É manhã cedo e a Mouraria respira aquela sensação fresca que sentimos a cada novo dia, pronto a estrear. Tudo parece inaugural: O pio das andorinhas, o arrastar troante dos caixotes do lixo no empedrado, o tilintar de talheres de pequeno-almoço nas mesas de uma esplanada. Subimos as escadas que antecedem o largo onde, desde 1983, se aconchega um dos cantinhos mais famosos da capital. Cantinho, aqui, é sinónimo de aconchego e de convívio. De cozinha que quer confortar-nos e que vem acompanhada de um grande sorriso. O mesmo que, agora, se abre perante nós, acompanhado de uma mão que nos cumprimenta. Jeny Sulemange é, desde 2013, uma espécie de imagem de marca do restaurante que gere com o marido Aziz khalid. Sentamo-nos na esplanada do restaurante moçambicano, o Cantinho do Aziz.
Jeny está orgulhosa do livro que acaba de publicar “Cozinha Moçambicana” (ArtePlural edições). Uma obra para onde esta moçambicana, chegada a Portugal aos 22 anos, transpõe receitas que trazem consigo histórias e pessoas. Um percurso de mais de três décadas de uma casa que começou por unir os moçambicanos – um reduto de resistência da oposição ao Governo de então -, também os angolanos e que, mais tarde acabou por conquistar portugueses - o Frango à Zambeziana era um sucesso - e outras nacionalidades. Isto num tempo em que o passa-a-palavra tinha mais força do que as redes sociais.
Fê-lo primeiro “Mãe Farida”, a mãe de Aziz. Fá-lo, agora, Jeny, com os seus Makoufe, Miamba, Matapa, Shima, Frango à Cafreal, Gambas Malu-Malu, entre inúmeros outros pratos.
É na sombra fresca da esplanada do Cantinho do Aziz, embalados pela alegria que se solta de dentro da pequena cozinha, que vamos perceber, à conversa com Jeny, como se conquista em poucos anos tanta afeição e reconhecimento. Em 2013, o Makoufe (caranguejo e camarão, com leite de coco e amendoim) de Jeny foi votado, pela revista Time Out, como o melhor prato de Lisboa. As chamuças da chefe moçambicana haviam de ser consideradas as melhores de Portugal. O jornal espanhol El Pais, a revista norte-americana Saveur, entre outras publicações internacionais, teceram elogios à cozinha do Cantinho. Jeny cozinhou em 2018 em Nova Iorque, na James Bears Foundation, criada em honra daquele que é tido como o pai da gastronomia dos Estados Unidos da América. Na mesma cidade estreou com o marido o conceito de restaurante pop-up e, em Leeds, na Inglaterra, inauguraram um Cantinho do Aziz.
Uma cozinha que apaixonou o escritor moçambicano Mia Couto e o difícil Chefe Cordeiro, que se haveria de render à cozinheira Jenny, passando a encomendar-lhe as famosas chamuças de carne.
Jeny, para estarmos hoje aqui sentados, na esplanada do Cantinho do Aziz, houve uma história que começou em Moçambique e passou por Inglaterra. Quer contar-nos?
Sim. Comecei a cozinhar quando tinha nove ou dez anos. Toda a mulher moçambicana de família tradicional entra na cozinha muito cedo. Na hora da refeição os meus pais diziam-me sempre que a comida estava boa, mas os meus irmãos faziam umas caretas. Mais tarde, quando comecei a cozinhar como deve de ser, já me criticavam. Aí, percebi que já estava a cozinhar melhor. Nesse tempo também ficava muito com a minha avó, que me ensinava a fazer bolos, doces, dava-me dicas de cozinha. Nos dias que não queria fazer com condimento, dizia que íamos cozinhar à moda da Guiné, com cebola, tomate, água, um peixe seco. Comecei assim, embora o meu forte fossem as limpezas, gostava muito de as fazer. Depois fui de castigo para Nacala [cidade na província de Nampula]. Os meus pais tinham uma educação muito rígida. Em Nacala tinha uma prima que gostava de cozinhar. Logo, quando chegava a minha altura de cozinhar, trocávamos [risos].
Comecei a cozinhar quando tinha nove ou dez anos. Toda a mulher moçambicana de família tradicional entra na cozinha muito cedo.
Aos 14 anos voltei para Nampula e, aí, já com regras. Tenho seis irmãos. Os rapazes ficavam com as limpezas, as mulheres na cozinha. E eu era a supervisora. Quando tínhamos visitas, a minha mãe dizia-me, “põe mais água na panela”. Claro que, ao pôr mais água, tinha de inventar para não alterar o sabor. A minha mãe trabalhava no aeroporto e, por vezes, convidada os pilotos de aviação para almoçar com a família. Eu, na cozinha, muitas vezes inventava. Lembro-me de um puré de batata com um bife à cebolada. Não sei estava bom, mas o senhor adorou. Aí, ganhei asas.
Mais tarde há de entrar Portugal na vida da Jeny, mas também uma receita da sua avó que lhe dará protagonismo em Inglaterra.
Sim [risos], há a tradição na família de passarmos as receitas e a minha avó deu-me a receita de um bolo de chocolate maravilhoso. Eu adaptei-o à minha maneira de cozinhar. Entretanto, vim para Portugal com 22 anos e aqui conheci o meu marido, o Aziz. Em 2004 vamos os dois para Inglaterra. Em Leeds, onde vivíamos, certo dia disseram-me no trabalho que íamos fazer uma surpresa a uma colega, comprando-lhe um bolo. Eu disse que fazia o bolo e elas duvidaram que eu sabia cozinhar. Falei com o Aziz e ele deu-me força. Fiz o bolo com a receita da minha avó. Chegou o dia da festa, havia bolos de supermercado, mas eu levei o meu e as minhas chamuças. Quando se serviram do meu bolo, comecei a vê-lo desaparecer. Em dois ou três minutos acabou-se. Aí, começaram as encomendas de bolo e de chamuças. Depois começou o takeaway. À noite cozinhava, durante o dia trabalhava. Foi muito cansativo.
A Jeny incluiu a receita do bolo de chocolate e das chamuças no neste seu primeiro livro?
Não as inclui no livro porque como me dizia a minha avó, o segredo é nunca dar a receita completa. Mas, mesmo que eu tivesse publicado, por mais que eu dê uma receita, nunca vai sair igual à minha. As mãos são diferentes, se não tiver aquela paixão e amor pela cozinha, nunca será igual. Há também uma feijoada que não leva carne de porco, mas com ingredientes que rimam maravilhosamente. Tem leite de coco, feijão, frango, carne de vaca, os vegetais. É claro que no livro vai encontrar muitas receitas minhas, o Caril de Camarão, o Catembe, a Matapa de Amendoim, o Piripirí Sacana, o Pulao de Cabrito, o Bolo de Laranja, tantas.
Como me dizia a minha avó, o segredo é nunca dar a receita completa. Mas, mesmo que eu tivesse publicado, por mais que eu dê uma receita, nunca vai sair igual à minha.
Entretanto, há um momento em que a Jeny assume a cozinha do Cantinho do Aziz, aqui em Lisboa. Porquê?
Sim. Antes de emigramos para Inglaterra, já tinha ajudado a Mãe Farinha, minha sogra, aqui restaurante. Depois, voltámos para Portugal em 2013 e tudo aconteceu. Um primo do meu marido que trabalhava no Cantinho teve de emigrar e nós voltámos de repente. Tivemos de começar do zero. Eu na cozinha, sozinha, o meu marido na sala e com duas filhas pequenas. Foram tempos muito duros. Eu fazia mil chamuças de carne, mil de vegetais, cozinhava para o restaurante, cozinhava dez galinhas, 20 quilos de arroz por dia. Começou a aumentar a clientela, a televisão fez reportagens. Comecei a cozinhar para 200, 300, 400 pessoas. Lembro-me de ligar à minha mãe e ela dizer-me “Jenny põe mais água” [risos]. Aí, tinha de calcular como variavam as outras quantidades. Raramente provo a comida, basta-me olhar, por exemplo, para a cor de um molho.
A Jeny está sempre a criar e a recriar as suas receitas, certo?
Tenho de criar as minhas receitas. Agora estou a treinar bolachas com farinha de mandioca e chocolate. Quem vê acha que não rima, mas quem prova delicia-se.
Inventei há dias umas moelas, com um ingrediente que nem queira saber. O meu marido comeu, comeu. Disseram-me logo: “Porque não incluir como aperitivo no Cantinho do Aziz?”. Vamos ver.
Gosto de fazer muitas combinações até resultar, para sair equilibrado. O coco é doce, o amendoim também, logo tem de cortar com o limão. Tem de saber rimar para que não fique muito doce, ou amargo. A banana não pode estar muito madura, ou verde.
Há, inclusivamente uma receita com uma história muito interessante, as Gambas Malu-Malu?
Sim, este prato criei-o em Nova Iorque e começou aqui mesmo, no Cantinho. Um Americano veio ao restaurante, adorou e convidou-me para ir cozinhar em Nova Iorque, no restaurante dele, criando lá um prato. Levou algum tempo a convencer-me, veio aqui comer várias vezes. Finalmente, lá fui. Estava preocupada porque tinha de ser uma receita minha, original. A cozinha era cinco estrelas, tinha tudo e eu tinha encontrado, também ingredientes maravilhosos em Chinatown. Lá fui cozinhar e saíram-me as Gambas Malu-Malu, que, para mim, quer dizer “coisa despachada”.
Ainda em Nova Iorque foi, mais recentemente, convidada para cozinhar num famoso restaurante. Quer contar-nos?
Sim, muito famoso. Fui a primeira mulher moçambicana e negra a cozinhar na James Bears Foundation. E na hora, para além dos pratos que ia criar, inventei uns bolinhos de bacalhau com mandioca. Sabe, naquele restaurante tínhamos segundos para cozinhar e as pessoas que ali estão pagam centenas de dólares por um prato. Acho que conquistámos os americanos. Temos muitos clientes americanos que nos seguem.
Fui a primeira mulher moçambicana e negra a cozinhar na James Bears Foundation. E na hora, para além dos pratos que ia criar, inventei uns bolinhos de bacalhau com mandioca.
Também apresentaram um restaurante pop up em Nova Iorque.
Sim e em outubro próximo tenho de estar lá. É difícil para uma mãe-galinha estar um mês fora [risos]. Acho que vou estar uma semana lá, volto, e regresso novamente. E tenho uma outra filha com 17 anos que está em Inglaterra.
Jeny, como está a cozinha moçambicana neste momento?
Acho que desde que o Cantinho do Aziz abriu para o mundo, despertou a atenção. É uma cozinha diferente, estamos ligados à Índia, a Portugal e um pouco à África do Sul. Dizem que a comida francesa é a melhor, mas eu não acho. A nossa comida, bem feita, é espetacular. E fiquei com a certeza quando fui cozinhar nos Estados Unidos. Quem vai à James Bears Foundation conhece de cozinha, tem poder económico e elogiou. Quem prova, quer mais e mais. Não há só a cozinha de Angola, de Cabo Verde, há a de Moçambique e eu quero passar essa mensagem. Dizem que a boa comida agarra o marido. O Aziz era pele e osso e agora está com 200 quilos a mais [risos]. Já dei, também, aulas nos Estados Unidos de cozinha moçambicana. Querem até que eu tenha lá uma escola.
E a família, como acompanha este percurso da Jeny?
O meu pai adora o meu bolo de laranja. Diz que quando come o bolo sente que está a comer a própria fruta. E já faz o bolo. Envia-me fotos para eu ver como ele o faz. A minha filha mais pequena, acho que vai ser cozinheira. Ela viu-me fazer o bolo e fez um quase igual ao meu só a olho. Estava em casa e senti aquele odor a laranja. Saiu um bolo que todos adoraram.
Vou agora a Moçambique. Quero que cozinhem à maneira de lá. Vou ensaiar uma outra forma de cozinhar e, ao mesmo tempo, vou para aprender. Quero visitar Nampula, a Ilha de Moçambique e Pemba. O meu pai tem uma quinta enorme e com muita plantação. Vou tirar da terra e cozinhar aí mesmo.
O meu pai adora o meu bolo de laranja. Diz que quando come o bolo sente que está a comer a própria fruta. E já faz o bolo.
Moçambique tem muitos ingredientes que nós, por cá, ainda não descobrimos?
Sim, por exemplo, não conhecem Cacana, umas folhas que amargam muito, mas que são fervidas. Servem para evitar a Malária. Temos a Folha de Abóbora, a Folha de Mandioca, que raramente se encontra aqui, o Feijão-Jogo, uma espécie de grão-de-bico, que entra na feijoada.
A Jeny trabalha com muitos ingredientes que chegam diretamente de Moçambique?
Sim, para as Matapas [folha da mandioca pilada, cozinhada num molho à base de amendoim pilado e leite-de-coco e com marisco], mando vir os ingredientes de Moçambique. O amendoim e o coco chegam da quinta do meu pai. O marisco também mando vir do meu país. A mandioca também prefiro a moçambicana. Quando é época da mandioca, os meus pais cavam um buraco com quase um metro e levam aí a mandioca. Fica conservada até um ano, porque é um ambiente fresco. Depois é limpa, congelada e enviam-me para Portugal.
A cozinha ressuscita memórias. No seu caso, o que lhe dizem os clientes que chegam ao Cantinho do Aziz?
Tive clientes que chegaram e disseram, “isto faz-me lembrar a cozinha da minha avó”, e portugueses que estiveram em África e que se emocionaram com os sabores. Lembro-me de uma brasileira que aqui esteve, provou o Chacuti e recordou a infância, por causa da maciez da carne. O Chefe Cordeiro, quando abriu o restaurante, veio comer aqui. Isto foi há uns seis ou sete anos. Na altura, ele chama-me, apresenta-se e diz-me: “Quero que me surpreenda”. Fui para a cozinha e pensei: “Tenho de fazer um prato difícil”. Fiz uma couve, caril de caranguejo e camarão com quiabo. Também mandei chamuças para a mesa e os três pratos. Quando o Chefe acabou de comer, chama-me e eu estava confiante. Levanta-se, cumprimenta-me e diz-me “A sua comida estava espetacular”. Então, desafiei-o eu: “O senhor não me consegue dizer que ingredientes estão nestes pratos”. E ele diz-me que não sabia. Passou a vir aqui como cliente e passei a fornecer as chamuças para o restaurante do Chefe Cordeiro.
O livro também está a despertar estas memórias e interesse?
Há dias uma chinesa comprou o meu livro. O que vai entender? Mas gostou. Quem sabe se não lançamos uma versão em inglês do livro? Vamos ver [risos]. Uma senhora da Bélgica fez o camarão com quiabo, enviou-me a foto e resultou bem, fiquei muito contente.
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