Faz falta ver uma criança brincar na rua livremente. Fazem falta os avós e os primos, que não abraçam e não brincam como se quer através do telefone. Faz falta a vida que não nos obriga a apartar uns dos outros. O que essa necessidade de nos distanciarmos nos traz é muitas vezes uma auto-estrada para perdas antigas e para o medo da morte.
Por entre tantos desafios e mudanças, os adultos ainda têm de saber gerir as suas emoções e preocupações para saber como responder a todas as perguntas difíceis. O medo de ficar doente, o medo da morte – “eu não quero que os meus papás morram”.
O medo do vírus e a confusão com as regras - “aquela pessoa não tem a máscara!!! O vírus vai entrar no nariz e na boca dela!”, “as pessoas não podem andar na rua!”. A raiva - “estou zangado com o vírus porque ele não vai embora!”.
A saudade e a esperança – “quando o vírus for embora vou brincar com os meus amigos e tu vais à loja comprar este brinquedo, pois vais?”.
Já muito se escreveu e falou sobre os medos que surgem nesta fase que vivemos. Sim, são normativos, úteis e protegem-nos.
O tempo das tarefas escolares, das brincadeiras e das relações descobertas (assim o cansaço permita) pode ter, lá dentro, tempo e lugar de assuntos difíceis. As crianças vão perguntar se estiverem a pensar e a precisar de ajuda a arrumar essas dúvidas. As crianças vão partilhar se tiverem receptores. As crianças vão perguntar de novo se forem ouvidas.
Se o deixam de fazer, continuamente, estejam certos que não é por não sentirem ou pensarem ou sofrerem. É, sim, porque estão tão assoberbadas e acreditam que fingir e fugir é melhor (e até nessa estratégia podem precisar de ajuda!) ou descobriram que não têm quem queira ou consiga ouvir e responder.
Por isso podemos dar lugar às dúvidas e medos de todos: criar um momento do dia em que se tiram dúvidas; enquanto se fazem os desenhos do vírus podem dar-se palavras do que ele pode querer fazer e do que nós sentimos com isso; podemos escrever uma carta aos cientistas que querem descobrir a vacina e explicar-lhes porque é tão importante.
É que quando se diz “por favor descubram a vacina, eu quero voltar à escola” também se pode dizer “e quero muito voltar a ver todas as pessoas de quem gosto, quero que o meu avô me compre mais gelados, não quero que ele morra”. E quando se diz que não se quer ver morrer, podemos ajudar a pensar sobre o que é morrer (o que achas que acontece quando estas pessoas vão para o hospital? E quando morrem, algumas estão mesmo muito doentes e o corpo delas não aguenta”) e recordar quem já morreu, antes de existir este vírus. Se temos medo de morrer é porque pensamos nisso e no que isso pode significar ou porque já conhecemos o que é viver sem alguém muito importante.
Nós temos medo de morrer, muito! Por isso é que decidimos separar-nos da família se estivermos em contextos de risco. Por isso, fugimos ao tema só para não “atrair”! Por isso, choramos em silêncio porque achamos que as nossas lágrimas aumentam o caudal das lágrimas deles. Por isso, emocionamo-nos quando os olhamos nos olhos e pensamos que um dia podemos não nos reflectir aí. E inunda-nos o medo de só nos sabermos proteger as nossas crianças, como mais ninguém saberia fazer. Por isso, engolimos com dificuldade quando lhes apresentamos como o sofrimento existe pelo mundo.
A decisão: usamos os momentos de dor para educar, preparar e com isso cuidar. Ou usamos os momentos de dor para os “fechar a sete chaves” e fazer de conta que dentro da nossa casa ninguém adoece, ninguém chora, ninguém morrerá. E um dia… eles ficarão sozinhos a descobrir como arrumar essa verdade.
Esta é (mais) uma oportunidade para educar as crianças para as emoções, para a morte e para as relações. Dando espaço ao que se imagina e organizando mitos e medos.
Deixamos algumas orientações para a comunicação, sobre a morte, com as crianças:
- Aproveite todas as janelas que se possam abrir sobre este tema, pequenas preocupações e ideias que vão deixando “cair”… e vá explorando: “tens pensando nisso?”, “o que imaginas?”, “deve ser assustador pensares nisso todas as noites, conta-me o que pensas para a mamã conseguir ajudar”, “quando estávamos a ver as notícias tu saíste da sala, foi alguma coisa que não gostaste?”;
- Todas as perguntas precisam de uma resposta e a informação verdadeira e adequada à idade também dá segurança;
- Quanto mais pequenas são as crianças mais precisam de frases simples e concrectas, sem o uso de metáforas que podem não entender – “morremos quando o corpo deixa de funcionar, quando já não conseguimos comer, brincar, ter frio, respirar.
Às vezes o corpo fica muito, muito, muito doente e isso acontece”. Pode diferenciar o que é estar doente e muito, muito doente para que não se generalize.
- Quando a conversa for difícil, emocionalmente ou por não ter informação, pode sempre dizer “não sei… mas já vi que é importante para ti e quando souber eu digo-te”;
- Sobre o medo da morte é importante normalizar, tal como outros medos e ajudar com a biológica (todos os serres vivos vão morrer um dia, lembras-te daquela flor? Do gato do teu amigo? Do bisavó?) e com a segurança da vossa relação (abraçando, amparando, partilhando que também quer viver muitos anos e que deseja fazer ainda muitas coisas!);
- Se surgirem recordações sobre outras pessoas, escute bem cada pista dada: “eu não quero que tu também morras, estou farto disso. Agora toda a gente morre na nossa família!”.
Reconheça as emoções e ajude -os a identificar (medo, raiva, tristeza), pode partilhar o que também sente e esteja em sintonia com o que vê e ouve (“eu sei que é mesmo difícil ficarmos sem as pessoas de quem gostamos, não é justo e temos medo que isso volte a acontecer”, “podemos combinar o que fazer quando este medo e as saudades ficam maiores, o que achas?”);
- Podem criar um cantinho das saudades – das mais rotineiras e tipicamente associadas a este momento que vivemos (saudades da escola, da rua, de andar de carro, de comer no restaurante) às mais “longínguas” e complexas.
Pode consultar:
. O Kit “(Sobre)Viver na Selva” – jogo para crianças e manual de orientações para os adultos (editora Ideias com História);
. Livro “A Árvore das recordações”, da Edicare
. Livro “A Morte Explicada aos Mais Novos” (ed. Booksmile)
Autoria: Ana R. Santos - Consulta do Luto
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