partida e porquê?
Diria que uma boa hipótese seria começar pela letra M (Miscelânia), depois pela letra D (Doença) e a seguir voltar ao início e avançar linearmente, como quem, com o mar pelos joelhos, passa água pela barriga para se ir ambientando à temperatura. Mas não sei se há uma ordem ideal para ler este Dicionário. Dito isto, alguns leitores contaram-me que leram o livro de trás para a frente e apareceu-lhes o general Spínola em ceroulas, mas não sei se acredito.
A importância do sadomasoquismo em Proust está muito pouco explorada.
Há no seu livro alguma entrada cuja investigação o tenha levado a reavaliar um preconceito pessoal ou a desconstruir uma zona de conforto intelectual em relação ao autor?
Essa parece-me uma excelente descrição de doutoramento: reavaliação de preconceitos pessoais e desconstrução de zonas de conforto. Foi isso tudo, todos os dias, durante quatro anos. Não os trocava por nada.
Ao revisitar Proust para compor o seu trabalho académico, mais tarde o presente Dicionário, encontrou alguma “faixa branca” — um vazio interpretativo que ainda reclamasse um estudo mais profundo?
Acho que as leituras que fazemos de grandes obras literárias, como é decerto o caso da obra de Proust, são feitas tanto a partir do que está lá escrito como do que nós lá vemos, sendo por isso, em bom rigor, um trabalho infinito, e cheio de faixas brancas que só nós poderemos ver. Dito isto, por vários motivos, a importância do sadomasoquismo em Proust está muito pouco explorada.
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