Assalta-nos um sentimento de incredulidade ao chegar a Veneza. É das cidades mais improváveis do mundo, erguida ao longo de mais de 1000 anos em tão pouca terra. A princesa das águas, a mais atlante das cidades do planeta, vai teimando em resistir século após século à força da Natureza, que ao mesmo tempo a ataca e a protege.
A história de Veneza perde-se nos séculos. Umas das cidades-república da península Itálica (Itália apenas existe enquanto país desde que Garibaldi unificou no seu Risorgimento as várias "itálias" na segunda metade do século XIX), Veneza desde sempre foi uma cidade de comércio, mas no passado em que teve o seu apogeu, quem fazia comércio tinha também de dominar as artes da guerra. Por isso Veneza foi também uma cidade-guerreira, que não fugia a um combate se tal fosse necessário para proteger os seus interesses, nomeadamente lutando contra os piratas que atacavam os seus barcos, algo que vemos ainda hoje o mundo desenvolvido fazer na Somália, por exemplo.
As guerras dos homens sempre se fizeram por metal, tornado vil pelo sangue que por ele foi derramado, nisso Veneza não foi excepção. Cidade feita de água que é, era no domínio das águas que estava o seu poderio bélico. A armada veneziana era de tal maneira forte que conseguiu garantir não só a independência da cidade ao longos dos séculos como também estabelecer zonas de domínio no Adriático e mais além, até Chipre ou Creta, chegando mesmo a enfrentar numa guerra naval o poderoso Império Otomano, o que foi um feito incrível para uma cidade da simensão de Veneza, mas que mostra bem o poder que chegou a ter.
Mas Veneza não fez guerra em todos os lados onde esteve, bem pelo contrário. Chegou até à China, pelo pé de Marco Polo, que, naquela que foi uma das maiores epopeias da história da Humanidade, conseguiu descobrir os caminhos até à corte de Kublai. Hoje, quase um milénio depois, são os chineses que fazem o movimento inverso, seja como turistas de arma fotográfica em punho, seja como residentes que exploram pequenos negócios nas suas vielas e praças, campos como aqui são chamadas. Veneza a todos acolhe, afinal sempre foi terra franca de comércio, e tem muita coisa para vender a quem a visita.
Os turistas que hoje a visitam vêm em grande medida pela originalidade das suas águas, dos seus canais. Infelizmente a cidade talvez esteja agora lentamente condenada ao desaparecimento, se se confirmam as previsões de aumento global do nível das águas. Nos últimos 100 anos Veneza afundou cerca de 20cm. Parece pouco mas é para lá de imenso. Em 1900 a praça de S?o Marcos ficava inundada 10 vezes por ano, atualmente isso acontece em mais de 100 ocasiões. Se acreditarmos no que os cientistas dizem, que o nível das águas vai aumentar 60cm até ao final do nosso século, podemos ver que a espada está bem presente no pescoço desta deslumbrante cidade, que vive com o fantasma de não uma morte anunciada mas pelo menos uma ferida que se prevê possa vir a mudar radicalmente a sua vida no futuro. As soluções estão a ser testadas e podem implicar a criação de diques móveis nas entradas que separam o Mar Adriático da lagoa onde Veneza fica. Será uma luta titânica, esta que vai opôr o Homem à Natureza.
Mas a água não é apenas Madrasta para Veneza, ela é também Mãe protetora, uma vez que se não fosse estar de pés na água ela provavelmente não teria chegado aos nossos dias como chegou. Realmente, não se trata apenas de ser a água a génese da sua beleza e riqueza, é também graças a ela que os alicerces da cidade se mantêm em pé, desafiando o tempo. A água e o lodo garantem que as estruturas de madeira que suportam as suas construções se preservem do contacto com o ar, permitindo assim que vivam mais do que outras que à partida poderiam ter mais potencial de vida longa. Os arquitetos da Veneza antiga sabiam o que faziam, e é a eles, e aos seus mecenas, ricos comerciantes, aristocratas, e a Igreja, que devemos a extraordinária e avassaladora riqueza do seu património edificado.
Há tanto mas tanto para ver que qualquer texto sobre Veneza é por definição injusto e pobre na sua descrição e elencagem. É obrigatório visitar a Praça de São Marcos e os monumentos que a rodeiam, nomeadamente a Basílica do mesmo nome, o Palácio dos Doges e a ponte dos Suspiros. A melhor hora para o fazer é cedo, perto da alvorada, quando as hordas de turistas ainda não a começaram a invadir. Outros pontos a não perder incluem a ponte do Rialto, o Ca d’Oro, a igreja de São João e Paulo, entre muitos outros.
Veneza visita-se sem mapa. É uma cidade que melhor se descobre com uma abertura de espírito que permita que nela se vagueie ao sabor da surpresa. O risco não é grande, por mais passos perdidos que se dêm, mais tarde ou mais cedo chega-se a um ponto de referência que dá centro ao desnorte. O Grande Canal ou um dos incontáveis monumentos da cidade são a garantia que ninguém se perde mais que uns minutos. Neste zig zag de perdidos e achados, vão-se vendo as várias Venezas que formam Veneza. Cada bairro tem uma identidade própria, e dentro de cada um coexistem ainda diferentes realidades, marcadas pela maior ou menor proximidade com o cosmopolita Grande Canal, espinha mais que dorsal da cidade. É essencial alguns dias para se descobrir a tranquilidade de Cannaregio e do ghetto judaico, a vida suavemente boémia de Dorsoduro, as vistas desde Giudeca para as igrejas de São Marcos, São Jorge e Santa Maria. Já para não falar nas ilhas "suburbanas" de Murano, com os seus atelieres de vidro do mesmo nome, e de Burano, onde casas de pescadores pintadas de garridas cores fazem as delícias dos apaixonados por fotografia.
Alguns dos musts não turísticos da cidade incluem um passeio ao fim da tarde na promenade do Zattere, tomar um aperitivo, ao fim da tarde (provar o Spritz é obrigatório), comer um gelato numa das muitas gelatarias (as melhores são a Grom, Boutique del Gelato, Il Doge, San Stae), comer ao ar livre numa osteria (as mais típicas e menos turísticas são em Dorsoduro), percorrer os palazzos abertos ao público, e visitar o Arsenal. Todos oferecem uma sensação de se estar em Veneza como um veneziano.
Ao longo dos últimos 100 anos Veneza foi-se afirmando como uma das capitais da arte no mundo. A sua bienal, que se realiza desde 1895, é o expoente máximo desta afirmação cultural, mas foi deixando atrás dela um rasto e um lastro que mantêm o seu estatuto entre bienais. A suportar essa riqueza artística estão inúmeros museus onde se mostra arte de forma permanente, regra geral dentro de palazzos que são eles mesmo obras de arte. Entre eles destacam-se o Museu Peggy Gugenheim, as exposições de que é mecenas François Pinault no Palazzo Grassi e na Punta della Dogana, a Fundação Prada, a Galeria dell’Accademia, entre dezenas de outras mostras que vão da arte Maneirista à expressão mais contemporânea. Também por isso vale a pena uns dias sem tempo em Veneza.
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