Esta coisa da pandemia a Sars-Cov2 mergulhou-nos a todos numa realidade paralela: pais e crianças ficaram juntos em casa, a fazer escola à distância, depois, a medo, iniciaram um desconfinamento gradual, com muita culpa e sobressalto à mistura. A somar a isto, as conferências de imprensa diárias com números de infetados e mortes, com a incerteza de uma vacina a pairar sobre nós, primeiro prevista para o último trimestre de 2020, mas se calhar só para o ano 2021, mas se calhar só para alguns.
Se juntarmos a isto a quebra real de rendimentos das empresas e trabalhadores, não é de espantar que, de repente, aquelas famílias que conseguiam poupar uns dinheirinhos para férias se dêem conta que este ano não vai dar, não senhor, que está tudo contado e mais que contado e que não há nada para gastar em excentricidades.
E então o que temos como alternativa? Ficar em casa.
E é aqui que a mascara cai: quer seja porque vivemos imersos numa realidade que nos brinda constantemente com imagens glamorosas daquilo que a vida deveria ser (em vez de nos focarmos naquilo que a vida realmente é), quer seja porque o Homem é um ser em constante ambição com um fraquinho especial pelo azul-turquesa-piscina. A verdade é que a derradeira realidade de passar as férias de verão enfiados em casa com os miúdos é assustadora.
E vamos lá discutir este duplo susto: realidade assustadora para nós, enquanto adultos, porque, privados de uma corrente contante de fatores de distracção, tememos que os nossos filhos se transformem em seres revoltados e como tal, muito mais predispostos a torrarem-nos o juízo. Realidade assustadora para os miúdos em si, porque estando nós, os adultos, fadados a falhar nesta nova categoria de entertainers avançados dos nossos filhos, sentimos que mais semanas em casa com eles, ainda para mais de férias, vamos deixar de os conseguir estimular, divertir, preparar para o novo ano letivo que aí vem (que não deixa de ser, ainda para mais, uma enorme incógnita).
Aquilo que os estudos sociológicos nos dizem é que a classe média atual investe como nunca outra geração investiu em tempo de qualidade com os filhos. Eu sei que isto entra em colisão com a ideia de que hoje em dia não damos atenção nenhuma às crianças e que a esmagadora maioria está entretida com dispositivos eletrónicos. Mas a verdade é que, quando comparada com a geração de pais nos anos 70 do século passado, a geração atual de pais passa muito mais tempo em atividades presenciais com os filhos, estando globalmente mais investida na participação. É hoje em dia mais provável que um pai pare de responder a emails para ir desenhar com o filho, do que há 40 anos atrás, um pai parasse de fazer um relatório para ir ler uma estória à sua menina. Isto são seguramente boas notícias. No entanto, há um longo caminho a percorrer, uma vez que as exigências laborais não se flexibilizaram e o horário de trabalho, devido às novas tecnologias, se amplificou. Resumindo: temos pais e mães mais investidos nos seus filhos, mas globalmente muito mais cansados.
E depois vem uma pandemia que nos coloca 24, sobre 24 horas com os nossos filhos, a trabalhar, em casa. E imaginem lá no que deu? Pois bem, telescola, mães e pais exaustos e uma sensação global de tédio nos miúdos. Vêm os meses de verão e a economia afunda: quem tem dinheiro para alugar uma segunda habituação e partir de veraneio?
Por isso, a ameaça real do tédio está a bater-nos à porta. E o tédio é extremamente fácil de enganar: deem-lhe um feed de Instagram, uma Netflix, um Pinterest e temos solução para muitos problemas. Só que não. Nos miúdos, naqueles que estamos tão investidos em fazer mais e melhor, não podemos nem devemos passar-lhes um ecrã para as mãos sem limites de tempo ou função.
O que fazemos então? Investimos todas as nossas reservas energéticas em múltiplas funções, atividades, descobertas, para os mantermos interessados e pouco aborrecidos? Ou abraçamos o tédio?
E eu, por aqui digo, que venha daí esse tédio. Vai ser mau. No primeiro dia os miúdos vão estranhar. Estão habituados a uma rotina animada, com experiências, mãe e pai acocorados a construírem tendas para eles brincarem. No segundo dia vai ser pior, com as primeiras retaliações. Estou preparada para ouvir “que seca, não temos nada para fazer” uma e outra vez. Não quer dizer que o coração não sangre, mas com isto tenho um propósito.
Ao 5º dia, tenho esperança de ver uma pequena luz: no meio do tédio intenso em que eles estarão mergulhados, sem atividades de novo, sem mais do que uma hora por dia de ecrã, espero que eles consigam ver emergir, da monotonia, um ou outro detalhe importante - que temos mais um morango no morangueiro, que o girassol cresceu mais 1 cm desde o início da semana, que a mãe vai fazer um bolo para o lanche.
Cruel? Se calhar. Mas a verdade é que, como mãe focada que sou, não tenho tido vontade de expor os meus filhos ao tédio. E com isso tenho estado a fazer uma coisa muito errada: crianças com agendas preenchidas, sem tempo para se aborrecerem, são crianças que não desenvolvem a capacidade de se auto-regularem, de se focarem em coisas que sejam importantes, de desenvolverem a criatividade e a resolução de problemas.
Por isso, para estas férias tenho como plano o tédio. Porque o tédio consegue ser muito produtivo.
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