Para além de psicóloga, também és sexóloga. Na tua biografia de Instagram dizes que libertas mulheres, vulvas e prazer. Como é que isto se faz? Para além do Consultório do Amor, ainda fazes o acompanhamento de mulheres em consulta. Quais as principais inquietações e questões que te chegam em sessão?
Vejo a libertação sexual como um retomar da posse do nosso prazer e do nosso corpo que continuam a ser vistos como propriedade pública. Basta que observemos os números de assédio, violência sexual e violência doméstica, dos quais, muitas vezes, os agressores continuam a sair impunes e a mulher tida como a instigadora dessas agressões -"Pôs-se a jeito! Estava a pedi-las". Da mesma forma, os nossos corpos e a vivência da nossa sexualidade continuam a ser alvo constante de escrutínio e julgamento - "Aquela anda com todos", "Devia era emagrecer, devia era depilar-se, devia era pintar aqueles cabelos brancos", "Ela não quer ser mãe?!". O nosso corpo continua a não ser nosso. A nossa vida e o papel que a sociedade espera de nós ainda é o de recato, doçura e serventia.
Isto, obviamente, vai refletir-se num receio e até numa incapacidade de vivermos a nossa sexualidade livremente, de experienciarmos o nosso corpo e o nosso prazer como bem quisermos. Assim sendo, trabalho para libertar mulher, vulvas e prazer, porque acredito piamente que uma mulher que é dona do seu corpo e do seu prazer, é dona da sua vida, ou pelo menos está mais perto de o ser. As questões que me mais me chegam em sessão são precisamente consequência de toda esta realidade: dificuldades ao nível do orgasmo, dor na relação sexual, baixa autoestima e dificuldades em estabelecer limites, não só na sua sexualidade, mas também nas suas relações como um todo.
Uma mulher que é dona do seu corpo e do seu prazer, é dona da sua vida
Como é que a discussão em torno de temas como a sexualidade e prazer feminino tem evoluído ao longo das últimas décadas? Achas que há cada vez mais mulheres a reclamar o seu prazer?
Apesar de estar de alguma forma numa "bolha", tendo em conta que quem está na minha página já serão pessoas, em princípio, mais abertas para o tema, quero acreditar que de uma forma geral, essa reivindicação pelo nosso prazer está a acontecer cada vez mais. Acho que esta luta se tornou mais notória principalmente a partir da segunda vaga do movimento feminista, por volta dos anos 1960, que coincidiu também, com a criação da pílula contracetiva. Esta veio dar-nos o poder de escolher se e quando ter filhos e, por outro lado, libertar-nos para viver a nossa sexualidade para além do objetivo estabelecido da procriação. Poderíamos fazê-lo apenas e só (pasme-se) por prazer. Por outro lado, o próprio estudo da sexualidade feminina sempre se viu secundarizado e envolto em mitos. Ideias como a de que só por penetração se teriam orgasmos "reais e maduros" têm consequências até hoje, quando já se percebeu que 70 a 80% das mulheres necessitam de estimulação do clitóris na sua parte externa, para ter orgasmo. Outro exemplo, é o de que só em 1998 foi conhecida e mapeada toda a anatomia do clitóris e 1998 foi há 24 anos. Ou seja, a evolução está a acontecer, mas ainda muito há a fazer.
Falar sobre sexo, até mesmo entre mulheres, ainda é um tabu em Portugal?
Diria que sim precisamente pelo medo do julgamento. No entanto, mais uma vez, as redes sociais têm ajudado muitíssimo nesta naturalização do tema. Não só com páginas sobre sexualidade especificamente, mas também com outras sobre feminismo de uma forma geral. Da mesma forma, sinto que os media têm acompanhado esta evolução, levando este tipo de conteúdos também a outro tipo de público e a variadas faixas etárias.
Não fomos educadas para ser sexualmente ativas, bem resolvidas e empoderadas
Consideras que a mulher sexualmente ativa, bem resolvida e empoderada ainda é mal vista e alvo de preconceito?
Mais uma vez, tem existido uma evolução neste sentido, mas diria que a sociedade, e os homens em particular, ainda se estão a reorganizar - e às vezes com alguma dificuldade -, para saberem como lidar e se posicionar perante esta nova mulher que progressivamente tem emergido.
Não fomos educadas para ser sexualmente ativas, bem resolvidas e empoderadas, assim como eles não foram ensinados a lidar com mulheres assim e, por outro lado, foram ensinados sim, a serem eles os senhores e provedores do nosso prazer. Atenção que isto acarreta, obviamente também, muitas pressões desnecessárias para eles e geradoras de muitos problemas: ansiedade de performance, dificuldades com a ereção e com o orgasmo, por exemplo. Posto isto, diria que a independência feminina ainda assusta e é alvo de preconceito, sim. Porém, é um caminho sem volta, é bom que aprendamos todas e todos a lidar.
Nas tuas redes sociais dizes que todas as mulheres devem viver as suas relações e a sua sexualidade. Qual a sua importância e onde fica o papel da educação sexual?
Diria que a educação sexual faz parte - ou deveria fazer - da construção de qualquer pessoa não só pela sua felicidade e bem-estar e das suas relações, mas também para a construção de melhores cidadãs e cidadãos, com respeito e empatia por várias realidades. Porque educação sexual é sobre muito mais do que sexo e contracetivos. É educar para a igualdade de género, para a autoestima, limites, consentimento, para a diversidade de identidades de género, orientações sexuais e muito mais.
Acreditas que o empoderamento sexual é essencial para o empoderamento feminino? Que são indissociáveis um do outro?
Sim, são indissociáveis. Como é que posso ser dona da minha vida se não sou dona do veículo através do qual me movo - o meu corpo? Digo, e volto a dizer, uma mulher que é dona do seu corpo e do seu prazer, é dona da sua vida, ou está, pelo menos, mais perto do o ser. Quando sou capaz de dizer o que quero, o que não quero, quando escolho com quem e como me relacionar, quando sou capaz de me dar prazer, sinto-me mais dona de mim, com mais ferramentas para definir todos esses limites e necessidades também em outras áreas da minha vida.
O sexo é um lugar onde podemos ser tudo e é nessa liberdade que reside o empoderamento e igualdade
O livro Relatório Hite, publicado em 1976 pela sexóloga alemã Shere Hite sobre sexualidade feminina, foi revolucionário para a época. À semelhança da autora, achas que a igualdade dentro do quarto é um dos primeiros passos para a igualdade em outras esferas da vida da mulher?
Sim. Sendo que igualdade tem muito mais a ver com escolha, consentimento, respeito e igual atenção dada ao prazer dos envolvidos. Ou seja, igualdade não tem de ser sinónimo de dinâmicas em que ambos desempenham papéis semelhantes e de igual poder. Na verdade, o sexo é um lugar onde podemos ser tudo e é nessa liberdade também que reside o empoderamento e igualdade. Se uma mulher gostar de desempenhar um papel de maior submissão no sexo, isso não faz dessa relação sexual mais desigual quando foi ela que escolheu estar nesse papel e o faz com consentimento e voz ativa para parar quando assim o entender.
Em 2017, a atriz e feminista Emma Watson foi criticada por, numa sessão fotográfica para a revista Vanity Fair, ter aparecido com um decote revelador. Na época gerou-se uma grande polémica em torno do tema, com pessoas a acusaram-na de estar a trair os seus ideais feministas. Feminismo, sensualidade e erotismo são conceitos que não podem coexistir?
Podem, porque feminismo é sobre escolha. Escolha inclusive sobre o meu corpo. Querer prender a mulher a uma determinada imagem, na minha perspetiva, nada tem de feminista. É só retirá-la de uma forma de opressão para colocá-la noutra.
Sempre que as mulheres quiseram reclamar os seus direitos foram apelidadas de bruxas, loucas, histéricas ou simplesmente exageradas
Nos dias que correm assistimos a um fenómeno de tentativa de humilhação e ridicularização da mulher feminista. Por que motivo ainda existem tantos estereótipos? Acreditas que estamos perante uma tentativa de desprestigiar a luta feminista?
Acho que esses estereótipos sempre existiram e vêm lá de trás na História. Sempre que as mulheres quiseram reclamar os seus direitos foram apelidadas de bruxas, loucas, histéricas, ou simplesmente exageradas. Acho que no caso das feministas se acrescentaram ainda outras ideias: são solteiras que ninguém lhes pega, tristes, com bigode, com falta de homem, com falta de sexo, entre muitas outras. Por estas e por outras, muitas mulheres não se veem como feministas ou têm vergonha de admitir que o são. Preconceitos fazem parte, tentativas de boicote fazem parte, e chegam essencialmente da parte de quem: não percebeu o movimento por não sentir o problema na pele, por desinformação ou então por quem, de forma mais ou menos consciente, tem medo da perda de privilégios.
Atualmente há quem se questione sobre a pertinência da celebração da Dia Internacional da Mulher e sobre a forma como é celebrado. O que tens a dizer a este respeito? Consideras que esta é uma data que nunca deve ser esquecida?
Até que não exista nem mais uma mulher oprimida ou agredida no mundo, sim nunca deverá ser esquecida. É um dia de luta por todas as que vieram antes de nós e por todas as que virão. É um dia de luta pela nossa segurança, liberdade e igualdade a todos os níveis que, segundo vários estudos, ainda vai demorar entre 100 e 200 anos. Por isso, temos ainda muito que lembrar este dia.
Pegando no recente exemplo de Rita Matias, deputada do Chega, constatamos que, em pleno século XXI, ainda existem muitas mulheres que ainda não sabem o que é o feminismo, confundindo-o com femismo. Por que motivo achas que isto acontece?
Penso que pela desinformação, pelo preconceito, pela desvalorização e ridicularização que ainda se tenta fazer da mulher feminista e do movimento. É preciso educar para a importância do feminismo para toda a gente. Para a construção de uma sociedade mais justa e igual.
Todas e todos nascemos feministas, ninguém nasce a acreditar que os homens têm mais direitos ou que são naturalmente melhores que as mulheres
Atualmente existem mulheres que rejeitam o rótulo de feminista. Isto deve-se a quê?
Ao desconhecimento do seu significado. Na verdade, todas e todos nascemos feministas, ninguém nasce a acreditar que os homens têm mais direitos ou que são naturalmente melhores que as mulheres. Somos ensinados dessa forma, mesmo que de forma subliminar. Quando são as meninas que devem brincar às casinhas e os meninos às lutas, quando é a nossa mãe que cuida da casa e o pai só chega e come, quando ouvimos coisas como "Aquela não se dá ao respeito, anda com todos!" e eles ouvem "Quantas mais tiveres melhor!", quando ouvimos "Ah, mas isso é trabalho de homem, eles são melhores nisso claro". É o mundo que nos "desfeminista". No fundo, o processo é só o de voltar às origens.
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