Águas minerais naturais, de nascente, preparadas e de abastecimento público; a família do elemento líquido, indispensável à vida, é grande. Acresce que o moderno consumo junta a este rol uma oferta de águas para diferentes perfis de vida. O resultado exprime-se em lineares de supermercados pejados de referências e de apelos ao consumidor. Uma diversidade de oferta num mercado que, contudo, parece esquecer que o mais importante é beber água.
Um facto aqui sublinhado pela nutricionista Elsa Feliciano que deixa um alerta. Os portugueses bebem pouca água, em média 790 ml per capita e por dia, quase metade das necessidades reais. Mais gritante quando concluímos que as crianças e adolescentes juntam a esta carência de água o consumo excessivo de néctares e refrigerantes.
Água é água e não é substituível por bebidas com açúcar ou apenas pelo líquido contido nos alimentos como nos diz a nutricionista. Para Elsa Feliciano, é fundamental promover a literacia dos cidadãos no que respeita ao consumo de água. Um exemplo? Ensinando-os a interpretar um rótulo de modo a poderem fazer escolhas conscientes e devidamente informadas.
É comum dizer-se que somos aquilo que bebemos. Os portugueses mostram-se sensíveis a esta questão? Ou, pelo contrário, a população revela carências no que respeita ao consumo ideal de água?
Em março deste ano foram apresentados os resultados do "2º Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física", onde os dados relativos ao consumo de água e outras bebidas foram bastante reveladores. Embora a água seja a bebida mais ingerida, a média da população portuguesa é de apenas 795ml diários. Destaco também que apenas 88% dos inquiridos reportaram consumo diário de água. Os grupos das crianças e adolescentes têm um consumo de água muito abaixo das necessidades e apresentam um consumo excessivo de néctares e refrigerantes.
A propósito, esse consumo de água deve atingir que valores?
As necessidades de ingestão de água são influenciadas por vários fatores como a idade, a prática de atividade física, o clima, algumas patologias, entre outros igualmente relevantes. Com base nas recomendações do Krause, Alimentos, Nutrição e Dietoterapia [edição 13ª], as necessidades são de 35ml/kg peso para adultos, 50-60ml/kg peso para crianças e 150ml/kg para bebés, sendo que deste valor a ingestão de bebidas deve ser entre 60 a 70% e a restante através dos alimentos consumidos e da produção metabólica.
Pode dar-nos um exemplo prático?
Sim, num adulto com 70Kg, as suas necessidades totais são de 2450ml. Os 60% deste valor correspondem a 1470ml ou seja 1.5l de água diário.
Depreendo da sua resposta que é arriscado afirmar que podemos suprir as necessidades diárias de consumo água sem o fazer diretamente, através das sopas, vegetais, fruta?
Não só é arriscado como é falso. As recomendações são de que 60 a 70% das nossas necessidades de água seja ingerido através das bebidas e apenas cerca de 30% através dos alimentos. Quem não bebe água diariamente não garante níveis adequados de hidratação, apenas através dos alimentos.
A hidratação também é uma questão de bom senso. A partir de determinado valor pode tornar-se prejudicial, ou não?
Sim, o consumo exagerado de água também tem os seus riscos, sobretudo se for muito prolongado no tempo. Em indivíduos saudáveis, o rim tem a capacidade de fazer essa auto-regulação e quando o consumo é superior às necessidades, aumenta a produção de urina. Acontece que neste processo também perdemos sais minerais. Se acontecer pontualmente, não terá grandes riscos mas de forma prolongada poderá interferir no equilíbrio hidro-electrolítico e ser perigoso para a saúde.
Para além da função hidratante que outros benefícios orgânicos obtemos com o consumo de água?
A água desempenha várias funções essenciais no corpo humano. Como solvente, uma vez que é o meio onde ocorrem todos os processos celulares. É o principal substrato das reações metabólicas e a componente estrutural que dá forma às células. Também ao nível da digestão e absorção dos nutrientes e na excreção de resíduos, pois é o meio de transporte dos nutrientes para as células e de substâncias tóxicas resultantes do metabolismo para os rins, através dos quais são excretadas.
A água mantém o equilíbrio intra e extra celular e influencia diretamente a regulação da temperatura corporal. A evaporação da água transpirada permite o arrefecimento do corpo, evitando a hipertermia.
Perdas de água superiores a 20% podem colocar em risco a vida e mesmo níveis de desidratação de cerca de 10% podem causar danos no sistema circulatório, renal, digestivo e respiratório.
Os anúncios às águas e a presença destas nos lineares das grandes superfícies impõem-se no nosso dia-a-dia. Águas com gás ou lisas, com sabores, fibra, L-carnitina. É certo que as águas não são todas iguais, mas não estaremos aqui a ceder a marketing e a argumentos de consumo?
Atualmente, à semelhança de outros alimentos, existe realmente uma grande variedade na oferta de águas. Obviamente que a primeira opção ou a que deveremos ingerir em maior quantidade são as águas lisas. No entanto muitas pessoas, particularmente crianças, têm dificuldade em beber apenas água. Algumas destas bebidas poderão ser uma alternativa aos refrigerantes, com menor quantidade de açúcar ou com ingredientes naturais da fruta. Reforço, no entanto, a importância de em qualquer faixa etária e independentemente de outros consumos, criar o hábito de ingerir água lisa diariamente.
Neste âmbito, considera que existe em Portugal e por parte da indústria das águas uma atitude responsável no que respeita à informação prestada ao consumidor?
Não me parece haver comunicação irresponsável por parte das indústrias de águas portuguesas, mas poderemos considerar que existe um certo aproveitamento, em alguns casos, com base nas “modas” de alguns tipos de dietas criados nas redes sociais.
No entanto, atualmente existem regras europeias muito bem definidas no que respeita à rotulagem e ao tipo de informação que pode ser veiculada sobre alimentos e bebidas. Acho fundamental promover a literacia dos cidadãos, ensinando-os a interpretar um rótulo de modo a poderem fazer escolhas conscientes e devidamente informadas.
Ainda no que respeita a estas águas aromatizadas, que têm geralmente açúcar e alguns conservantes, continuam a oferecer os mesmos benefícios das outras águas engarrafadas?
Obviamente que as bebidas que têm conservantes e açúcar não são exatamente iguais à água. Mas destaco que dentro deste tipo de bebidas existe uma oferta diferenciadora. Temos águas aromatizadas com aromas artificiais e açúcar e outras que contêm sumo de fruta cujos açúcares provêm da fruta, e como tal são naturais, não contendo corantes, conservantes e edulcorantes. Desta forma, não podemos considerar que as águas são iguais. Volto a destacar a importância de olhar para o rótulo, ver a lista de ingredientes e analisar a tabela nutricional.
Neste caso, o das águas com açúcares, talvez se justifique o mito de que a água engorda. Concorda?
Depende obviamente das quantidades ingeridas e também do açúcar presente no produto. Os exageros nunca devem ser promovidos.
Simplificando, o que difere uma água natural de uma água mineral?
A Legislação prevê a distinção entre águas minerais naturais, águas de nascente, águas preparadas e de abastecimento público. Águas minerais naturais e de nascente têm obrigatoriamente origem subterrânea e provêm de aquíferos bem protegidos. São águas com uma composição química muito estável e bacteriologicamente puras. Não necessitam de qualquer tratamento ou desinfeção, podendo ser bebidas no seu estado original. São comercializadas engarrafadas.
As águas preparadas também são maioritariamente comercializadas engarrafadas, mas não possuem uma origem definida, podendo ser de origem subterrânea ou superficial. As águas de abastecimento público, tem na maioria das vezes origem superficial, em lagos ou rios.
Tanto as águas preparadas como as de abastecimento público necessitam de tratamentos físico-químicos que lhe adicionem características e assegurem a sua potabilidade e segurança.
Ou seja, cada água tem características muito específicas.
As águas minerais naturais contêm características próprias e específicas de cada água, consoante a sua origem, que são estáveis e permanentes. Através do rótulo, podemos aceder a um conjunto de informações importantes sobre a sua composição, nomeadamente o Resíduo Seco (RS) que corresponde à quantidade de sais minerais dissolvidos, o pH, os minerais ou elementos presentes em maiores quantidades, entre outros.
Em função da sua mineralização, e com base na Legislação Europeia as águas minerais naturais podem ser classificadas como hipossalinas (RS inferior a 50mg/l) fracamente mineralizadas (RS entre 50 – 500mg/l) mesossalinas ou mineralizadas (RS 500 – 1500mg/l) e hipersalinas (RS superior a 1500mg/l).
Diariamente, é preferível a ingestão de águas hipossalinas de forma a não influenciar, de forma excessiva, as quantidades de minerais fornecidos pelos alimentos. Também indivíduos que necessitem de regimes alimentares pobres em sódio, grávidas e lactentes. Nos bebés é particularmente importante, uma vez que não tem o aparelho renal completamente desenvolvido, pelo que o rim não tem a mesma capacidade de filtragem. Pode haver sobrecarga devido ao excesso de alguns minerais como o sódio ou o flúor.
Uma rápida pesquisa na internet devolve-nos milhares de resultados com dietas milagrosas com perdas de peso absurdas tendo por base a ingestão de água. Nenhum nutricionista ou técnico de saúde apoiaria um tal exercício, certo?
Certo, a água é importante numa dieta de emagrecimento, mas dentro das quantidades recomendadas para garantir uma hidratação adequada.
Muitas pessoas bebem água engarrafada porque não confiam nas águas das redes municipais. É justificável?
A água da rede pública em Portugal é bastante controlada e embora a sua composição química difira dentro do país, respeita todos os parâmetros químicos e bacteriológicos que a legislação exige.
As diferentes composições químicas das águas relacionam-se sobretudo com o tipo de solos que atravessam, sendo em algumas regiões mais calcárias e noutras mais ricas em outros minerais mas sempre dentro de limites considerados adequados.
Atualmente a dieta alcalina, muito na moda, solicita a ingestão de água com valores de pH mais elevado como forma de compensar o excesso de alimentos ácidos que ingerimos e que nos tornam mais vulneráveis a certas doenças. Tendo em conta os mecanismos de autoregulação fisiológica este tipo de águas vai realmente ser benéficas a este nível?
Não existe evidência científica que demonstre benefício para a saúde com o consumo de águas alcalinas e também podemos afirmar que do ponto de vista fisiológico essas teorias são contrariadas.
Quando ingerimos alimentos ou bebidas, independentemente do seu pH ou conteúdo nutricional, este será digerido no estômago, onde a acidez se situa entre 1.5 e 3. Qualquer variação do pH aqui será anulada. Sabemos que alguns alimentos contêm nutrientes, como os aminoácidos provenientes das proteínas ou alguns minerais com capacidade de acidificar ou alcalinizar a urina, não o organismo. A Dieta não consegue alterar o pH de qualquer parte do corpo, excepto da urina pois é o sistema renal que têm a função de manter o pH do sangue sempre entre os valores 7.3 e 7.4.
O aconselhamento de uma água baseado unicamente no simples critério do PH é redutor. Há muitos outros fatores a ter em conta, quando se pretende recomendar uma água.
Estão na moda as cartas de águas, o comum consumidor consegue realmente apreciar estas diferenças ou o mais importante é mesmo beber água e esquecer estes modismos?
Até poderemos evoluir para as “cartas” de águas, mas neste momento os consumidores não estão preparados para as utilizar de forma adequada.
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