Disseste em entrevista que o feminismo “faz bem a toda a gente, porque torna o mundo mais justo”. Em que altura e como é que despertaste para este tipo de questões?

Desde que sou adolescente que sentia que alguma coisa não batia certo. Quem era suposto ser, a caixinha do estereótipo de mulher não me fazia sentido. Entrei mesmo em choque porque achei que eu é que era a esquisita, a fora da lei. Quando fui para a faculdade, percebi que não era só eu e encontrei representatividade nos livros feministas. Sou uma nerd, com glitter, mas uma nerd.

Como nasceu o projeto Clara Não, cujo tema principal é o feminismo?

O projeto Clara Não nasceu em 2015 quando voltei de Erasmus da Willem de Kooning Academie, em Roterdão. Antes de o fazer, já tinha tido Ilustração na Faculdade de Belas Artes, no curso de Design de Comunicação, com o ilustrador e professor Júlio Dolbeth. Quando estudei em Roterdão, escolhi a cadeira principal do curso de Ilustração e fiz também escrita criativa. Cheguei a Portugal cheia de garra para investir mais em ilustração. Quando acabei o curso, trabalhei como designer em empresas e como freelancer para juntar dinheiro, enquanto apostava no meu projeto como Clara Não. No princípio, o projeto não era explicitamente feminista, foi-se tornando conforme eu fui tendo coragem para expressar a minha visão do mundo sem medo. O meu trabalho sempre acompanhou o meu desenvolvimento pessoal.

Em 1979 foi aprovada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, mas todos os anos mulheres, em todo o mundo, fazem marchas e manifestações em busca de mais igualdade, inclusão e dignidade. Esta é uma luta que parece não ter fim?

Esta é uma luta que parece não ter fim, mas os resultados da luta estão à vista. As mulheres podem viajar sozinhas, ter carreiras, ter independência financeira, votar, etc. No entanto, todos os direitos ainda não estão 100% ao mesmo nível dos homens, especialmente se forem homens cis-hetero brancos, e faltam garantir muitos outros. Ainda não nos podemos focar meramente no Ocidente. O Feminismo é para todas as pessoas, de todos os géneros, tons de pele, nacionalidade e religiões. Feminismo é liberdade de opções e igualdade de género. Estamos em 2022 e ainda há problemas gravíssimos como mutilação genital feminina, pobreza menstrual, países e estados em que o aborto é ilegal, casos em que a mulher violada é a castigada ao invés do violador, etc. Temos um longo caminho pela frente. A luta continua, e para se atingir justiça social, precisamos do Feminismo Interseccional.

No princípio, o projeto não era explicitamente feminista, foi-se tornando conforme eu fui tendo coragem para expressar a minha visão do mundo sem medo

Apesar dos pequenos avanços que se têm verificado em diversas esferas, quais os principais desafios que as mulheres portuguesas ainda enfrentam atualmente?

A meu ver, há dois grandes desafios: a igualdade de género no trabalho e a falta de garantia de igualdade em casa. Vou dar alguns exemplos. Há uma imensidão de mulheres a quem perguntam em entrevistas de trabalho se tencionam ter filhos. Não é novidade, havendo preconceito, que vemos mulheres a quem não renovam o contrato por estarem grávidas, inventando outra desculpa qualquer. Ainda dentro do ambiente corporativo, temos testemunhos de mulheres vítimas de assédio e de violência verbal e opiniões de mulheres silenciadas em reuniões só por serem mulheres.

Em segundo lugar, em casa, vemos que, embora a mulher tenha conquistado o território do trabalho fora de casa - ainda com o telhado de vidro -, em relações hetero-normativas, não vemos, regra geral, o homem a conquistar o território do trabalho doméstico. Dentro deste contexto, vejo que ainda falta entender que uma dona de casa, na verdade, é uma gestora da vida familiar, que também pode ser um homem, e que quem é gestora da vida da família tem um emprego a tempo inteiro e merece receber um ordenado da outra pessoa do casal que trabalha fora de casa. Uma dona de casa pode ser, e deve ser, feminista e ter independência financeira. Se assim não for, deixando de ser infeliz na relação, terá bem mais dificuldades, pelo menos a curto prazo, em garantir a sua independência. Que nenhuma pessoa fique presa numa relação infeliz por questões monetárias.

Além disso, queria também acrescentar que ainda há muito pudor em relação à realidade da maternidade. Cada vez há mais abertura das próprias mulheres para partilharem a realidade, mas ainda se vende muito a ideia de que vai ser a maternidade que vai completar a mulher. Pode ser, ou pode não ser, mas o que é garantido é que a maternidade não é pêra-doce. Pode ser algo muito gratificante e maravilhoso, mas não deixa de ser trabalhoso e desgastante. As mulheres precisam de partilhar umas com as outras estas experiências. Na minha família, quando as mulheres se juntam, é assunto recorrente. Espero que também seja noutras famílias.

Como olhas para a evolução do movimento feminista? Consideras que as gerações mais jovens estão mais atentas para este tipo de questões?

Fico muito contente que o Feminismo tenha evoluído de vaga para vaga, cada vez mais abrangente e com questões que vão ao encontro das necessidades atuais das mulheres e das pessoas no geral. Sei de coração que o Feminismo Interseccional é a resposta para uma vida mais empática, livre e feliz para toda a gente. Cada vez mais se fala de noções de privilégio e da inclusão da comunidade LGBTQIA+ no movimento Feminista. Algo que temos de perceber é que vai haver sempre pessoas com opiniões diferentes, mesmo dentro do movimento. Isso é humano, é natural. Só posso esperar e continuar o meu trabalho no sentido de criar uma discussão saudável, para que todas nós possamos evoluir. Deixarmo-nos do "concordar em discordar", e passar a tentar perceber a visão das outras pessoas. É na discussão civilizada que a mente evolui. Se passarmos o tempo a conversar com pessoas que já concordam plenamente com a nossa visão, não evoluímos, passamos a viver nas chamadas "echo chambers" [sistema que reforça as nossas próprias opiniões e visões do mundo, não deixando que se tenho uma visão mais abrangente do mundo].

Celebrar o Dia da Mulher é como celebrar o 25 de abril a um nível internacional

A educação tem um papel crucial na promoção da igualdade de género? A família é fundamental para uma educação sem preconceitos?

A família é essencial, sim. Neste assunto, é importante realçar que também é preciso munir as famílias de informação. Por vezes, a família é contra o Feminismo; ou não tem tempo, por trabalhar muito, para a devida educação feminista; ou não sabe como procurar. Precisamos de garantir que essa informação chega às pessoas. Por esta razão, é super importante que as escolas também se encarreguem da formação da Igualdade de Género. Desta forma, o ensino público e privado deve disponibilizar formações a pessoas professoras - penso que o faz atualmente. Outro ponto que raramente vejo mencionado, é que a educação vai até certo ponto. Assim, de famílias machistas podem surgem pessoas feministas; de famílias de direita, surgem pessoas de esquerda; vice-versa e por aí fora. Cada pessoa tem também a sua própria personalidade.

Quais os efeitos da pandemia na luta feminista e desigualdade de género? Corremos o risco de algum recuo perante aquilo que foi conquistado?

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A ONU alertou para isso mesmo. Por exemplo, vimos um decrescer de publicações académicas por parte de mulheres, e um aumento por parte de homens, comparando com o tempo pré-pandemia. Por que será? As mulheres ficaram bem mais ocupadas com a lida da casa e a cuidar das crianças do que os homens. Esta questão traz de volta a falta de igualdade nas casas das famílias. O que se faz entre quatro paredes, não se vê lá fora. E atenção, a carga doméstica recai mais sobre a mãe do que no pai, mas também mais nas filhas que nos filhos. Além disso, sou super contra aquele ditado “entre marido e mulher não se mete a colher”: se houver violência física ou psicológica, mete-se todas as colheres que forem precisas. Em casos de violência foi muito mais difícil garantir a segurança de mulheres com a pandemia e as quarentenas. Não esquecer que também foi muito grave para jovens LGBTQIA+ que não têm famílias tolerantes ou aliadas.

As pessoas na linha da frente da COVID-19 também foram na sua grande maioria mulheres. Os empregos de cuidadores recaem maioritariamente nas mulheres: médicas, enfermeiras e funcionárias de lares. Desta forma, as pessoas que tiveram em maior risco de serem infetadas foram as mulheres. Não nos podemos esquecer das empregadas domésticas que são, na enorme maioria, mulheres que trabalham por conta própria e que ficaram sem receber durante as quarentenas.

O Feminismo dá espaço para que todas as mulheres sejam o que elas quiserem

Atualmente há quem se questione sobre a pertinência da celebração da Dia Internacional da Mulher e sobre a forma como é celebrado. O que tens a dizer a este respeito? Consideras que esta é uma data que nunca deve ser esquecida?

Honestamente, é só ler tudo o que eu disse para trás para se perceber que ainda há muito por fazer. É mega importante celebrarmos o que já conquistamos e percebermos o que ainda falta fazer. Mesmo quando todas as mulheres do mundo se sentirem confortáveis e seguras sozinhas na rua, quando não houver conversas tóxicas de virgindade em lado nenhum, quando nenhum homem for insultado com “ser gay” que nem sequer insulto é, quando um menino não for gozado por chorar, devemos continuar a celebrar este dia, devemos comemorar a mudança. Celebrar o Dia da Mulher é como celebrar o 25 de abril a um nível internacional.

Pegando no recente exemplo de Rita Matias, deputada do Chega, constatamos que, em pleno século XXI, ainda existem muitas mulheres que não sabem o que é o feminismo. Qual a melhor ferramenta para combater a desinformação que existe sobre o tema?

A primeira ferramenta só tem uma palavra: Google. Ouvir a Rita Matias fez-me sentir vergonha alheia. Rita, se estás a ler isto, manda-me uma DM no instagram. Vamos tomar um café, conversar na boa e dou-te um kit de arte feminista.

É possível uma mulher ser antifeminista? Não são coisas incompatíveis?

É possível, mas a meu ver é falta de informação. O Feminismo dá espaço para que todas as mulheres sejam o que elas quiserem. Darmos os mesmos direitos a todas as pessoas de todos os géneros, não impede nenhuma mulher de seguir os estereótipos conservadores da sociedade, simplesmente dá a opção a todas as mulheres de o fazerem ou não. O Feminismo não é contra a escolha deliberada e pessoal de mulheres que gostam daquela questão da proteção masculina e de cuidar da casa, de querer ser mãe e gestora da vida familiar a tempo inteiro. O feminismo só quer que isso seja uma opção ao invés de uma obrigação. O Feminismo não obrigada nenhuma mulher a desprezar a vida doméstica ou a queimar aventais.

Atualmente existem mulheres que rejeitam o rótulo de feminista. Por que motivo achas que isto acontece?

Medo de serem julgadas e olhadas de lado como as esquisitas, as fora da sociedade. Medo de perderem empregos por causa desse “rótulo”. Newsflash: vais ser sempre julgada, por isso mais vale sê-lo ao defenderes aquilo que acreditas. Se toda a gente soubesse o que é Feminismo, não haveria esse preconceito.

Assiste-se também a um outro fenómeno: o de tentativa de humilhação e ridicularização da mulher feminista. Por que motivo ainda existem tantos estereótipos? Acreditas que estamos perante uma tentativa de desprestigiar a luta feminista?

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O ser humano repudia o que lhe é estranho, é natural. Ou tem medo do que não compreende, ou tem temor e adoração por algo superior que não compreende totalmente - como acontece na fé religiosa, e nesse caso já há enormes comunidades há muito tempo.

As caixinhas dos estereótipos são limitadoras mas também são confortáveis: sabes o que esperar, não há surpresas. Mesmo que decidas contrariar algumas coisas, há uma linha condutora de referência. Quando sais fora destas caixas, as pessoas na sociedade no geral ficam muito confusas, não te percebem, então querem pôr-te à margem, para não destabilizares a ordem.

Muitos homens também têm falta de empatia, porque não vivem a realidade de ser mulher e têm dificuldade em imaginar.

Consideras imperativo que os homens se insurjam contra a desigualdade de género?

Claro, só têm a ganhar com isso. Os homens também sofrem muito com a imposição de uma masculinidade que lhes limita a liberdade de expressão e a saúde. A maior taxa de suicídio recai sobre os homens. O Nelson Marques tem um livro muito bom onde aborda essa questão, chamado "Os homens também choram".

Por que motivo muitos não o fazem? Achas que existe vergonha em assumir esta posição ou que, por outro lado, muitos homens simplesmente ainda não compreendem a importância de serem feministas?

A masculinidade, como é ensinada de forma geral, é muito tóxica, limita a expressão de sentimentos dos homens. Desta forma, ela mesma impede-os de se sentirem à vontade para a discutirem. Muitos homens também têm falta de empatia, porque não vivem a realidade de ser mulher e têm dificuldade em imaginar. Mesmo dentro do género masculino, temos muitos homens LGBTQIA+ que sofrem na pele de uma forma estrondosa o conservadorismo machista da sociedade.

Qual é o teu principal objetivo e missão com a página Clara Não?

Criar diálogo sobre assuntos sociais, como Feminismo, direito aos sentimentos, saúde mental, auto-estima e empoderamento. Aliar-me a pessoas que estão na mesma luta, como a Tânia [Graça] e o Mário [Santos], porque as pessoas juntas fazem mesmo a diferença. Criar, assim, uma comunidade. Não é o segredo que é a alma máxima do negócio, é mesmo a comunidade.