
Em Os Dias do Ruído (edição D. Quixote), o novo romance do escritor David Machado, a narrativa nasce de um gesto extremo: Laura, jornalista portuguesa em Paris, mata um terrorista em plena rua. Um ato filmado, partilhado, julgado. Laura transforma-se em símbolo — heroína, assassina, vítima — antes mesmo de conseguir nomear o que sentiu. O que se segue é uma descida aos labirintos da identidade, da exposição pública e da moralidade num tempo dominado pela vertigem digital.
Machado, autor de obras como Índice Médio de Felicidade, regressa à ficção para adultos com um livro que é também uma tentativa de compreender o mundo contemporâneo. Estruturado em fragmentos curtos e tensos, o romance procura espelhar o pensamento ansioso da protagonista — e, por extensão, o nosso. “Quis transpor para a narrativa um estado mental contemporâneo, marcado pelo excesso de informação e pela procura do reconhecimento imediato”, explica o autor na presente entrevista. Mais do que estilo, trata-se de forma como espelho do conteúdo: Laura pensa, observa, recorda e projeta num fluxo fragmentário, instável, familiar a qualquer leitor atento à sua própria turbulência interior.
A obra parte de um evento de violência, mas recusa qualquer simplificação. “Não é apenas um ato de autodefesa. É uma mulher branca a matar um homem muçulmano. É alguém a salvar vidas, mas também a retirar uma.” Essa ambiguidade moral é central ao romance e ao olhar que o autor lança sobre a época atual.
Outro eixo da obra é a construção pública da identidade. Laura torna-se viral e vê-se consumida pela máquina simbólica que a transforma num arquétipo, antes mesmo de escutarem quem é. “Gostamos de etiquetas”, nota Machado. “É uma forma rápida de resolver a complexidade.” Mas essa velocidade impede a escuta, e o humano esvai-se sob os rótulos.
O seu novo romance está estruturado em notas curtas e fragmentadas, no que chegou a descrever como “um ritmo frenético de ideias”. O que o levou a adotar este formato narrativo, em contraponto com a curta terceira parte da obra)? Quis com ele transpor para a narrativa um estado mental contemporâneo, diria ansioso, marcado pelo excesso de informação e pela procura do reconhecimento imediato?
Neste romance, eu queria estar, tanto quanto possível, dentro da personagem, ser a Laura, pensar como ela. Queria torná-la o mais real possível, descobrir todos os seus lados, os seus sonhos, os medos, as paixões e os ódios, as contradições. Nesse sentido, estes fragmentos curtos nos quais ela revela tudo o que vê, pensa, diz, imagina, tentam emular o fluxo de pensamento da Laura que, em muitos aspetos, não é diferente daquele de qualquer outro ser humano.
A nossa cabeça está constantemente a fazer jogos de lógica, reflexões, a observar o que nos rodeia, a recordar o que já passou, a projetar o futuro, muitas vezes sem qualquer nexo aparente e através de raciocínios incompletos. O mundo contemporâneo, por causa da sua velocidade, força um ritmo de pensamento mais frenético, claro. Mas creio que o cérebro humano já funcionava assim antes deste nosso tempo.
Este romance foi construído quase totalmente a partir da minha observação daquilo em que o mundo se transformou nos últimos cinco ou dez anos.
Em momentos anteriores referiu que a ideia para o livro surgiu após os atentados em Paris, um momento que claramente deixou marcas na narrativa. Mas para além desse contexto real, que influências —literárias, cinematográficas ou até pessoais — ajudaram a construir este universo onde o terrorismo, a fama e a identidade se entrelaçam de forma tão intensa?
Este romance foi construído quase totalmente a partir da minha observação daquilo em que o mundo se transformou nos últimos cinco ou dez anos e num forte desejo de o compreender. Escrever permite-me pensar sobre o mundo, sobre a vida, sobre mim próprio, de uma forma ao mesmo tempo intuitiva, racional e poética. Após a escrita de um livro como Os Dias do Ruído sinto-me mais próximo da verdade e isso para mim é importante. Por outro lado, todos estes fenómenos são muito recentes, estão ainda acontecer, pelo que não fácil encontrar referências a estes temas no cinema ou na literatura, muito menos de uma forma que os relacione entre si. Foi precisamente isso que tentei fazer.
Creio que a Literatura — ou a Arte em geral — tem hoje o papel que sempre teve: proporcionar uma reflexão através da linguagem.
Numa entrevista recente afirmou que “as redes sociais são o oposto da literatura” argumentando que os algoritmos privilegiam o supérfluo e o imediato. Que lugar ainda pode ocupar a literatura — feita de tempo, silêncio e complexidade — numa sociedade cada vez mais entregue ao estrépito e ao supérfluo?
Creio que a Literatura — ou a Arte em geral — tem hoje o papel que sempre teve: proporcionar uma reflexão através da linguagem. No mundo contemporâneo, isso é mais importante do que nunca. Precisamos de um espaço onde o tempo para pensar e sentir as coisas passe mais devagar, mas também onde seja possível questionar tudo sem receios de falhar, ou de pensar a coisa errada.
Ao iniciar a história com um ato de violência, coloca não só a protagonista, mas também o leitor num terreno instável, quase desconfortável. Que tipo de relação pretende construir com o leitor desde esse primeiro momento?
Não é apenas um ato de violência. É a morte de um terrorista. É um assassinato. É um momento de autodefesa. É uma mulher enfrentando com as próprias mãos um homem armado. É uma pessoa branca matando uma pessoa muçulmana. É uma mulher salvando várias vidas. E tudo isso acontece num único momento filmado e visto por milhões de pessoas.
O terreno torna-se desconfortável para o leitor porque esse ato não é apenas uma coisa, não pode ser visto de um único ângulo. Enquanto escritor, isso interessa-me muito: perceber as zonas cinzentas da nossa existência, as contradições a que nos prestamos diariamente. Há muitas questões na nossa vida que não têm apenas uma solução, ou cuja solução choca com a resposta a outra questão. No entanto, de alguma maneira, vamos arranjando formas de lidar e viver com isso.
Depois do atentado, Laura torna-se uma pessoa “viral” e é rapidamente convertida numa figura pública — símbolo, vítima, heroína, consoante os olhos de quem a observa. No entanto, ela própria sente-se perdida, sem saber quem é. O nosso tempo é profícuo a elevar indivíduos a símbolos antes mesmo de os escutar ou de os próprios perceberem o alcance dos seus atos?
Gostamos muito de etiquetas: este é muçulmano, aquela é comunista, o outro é ladrão, esta é bonita, etc. O nosso cérebro aprendeu a resolver questões complicadas através destas classificações simplistas. Muitas vezes, é uma ferramenta bastante útil. No entanto, torna-nos incrivelmente preconceituosos. Acho que hoje a diferença são as redes sociais que, por causa do seu ritmo tão acelerado, não permitem que nada seja realmente aprofundado e por isso ficamos apenas com vislumbres dos outros, que imediatamente a nossa cabeça usa para os definir. Da mesma fora que, creio, a nossa necessidade de símbolos, de ídolos e de vilões sempre existiu e através das redes sociais tornou-se mais fácil e cómodo atribuir esses papéis.
No livro, coloca o leitor perante uma pergunta desconfortável: em que circunstâncias é aceitável tirar a vida a outro ser humano? Laura mata em legítima defesa, para salvar outras vidas, mas mesmo esse gesto é absorvido por um mundo mediático onde a ética parece ser filtrada por likes e julgamentos instantâneos. Que reflexão quis propor sobre justiça, culpa e exposição pública neste cenário moral tão ambíguo?
Antes de mais, eu próprio queria fazer essa reflexão. Há muito que nós, enquanto sociedade, decidimos quais são as circunstâncias em que é aceitável matar um ser humano. Temos leis para isso. No entanto, hoje, de novo por causa das redes sociais, o julgamento deste tipo de atos é também feito na “praça pública”, às vezes por milhares de vozes em simultâneo. Mais do que refletir sobre o assassinato, a culpa, ou a justiça, queria tentar perceber por que razão a justiça dos tribunais — sobre a qual estamos de acordo há décadas, ou até séculos — deixou de nos ser suficiente.

Num momento-chave do livro, Laura pesquisa “female heroes” no Google e vê surgir apenas nomes de celebridades — figuras públicas conhecidas, mas raramente associadas a coragem ou transformação social. Este episódio parece sugerir uma crítica à forma como a cultura popular esvazia ou distorce o conceito de heroína? Gostaria que comentasse.
Neste caso, penso que o problema não é a cultura popular, pois se fizermos a mesma pesquisa mas, em vez de mulheres, procurarmos nomes de homens heróis, os resultados vão mais ao encontro do que seria esperado: homens que demonstraram coragem e foram capazes dessa transformação social. O problema, creio, é a forma como sempre olhámos para as mulheres heroínas, valorizando sobretudo as suas virtudes naturais: a beleza, a fisionomia, a popularidade, entre outras, e não tanto os seus feitos.
O esquecimento é cada vez mais difícil, claro. O que deveria significar menos equívocos, desentendimentos, erros. No entanto, não creio que isso se verifique.
A certa altura, Laura usa a expressão “santa dopamina” para descrever a compulsão que sente ao navegar nas redes sociais. Essa fórmula irónica parece condensar o modo como, hoje, vivemos viciados em estímulo, validação e visibilidade constante. Fazemo-lo porque nos sentimos sozinhos ou porque encontrámos uma nova forma para uma questão antiga, a de encontrarmos validação?
As duas coisas estão associadas e remetem para a uma carência social, ou afetiva, que, penso, está gravada na nossa genética e nos impeliu, durante milénios, a procurarmo-nos para formarmos sociedades cada vez mais complexas, mas também a nos definirmos de forma mais completa através do olhar dos outros. Nós precisamos desse olhar do outro. As redes sociais aproveitam-se disso e do nosso cérebro tão propenso a adições. É uma fórmula infalível.
O romance retoma um tema frequente na sua escrita: a memória e o esquecimento. Em Os Dias do Ruído lemos que “o esquecimento não é possível nesta época em que tudo está registado…” Como encara o papel do esquecimento na sociedade contemporânea, em que tudo tende a ser documentado?
O esquecimento é cada vez mais difícil, claro. O que deveria significar menos equívocos, desentendimentos, erros. No entanto, não creio que isso se verifique. Porque a embora quase tudo esteja registado, a velocidade a que as nossas vidas acontece, bem como a da informação, é tão grande que não existe tempo para olharmos para trás, para lembrarmos, para aprendermos com o que aconteceu. É uma memória demasiado técnica, sem profundidade. Talvez seja preferível o esquecimento.
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