Tornou-se um clássico a história do casal inglês que visita o Sul da Europa, deleita-se com uma refeição de sabor mediterrânico, acompanha-a de um magnífico vinho meridional, servido num cenário que compõe mar, um céu impoluto e a generosidade dos climas temperados.
De regresso ao país natal, o casal de veraneantes carrega na bagagem um par de garrafas com o vinho inesquecível. Numa tarde sombria de um dezembro setentrional, há que recordar aquele agosto soalheiro do sul. Que melhor ligação a essa memória estival do que ´aquele` vinho maravilhoso. Servido o néctar advém a desilusão. Não porque a bebida tenha perdido o seu carácter e tempera. Mudou, contudo, o contexto. Na cozinha, como em tudo o mais, o proveito não mora apenas no que degustamos e cheiramos. O sabor também está no ambiente que nos rodeia.
Serve a parábola anterior para contextualizar as linhas que se seguem. Não há oceano nesta história, mas há um horizonte tão largo como um mar. Neste caso, um horizonte com 180 º de amplitude, abarcados desde a colina sobranceira à cidade beirã de Castelo Branco. Sentamo-nos rente à janela do restaurante Cozinha do Castelo. Sala ampla, decoração sóbria. Ultrapassado o novo protocolo à mesa deste mundo tomado pela COVID-19, com desinfeção de mãos e saudação de boas-vindas a coberto da máscara, propomo-nos a uma refeição que não esconde a sua determinação na cozinha portuguesa.
Antes, porém, e porque como aqui se fez prova, comer também acarreta saborear a envolvente, serve-nos de preâmbulo ao cabrito assado e bacalhau assados (pratos do dia) que chegarão à mesa, a paleta de paisagem que entretece céu, planície e montanha.
A acompanhar o “bom apetite” em jeito de saudação da paisagem, já descansam sobre a mesa os peixinhos da horta de polme estaladiça e com feijão-verde cozido no ponto (al dente, como se usa dizer) e as amêijoas à Bulhão Pato, com marisco de bom porte e sem que lhe falte o travo sumarento - quanto baste - do limão e dos coentros. O estio carrega o planalto com a plenitude do "chilreio" das cigarras. De resto, tudo o mais é silêncio, entrecortado pelo burburinho distante da cidade. A linha de horizonte cose um continuo desde o Norte alentejano, com o recorte distante da Serra da São Mamede, à cordilheira poderosa da Gardunha e, para além desta, o Hércules de rocha que é a Estrela.
Ainda como suporte ao primeiro capítulo da refeição, uma orelhinha de porco que nos diz “acepipe”. Recompensa após as duas horas anteriores de passeio domingueiro com um roteiro ao castelo, fortaleza do século XIII, a pouco mais de duzentos metros do restaurante instalado no Hotel Meliã Castelo Branco, e ao Museu Cargaleiro, núcleo que faz mostra da obra do artista plástico nascido em 1927, ainda no ativo.
À mesa, predispõe-nos o pão regional, o queijo de meia cura da Soalheira e as azeitonas de sabor espicaçado pelo dente de alho picado miúdo e oregãos. Petiscos intemporais que entretém para um creme de abóbora com amêndoa tostada que faz as honras ao primeiro dos principais, a posta robusta de Bacalhau assado, com a sua crosta de broa dourada a recordar-nos que a cozinha portuguesa é uma casa que conforta. Boa abertura nos pratos de resistência, corroborada com o Cabrito assado à Colina, com o arroz de miúdos com o tostado que se pede e umas batatinhas assadas onde apetece entreter o garfo.
Porque de viagem se faz esta narrativa, um breve voo sobre a carta do Cozinha do Castelo (em formato QR Code, sinal dos tempos), devolve-nos sugestões como o Creme de marisco com pão torrado e coentros - imperdível -, o Polvo à Lagareiro, as Plumas de porco preto com migas de pão, a Espetada do lombo em pau de loureiro. Um cardápio que diz Portugal e onde não falta sequer a incursão às planície mais a sul, com a Sopa alentejana e aos ares litorais, com a Cataplana de peixes e mariscos, em dose para duas pessoas. Para acompanhar com vinhos onde preponderam as referências nacionais.
Apetece degustar mais paisagem e mesa. Há que encerrar o que, invariavelmente, nos encaminha para a carta de sobremesas. Duas sugestões que merecem a visita ao pecado da gula, o Arroz doce com canela e a Tigelada das Beiras.
Se a visita se fizer na companhia dos mais pequenos, saiba o leitor que a carta lhes reserva uma janela de propostas com um menu infantil onde não falta a sopa de legumes e o hambúrguer com a batata frita. Contudo, ouro sobre azul, será convencer os petizes de que a cozinha portuguesa é para se aprender a degustar desde cedo e que um cabritinho do monte assado vence de longe à dose de douradinhos.
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