Considera-se um interno inconformado, ou alguém que sente constantemente o desconforto. De uma forma boa. Foi talvez esse desconforto que o levou a trocar uma carreira no Infarmed, com uma experiência enquanto ator pelo meio, pela carreira que sempre esteve à sua espera: o de enólogo. Porque como se diz, "o que tem de ser, tem muita força". E assim passaram 20 anos.

É numa manhã em tempo de vindima que Paulo Nunes nos concede um tempo para dois dedos de conversa. "Para mim, isto foi uma conversa, não foi uma entrevista", diz-nos ao fim de mais de uma hora. Durante este tempo ficamos a conhecer melhor a vida e o trabalho daquele a quem já chamaram de "o alquimista de vinhas velhas".

"Acho que, para se ser enólogo, e trabalhar em enologia, é preciso ter amplitude, ver dentro e fora da caixa", diz-nos ao resumir o percurso tão heterogénero que Paulo considera uma caixa de ferramentas que o transformou naquilo que é hoje.

Como foi a sua jornada no mundo do vinho? O que o levou a tornar-se enólogo?

Eu costumo dizer, meio a brincar, meio a sério, que falhei redondamente o objetivo da minha vida. Sou duriense e os meus pais continuam a ter pequenas parcelas de vinha, como qualquer duriense. Eu acompanhava desde criança os meus avós, no cultivo e no amanho da terra. E isto pode parecer muito poético, mas tem uma dureza por trás. O Douro tem um lado muito austero, quente, com declive. E para mais, via os meus amigos de infância a jogarem futebol no largo da vilazinha e o trabalho duro impossibilitava muitas vezes esse convívio. Por isso, jurava a mim próprio: “vou fazer tudo para não fazer disto a minha vida”. E assim foi, em parte. Não fiz formação em enologia, nem agronomia, fui fazer formação em engenharia alimentar que, de uma forma implícita, me levava a ter um pé dentro e um pé fora. O curso é muito polivalente. Eu acho que nunca recusei esse lado, mas também, aos 17, 18 anos, não me sentia confortável.

Depois há um concurso público para o Infarmed - Instituto Nacional de Farmácia - para Microbiologia. Fui selecionado e entro no laboratório, onde trabalhei quase dois anos. E adorei, é uma equipa fantástica. Fala-se muito mal, muitas vezes de uma forma injusta, de organismos públicos, mas há gente de grande qualidade e competência em alguns. Ao fim de dois anos senti falta de uma coisa. Lisboa não tem o cheiro da terra, da chuva na terra, do verde. E o ambiente que fui vivenciando desde criança, chamou-me outra vez. À época abriu uma vaga no Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) - estamos a falar de mobilidade dentro da função pública - que me permitia estar mais próximo. Adoro Lisboa, mas satura durante a semana. Adoro ir um fim de semana tranquilamente, tenho grandes amigos em Lisboa, mas é fantástico ir e vir.

A vida levou-me a um ponto em que percebi aquilo que realmente queria

Também posso confidenciar que fui um mau profissional de teatro durante sete meses (risos). Não sei se se ganhou um bom enólogo, mas felizmente perdeu-se um mau ator. Fiz teatro universitário e tive a sorte e o privilégio de trabalhar no teatro da Trindade. Fiz “O Magnífico Reitor”, a peça de teatro escrita pelo grandioso Freitas do Amaral.

No IVV começo a ter contacto com produtores de vinho da região demarcada do Dão e a achar muito mais divertido estar do outro lado do que no lado da burocracia. Saio do IVV e começo a trabalhar naquilo que realmente fugia na infância, mas para onde a vida me levou. 

Fez sentido?

Olho hoje para todo este percurso e percebo que é uma caixa de ferramentas que a vida me foi dando. Há dias ouvi uma frase que desconhecia, dita pelo Abel Salazar: “O médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe”. Isso é uma verdade. Hoje vivemos numa época de especialização e somos especialistas em tudo. Mas depois não conseguimos ter a abrangência de perceber onde nós estamos. Acho que, para se ser enólogo e trabalhar em enologia, é preciso ter essa amplitude, ver dentro e fora da caixa. 

O enólogo tem de ser o eterno descontente. E este desconforto permanente é obrigar-nos a perceber que os limites que provavelmente pensávamos que existiam, ainda não os atingimos sequer

Como foi a transição para a Casa da Passarella em 2008 e o que mais o atraiu neste projeto?

Em 2004 faço as primeiras vindimas e em 2008 era apenas consultor da Passarella. Foi um projeto que me fascinou, até porque quando se fala em Dão, há três ou quatro casas que me vêm logo à memória e uma delas é a Passarella. À época, um jovem miúdo ter a possibilidade de começar a trabalhar, a desenhar os vinhos e a respeitar os vinhos que vinham de trás, de uma casa centenária era um privilégio. Em 2011, sou convidado a assumir o projeto a tempo inteiro e não tive grandes dúvidas. A vida levou-me a um ponto em que percebi aquilo que realmente queria. A casa tinha potencial, e não foi nada difícil dizer “Ok, vamos pensar o projeto de fio a pavio, vamos deixar a parte só de consultoria e vamos dedicar mais tempo a este projeto”.

O que o inspira na criação dos vinhos? Existe alguma filosofia particular que siga durante o processo?

Existem vários pontos e o que para mim é fundamental é o desconforto. O enólogo tem de ser o eterno descontente. E este desconforto permanente é obrigar-nos a perceber que os limites que provavelmente pensávamos que existiam, ainda não os atingimos sequer. Olho muito dentro dessa lógica. Há uma frase de um amigo meu que diz que “a enologia é das ciências mais próximas da arte”. E se antes concordava plenamente, hoje estou totalmente em desacordo. É precisamente o contrário: a enologia é a arte mais próxima da ciência. Há muito feeling, muita irracionalidade em determinados processos, mas vamos arriscando cada vez mais. E esse risco pressupõe acordar todos os dias e assumir o desconforto. Costumo dizer que, quando sentir conforto, vou ao prédio da Segurança Social e meto os papéis para a reforma.

Eu sou a soma de 20 vindimas quer eu queira quer não

Este ano celebra a sua 20ª vindima. Como tem evoluído a sua forma de trabalhar ao longo destas duas décadas?

Como é óbvio, olho para trás e percebo que cometi muitos erros. Alguns fazem parte do processo de crescimento. Se não tivesse noção deles, continuava constantemente a cometê-los. Só acho que há uma coisa que mantenho desde o primeiro dia: sou uma pessoa chata. Se calhar um bocadinho obstinado, e quem trabalha comigo sabe dessa exigência. Provavelmente, em algumas situações, sou demasiado exigente e posso tornar-me injusto. Mas as pessoas percebem que é para um bem comum, para fazermos mais, melhor, para evoluirmos e sairmos da tal zona de conforto.

Há coisas que evoluíram muito nos últimos 20 anos. Eu sou a soma de 20 vindimas quer eu queira quer não. Já vi 19 vinificações e essas 19 ficam cá dentro. Claro que todos os anos têm variáveis diferentes, mas há uma série delas que são as mesmas de há cinco, seis ou de há 10 anos para cá. E essa experiência é extremamente gratificante.

Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira.
Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira. créditos: Divulgação

Uma das grandes vantagens nesta casa é termos uma equipa muito estável. A responsável da adega, a Lurdes, tem 40 vindimas. É uma pessoa que os pais trabalharam cá, os avós também. Há um conhecimento geracional que é muito confortável. Agora nem tanto, mas no início era completamente cilindrado. Porque acordava de manhã e pensava, “vamos fazer assim a vinificação”. E ouvia invariavelmente “já fiz isto há 20 anos, já fiz isto há 25 anos”. Mas é óbvio que as coisas mudaram. As alterações climáticas estão cá. Vinhas que provavelmente eram as mais nobres que tínhamos na Casa da Passarella, já não o são. Vinhas de segundo plano passaram a ter comportamentos muito melhores. Ainda hoje falávamos no planeamento de vindima desta semana, que era impossível fazê-lo há 10 anos. Havia um lado muito constante que hoje não existe. Sem sombra de dúvidas, atualmente 80% do meu tempo é passado na vinha, 20% é passado na adega. A vinha é o desafio, não podemos ir por uma cartilha. Temos de estar constantemente na vinha, a provar uvas, a tomar decisões de vindima porque não podemos acreditar naquela cartilha que foi feita no passado. Não há mais esse modelo. Se formos por aí, vamos ter problemas com toda a certeza.

As alterações climáticas vêm dar um empurrão ao desconforto que o Paulo falava? Acaba por ser também uma ferramenta? 

É uma ferramenta que me leva a pensar que o objetivo é tomar o menor número de decisões erradas. Sabemos que vão acontecer, mas temos de minimizar essas situações. E isso pressupõe estar sempre atento aos processos, fugir da cópia. Não vamos por esse lado confortável, porque vamos cometer erros. Ontem foi de uma maneira, hoje é de outra e amanhã será de outra. Somos obrigados a isso.

Eu costumo brincar que o enólogo joga xadrez com o São Pedro. E há anos em que o São Pedro dá o xeque-mate

Que momentos considera mais marcantes nesta trajetória?

O ano de 2006 foi uma vindima terrível para mim, muito difícil, debaixo de chuva. Na Bairrada, houve produtores que nem sequer fizeram vinho. Eu tinha dois anos de experiência, tinha apanhado 2004, que foi um ano muito bom, 2005 melhor ainda, e nunca tinha apanhado uma vindima à séria. Eu costumo brincar que o enólogo joga xadrez com o São Pedro. E há anos em que o São Pedro dá o xeque-mate. E o xeque-mate, em 2006, aconteceu. Isso fez-me perceber que sou apenas um jogador de xadrez e que a minha função não é assim tão absoluta. Foi o cair na realidade. Depois acontecem 2013 e 2014, mas quando se tinha passado por 2006, já estamos um bocadinho habituados. O Dão e a Bairrada são duas regiões absolutamente incríveis, mas de facto, são difíceis de trabalhar.

Admiro muito colegas que trabalham em casas que têm um portfólio muito estanque. Mas acho que o trabalho da enologia muitas vezes é castrado por esse lado constante

Mas depois acontece 2008, que é um ano fabuloso, para mim, dos melhores dos últimos 20 anos. É um contraponto. A natureza em si leva-nos ao limite das suas capacidades e depois é tão generosa. Passados dois anos vem presentear-nos com 2008 que traz vinhos fabulosos, que vão ficar na memória. E é esta dualidade da profissão que eu acho fantástica.

Os vinhos que cria resultam de uma grande liberdade e autonomia. Como se traduz essa liberdade na criação do portefólio da Casa da Passarella e no risco que assume ao apostar em castas mais esquecidas, menos conhecidas ou até que se consideravam extintas?

Admiro muito colegas que trabalham em casas que têm um portfólio muito estanque. Mas acho que o trabalho da enologia muitas vezes é castrado por esse lado constante. É evidente que quando um consumidor vai comprar a colheita 2006, 2007 ou 2008, não tem noção das condições climáticas de cada ano e o que isso influenciou em cada colheita. E o trabalho do enólogo nesse portfólio regular é dar a segurança que permita dizer “este vinho nunca me dececiona”. Isto é um desafio. Mas depois o outro desafio é percebermos que é isso é castrador de novas abordagens porque também há acidentes felizes. Muitas vezes há vinhos que correm bem por acidente e depois olho para dentro do portfólio e penso “onde posso encaixar isto”? Fruto desse espírito, dentro da Casa da Passarella, criei a coleção Fugitivos, em que a única regra é não ter regra. Há vinhos que acontecem, seja pela casta, pela vinificação, por uma condição que acontece apenas naquele espaço. E nós fazemos vinhos dentro dessa lógica.

Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira.
Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira. créditos: RICARDO PALMA VEIGA

Tenho explorado castas menos conhecidas, no Dão, dentro dessa caixa. Lançámos há pouco tempo uma Tinta Amarela, um Tinto Cão, castas que muitas vezes são associadas a outras latitudes, mas também já lançámos um Uva Cão, um curtimenta branco, uma série de vinhos diferenciados. Eu olho hoje para dentro dessa caixa, que comecei a fazer em 2012, e percebo o prazer que tenho em fazer vinhos de edições muito limitadas. Às vezes estamos a falar de 700 garrafas. Acho que serve fundamentalmente para uma coisa: fazer melhores vinhos no portfólio regular. Dentro desta caixa consigo extremar muito mais a vinificação, ir muito mais longe, perceber até onde posso ir e esse conhecimento, como é óbvio, fica. Provavelmente os vinhos que faço do portfólio regular devem muito a essa caixa experimental. E até por outro fator. Acho que o Dão é, e sempre será, uma região de blend, não de monocastas. Mas quando falamos de um blend, tenho de conhecer a sua génese, o que é diametralmente diferente do que acontecia no passado. Antes as vinhas eram plantadas todas misturadas e nunca se conhecia realmente o seu potencial. Hoje nós fazemos os blends, mas as parcelas estão plantadas casta por casta.

De que forma a recuperação de técnicas antigas tem ajudado a enriquecer os seus vinhos, sobretudo o Casa da Passarella Vindima, 2009 e 2011?

O Vindima 2009 e o Vindima 2011 são de facto especiais e que vivem muito de uma fé e de uma crença. E porquê? Acho que o grande trabalho que foi feito na Passarella, além da memória e do grande trabalho que foi feito desde 1882, há mais de 100 anos, foi escolher sete locais para plantar vinho, uns encaixados na floresta, na Serra da Estrela, com um tampão de floresta à volta das vinhas, com diferentes exposições, temos vinhas voltadas a Sul, outras voltadas a Norte. Isso permite-me ter um puzzle que eu acho perfeito: tenho vinhas com mais maturação e vinhas com um lado muito mais fresco.

E o Vindima – 2009, 2011 ou quando o fazemos – é a soma do puzzle num determinado dia. Nós não fazemos o Vindima da soma de uma determinada parcela, fazemos a soma do puzzle das sete vinhas. E só é possível por essa heterogeneidade que temos dentro das vinhas da Passarella. A magia passa muito por aí e o saber passou muito por escolher os locais perfeitos para plantar a vinha.

Como é trabalhar as “7 magníficas vinhas centenárias” da Casa da Passarella, com uma riqueza de castas tão grande?

Tem sido extremamente gratificante porque, pode ser a minha 20ª vindima, mas acho que está tudo no início, muito honestamente. Não é no sentido de menosprezar o trabalho que foi feito anteriormente. Os colegas que estiveram antes de mim fizeram trabalhos fantásticos que provavelmente nunca vou conseguir atingir porque há vinhos memoráveis dos anos 1960, dos anos 1950, que são hinos à enologia. Provei vinhos fantástico.

A nossa idade temporal, enquanto ser humano, é demasiado curta para um processo enológico que, para se validar, são necessárias duas, três gerações muitas vezes

E que não vão voltar a existir porque as condições eram completamente diferentes…

Exatamente. Com menos conhecimento e com menos condições, fizeram vinhos que eu provavelmente nunca vou conseguir fazer. E esse respeito tem de ser colocado, temos de fazer uma vénia às pessoas que fizeram esse trabalho.

Acho que está tudo no início, no sentido de: fala-se muito hoje no Dão, do Encruzado. Vamos ser honestos, o Encruzado, que está tanto na moda, é uma coisa muito recente. A nossa idade temporal, enquanto ser humano, é demasiado curta para um processo enológico que, para se validar, são necessárias duas, três gerações muitas vezes. E nós vivemos o nosso tempo. É tudo muito recente e volátil. E isso de alguma forma tem um lado positivo, mas também tem um lado negativo. O Encruzado aparece graças a um grande senhor da enologia, o engenheiro Manuel Vieira, que começa a fazer os primeiros Encruzados, em Carvalhais, no fim dos anos 1980, princípio dos anos 1990. A pergunta que se deve fazer é: conhecemos tão bem todas as castas, todo o seu potencial, para nos permitir dizer que não existirão mais “Encruzados”, perdidos nas vinhas velhas? Esse é o desafio.

Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira.
Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira. créditos: Divulgação

Há uma casta que hoje começa-se a falar, felizmente, que é a Uva Cão. Sou fã dessa casta, acho que é muito completa. Não tenho dúvidas que era incompleta nos anos 1960, pois é uma casta com uma acidez muito vibrante, e provavelmente nos anos 1960 não tinha calor, não havia maturação suficiente para ser completa e era muito utilizada para equilibrar lotes, era o tempero de outras castas. Hoje funciona por si de uma forma brilhante. Mas a seguir à Uva Cão pode haver outras, pode haver uma Douradinha… Eu acho que só quando conhecermos na sua plenitude este puzzle e este conjunto alargado de castas – somos o país do mundo com maior número de castas por quilómetro quadrado, apesar de os italianos somarem maior número de castas –, porque há muito potencial perdido ainda. Vamos fazer melhores vinhos com toda a certeza no futuro. Não tenho dúvidas nenhumas.

Falou da casta Encruzado, que acaba por ser uma marca do Dão. Sendo o autor do primeiro artigo científico sobre ela, publicado no Journal of the Science of Food and Agriculture, considera que ajudou a dar o empurrão para colocar esta casta em destaque?

Eu só queria resolver um problema meu. Se ajudou? Não sei, mas é verdade que foi o primeiro artigo científico. Atualmente fazemos muito melhores vinhos brancos do que fazíamos há 10 anos, evoluímos imenso. E se calhar, há 12 anos, tínhamos problemas que hoje quase nos rimos a pensar “como é que isto foi um problema”. E o que me aconteceu à época foi que não conseguia perceber porque é que fazia fermentações de Encruzado em barricas novas e ao fim de três meses de estágio em barrica, a madeira era muito presente sobre o vinho. Mas ao fim de seis meses não era tão presente e ao fim de um ano era ainda menos. Isto não me parecia lógico.  E cometeram-se muitos erros, eu cometi esses erros. Porque o lógico da questão era que, quando os enólogos sentiam mais presença de barrica sobre aquele vinho, a reação humana era retirar o quanto antes esse vinho da barrica e engarrafar. Era o pior que se podia fazer porque íamos cristalizar um defeito.

Tenho de agradecer ao orientador do trabalho, o Professor António Jordão, de quem sou muito amigo, porque foi das pessoas mais resilientes no processo e ajudou imenso. Hoje, os mecanismos são claros, é muito a questão do oxigénio, a combinação de reações químicas, que está explicado no artigo. Se ajudei outros enólogos, ainda bem, mas também faz parte do processo. Há enólogos que me ajudaram imenso e é uma cadeia que vai passando de geração em geração. Olho para isto como uma missão, algo que nos dão e que temos o dever de preservar e dar condições para quem vem a seguir.

Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira.
Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira. créditos: Divulgação

Foi distinguido como "Enólogo do Ano" tanto pela Grandes Escolhas, em 2017, quanto pela Revista de Vinhos, em 2019. Como vê o impacto destes prémios na sua carreira?

Os prémios são, como é óbvio, importantes. Não nos podemos focar neles, mas são importantes. Uma distinção destas, pelas duas revistas, acarreta mais responsabilidade, é um facto. Mas confesso, sem falsa modéstia, nunca foi o objetivo. Aliás, a primeira vez que fui distinguido, fui apanhado completamente de surpresa e confesso que nem acharia que fosse possível porque temos uma classe de enólogos brilhante. É gratificante e traz uma responsabilidade, um impacto diferente na carreira. Há uma pessoa que disse um dia uma frase que serve de exemplo. “Existem dois tipos de tolos na vida: aqueles que valorizam demasiado os prémios e aqueles que não os valorizam”. Tem de haver esse equilíbrio e ser sempre a consequência, nunca o objetivo. Quando me perguntam sobre os objetivos de futuro, confesso que não tenho. Pode parecer anarca esta frase, mas acho que a diversão está no caminho, no dia a dia. E se nós focarmos num determinado objetivo, vamos passar ao lado dessa diversão e ficar cegos.

Acha que esses reconhecimentos mudaram a forma como é visto no setor? Sente uma responsabilidade adicional após esses prémios?

Sinto, confesso e vou fazer uma confidência. Antes de ter sido galardoado com esses prémios, recusava muitas vezes algumas provas que me pediam, alguns eventos. Depois dos prémios, não consigo dizer não. Porque acho que pode ser entendido como altivez e temos de ter esse lado humilde. O consumidor tem de perceber que somos a mesma pessoa, apesar de ter sido enólogo do ano duas vezes. O Paulo é o Paulo, e quero que isso seja bem claro.

Eu tive o prazer, na primeira vindima que fiz, de ter alguém que foi meu mentor, por pouco tempo, porque infelizmente faleceu cedo, o engenheiro Magalhães Coelho. E ele foi “Enólogo do Ano”, salvo erro, em 2003 ou 2004, e eu basicamente era o seu motorista. Senti-me um privilegiado por estar ao lado da pessoa que foi enólogo do ano. E recordo-me um dia, em vindima, de correr o país todo de um lado para o outro, completamente estafados, ainda não havia A25, era IP5, a estrada era terrível. Vínhamos da Bairrada e ele diz-me “Paulo, prometi a um amigo que íamos vinificar ainda hoje”. Eram 11 da noite, num dia completamente cheio e lá vamos nós ter com um senhor que tinha 200 kg de uvas para esmagar. E eu pensei: “Isto é um exemplo daquilo que eu quero ser um dia”. Este senhor, que estava aqui ao meu lado, enólogo do ano, foi ali por causa de 200 kg de uva de alguém que não é profissional, apenas tem meia dúzia de videiras. Mas ele não teve a capacidade de dizer que não. Cumpriu e foi lá ao fim de um dia árduo trabalho, em que só lá para as 2 da manhã saíamos dali.  São exemplos destes que nos marcam. E não é só humildade por humildade, é o gozo das pequenas coisas.

Preciso sempre de um lado criativo, de um lado de diversão que me estimule, de um lado de desconforto

Já mencionou em entrevistas que se considera um "enólogo egoísta que gosta de se divertir". O que é que isso significa em termos de criação dos vinhos?

Confesso, sou egoísta no processo, porque felizmente tenho uma profissão que me permite divertir-me, ir à procura de mais, do lado criativo. Como já falámos, jamais teria a capacidade de trabalhar num produtor em que seja obrigado a fazer o mesmo vinho desde o primeiro ano em que lá estou até ao último ano da minha carreira, sem experimentar e sem ter novos vinhos. Preciso sempre de um lado criativo, de um lado de diversão que me estimule, de um lado de desconforto. E é egoísmo, é a busca desse prazer, desse lado criativo, da criação. Tem de estar sempre presente para mim.

Qual é o seu processo ao decidir criar um vinho? O que o guia nas decisões sobre misturas, colheitas e envelhecimento?

O processo é estar atento. A vindima é um processo de imersão e não me peçam para fazer uma ficha técnica ou uma prova de vinhos no período de vindima. Às vezes até posso ser um bocadinho ofensivo. “Pá, não!”. Tenho noção que há sempre qualquer coisa que me está a escapar e é essa oportunidade que vai definir um vinho, o estar presente. E estou muito presente nos produtores com quem trabalho porque sei que são as oportunidades que eu tenho de observação naquele determinado momento, que vai condicionar provavelmente um vinho. Não é um processo que esteja delineado e para isso é preciso estar constantemente a perceber o que temos à nossa volta. “O que é me está a fugir? O que é que posso fazer de diferente? O que posso fazer melhor?”. Dou por mim muitas vezes a caminhar sozinho nas adegas, sem falar, no meu mundo, a perceber o que está a acontecer. E os vinhos nascem muito disso.

Como descreveria o terroir do Dão? O que torna os vinhos desta região tão especiais?

Ao contrário daquilo que muitas vezes queremos passar, não é uma região uniforme, é preciso entender isto. Criou-se, em determinada altura, a ideia de criar um vinho padrão que simbolize o que é uma região. Há vários “Dãos”. Aliás, a região é demarcada por sete sub-regiões que, no meu entender, não fazem sentido absolutamente nenhum na forma como estão demarcadas, até porque, estando marcadas pelo limite geográfico de cada concelho, não acredito que, por muito boa vontade que os políticos tenham, tenham usado o terroir para delimitar os concelhos (risos).  Não faz sentido. Mas uma coisa eu sei. No meu entender, o Dão, em vez de sete sub-regiões, tem duas sub-regiões e meia. Temos Silgueiros, muito próximo de Viseu, e temos a Serra da Estrela. São os antípodas de alguma forma: Silgueiros muito mais quente, solos mais pobres, mais arenoso, granito, tudo bem, mas muito mais pobre, muito menos matéria orgânica; e temos a Serra da Estrela, mais frio, menos concentração, vinhos mais frescos, mais elegantes, mais acidez, com solos mais férteis e mais matéria orgânica. Nós temos muitas vezes a mesma casta com um processo de maturação, com duas a três semanas de diferença.

A outra, que eu chamo de meia região, é Penalva do Castelo. Porquê? Porque é a única mancha dentro do Dão todo onde vamos encontrar solos de argila. Acho que depois existem híbridos dentro do Dão, uns mais próximos de Silgueiros, outros mais próximos da Serra da Estrela, mas são zonas híbridas, de transição entre estes dois polos. Há uma particularidade, mas mesmo numa zona de maior concentração como Silgueiros existe sempre um equilíbrio. Existe sempre uma componente mais fresca, uma componente mais ácida e que torna os vinhos do Dão vinhos muito mais elegantes. Eu sei que elegância é uma palavra que está na moda, todas as regiões estão a usá-la, das mais quentes, às mais frescas, todas procuram esse adjetivo. Eu sei que está muito gasto, mas aqui os vinhos têm de facto esse comportamento. São vinhos muito mais elegantes, com menos estrutura e sempre assim foram. Aliás, acho que os produtores do Dão o entendem melhor hoje do que há 10, 15, 20 anos. Isso é um lado positivo. Acho que neste momento o Dão olha muito mais para dentro, percebe muito mais o potencial que tem e há produtores a fazer belíssimos trabalhos. E não são cometidos erros que foram cometidos há 20 anos. Isso é muito benéfico para a região e para todos.

Quais são os principais desafios e as grandes vantagens de trabalhar numa casa histórica como a Passarella?

Tenho sempre bem presente o espírito de missão, é uma grande responsabilidade este legado. Antes de mim, estiveram grandes enólogos deste país, desde o grande Mário Pato, o engenheiro [Alberto] Vilhena, o Engenheiro Vieira, pai de Manuel Vieira… a geração de ouro dos anos 1930, 1940 da enologia de Portugal passou nesta casa e fez esta casa. O meu objetivo é não estragar muito, confesso. E que a próxima geração tenha as bases para continuar o trabalho magnífico, porque a enologia é isso – o que uma casa histórica faz geração após geração, com respeito com o que vem detrás e construindo o futuro.

Que novidades podemos esperar da Casa da Passarella nos próximos anos?

O espírito inquieto continua sempre. Apesar de ser uma casa clássica, essa inquietude é muito presente. Vamos ter uma série de novas castas no mercado, com toda a certeza. Vamos ter mais edições de Vindima. Posso confidenciar que 2014 será ano de Vindima. Iremos colocar no mercado no próximo ano. E cada vez mais, há um conhecimento maior das vinhas, que me vai permitir fazer vinhos de micro parcelas. Nós já fazemos alguns vinhos de parcela como o Villa Oliveira Vinha das Pedras Altas, o Villa Oliveira Vinha Centenária Pai D’Aviz, Villa Oliveira Vinha do Províncio. O objetivo é ir ainda ao lado mais fino da teia, dentro da parcela, chegar à conclusão de que, da videira da linha número quatro à linha número oito, vou ter comportamentos diferentes e porque não fazer 500 garrafas dessa micro parcela? O caminho será por aí, não tenho dúvidas.

Nós não temos capacidade produtiva de grandes extensões de vinhedos com baixos custos de produção. O Dão nunca será competitivo por aí, tem de ser competitivo pela exclusividade do produto

Pegando nessa questão das micro parcelas, como vê o futuro da viticultura e da enologia em Portugal e no Dão, em particular?

As alterações climáticas, já as vivemos. Não é o amanhã, é o hoje. O Dão tem uma particularidade que eu acho que, apesar de tudo, é extremamente positiva: foi sempre uma região de sub-maturação, ou seja, o problema do Dão era não termos maturações. Era muito mais fresca e as vinhas foram sempre pensadas em sítios que garantissem uma melhor maturação. As vinhas eram plantadas voltadas a Sul, em zonas mais secas, mais drenadas, de encosta, nunca passariam da cota dos 600 metros. E hoje temos de pensar em plantar vinhas voltadas a Norte, numa cota mais elevada, em zonas mais ricas em termos hídricos. Ainda temos essas escapatórias, enquanto outras regiões efetivamente já não têm essas variáveis para trabalhar.

Vinhas que tínhamos dentro da Passarela, que eram consideradas mais nobres do que outras, esse modelo acabou. O Pai D’Aviz, que é uma vinha que não faria sentido ter sido plantada como foi há 50 anos, hoje faz todo sentido. É uma linha voltada a Norte, muito abrigada, com poucas horas de sol, com muita água. Tudo aquilo foi plantado de uma forma errada, supostamente no modelo de há 50 anos. Hoje dão vinhos belíssimos. E o Dão tem de ser pensado, na minha ótica, numa diferenciação, porque tem essa capacidade de fazer vinhos diferenciados. Nós não temos capacidade produtiva de grandes extensões de vinhedos com baixos custos de produção. O Dão nunca será competitivo por aí, tem de ser competitivo pela exclusividade do produto.

Se tivesse de escolher um vinho da Casa da Passarela que o define qual seria e porquê? 

Isso é muito difícil… Mas acho que o Casa da Passarella Vindima, porque acaba por ser a soma de todos os vinhos da Passarella, a soma de todas as parcelas. É como se nós juntássemos todo o conhecimento dentro daquela garrafa.

E vinhos fora da sua própria produção?

Há imensos que gosto. Acho que bebo mais vinhos de colegas meus do que meus. Vou ser injusto com algumas pessoas, que me vou esquecer delas, como é óbvio, mas o Hamilton [Reis] com o seu Monte Natus, são vinhos que me dão imenso prazer, o Hugo Mendes com a sua irreverência, o André [Pimentel Barbosa] está a fazer um trabalho fantástico na Poças, adoro o trabalho dele. Felizmente bebo muito mais vinhos desses colegas do que meus, porque os meus depois obrigam-me a estar a pensar (risos). E não o quero fazer quando estou a beber vinho, quero ter o prazer de beber.

Quando bebe os vinhos de outros enólogos já pensou “podia ter feito isto”?

Já me aconteceu e pegar o telefone para dizer “tiveste esta ideia antes de mim! Adorava ter tido esta ideia, mas é tua”! Isso é bom e é estimulante. Significa que ainda há muito por fazer.

Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira.
Paulo Nunes, o enólogo inconformado faz 20 anos de carreira. créditos: RICARDO PALMA VEIGA

Para os apreciadores de vinho que estão a descobrir os vinhos da Passarella, o que deveriam experimentar primeiro?

Nós temos um vinho que é A Descoberta que é precisamente isso. Porque estamos a referenciar a entrada da casa. Eu acho que as casas não se definem pelos topos de gama, pelos vinhos mais caros. Definem-se na base. E A Descoberta, para mim, se calhar foi o maior desafio que eu tive dentro da Casa da Passarella porque acho que fazer 1000 garrafas de um topo de gama é muito mais fácil. Agora fazer o vinho de entrada de gama.... Foi um vinho de rutura. Hoje é fácil, mas foi um vinho de rutura porque o primeiro Descoberta que lanço, em 2008, é um vinho que quando sai para o mercado, todos os vinhos daquela faixa de preço tinham um perfil muito evidente, à época, com uma madeira muito sobreposta, com algum açúcar residual, com uma intensidade corante elevada. Todos tinham esse perfil. E o Descoberta, fugiu, e foge, completamente desse perfil. Hoje, felizmente há mais vinhos dentro dessa faixa de preço, como o Descoberta. Mas eu confesso que se calhar fui demasiado naïf. Não sei se hoje tinha a coragem de desenhar esse vinho naquela faixa de preço. Provavelmente, se o Descoberta agradar a essa pessoa, ela vai com certeza por aí acima.

Se quem está ao lado, com mais experiência não responder ao porquê, provavelmente não estão com a pessoa certa

Tendo em conta a sua experiência, que conselhos deixaria a um jovem enólogo, que gostaria que lhe tivessem dado há 20 anos?

Tive essa conversa há uns dias, com três jovens enólogos que estão a fazer a vindima comigo na Passarella e disse-lhes: “Sejam inquietos. Nunca saiam da ‘idade dos porquês’, não aceitem por aceitar”. Tudo é muito importante na profissão. E disse-lhes para trabalharem com pessoas que tenham a paciência de responder aos porquês. É extremamente importante. As universidades, como no meu tempo, continuam a formar uma base muito plana, que depois falta todo o resto. E esse lado de construção é dado pela inquietude. Se quem está ao lado, com mais experiência não responder ao porquê, provavelmente não estão com a pessoa certa. Procurem outra com mais experiência que responda à “idade dos porquês”. É o conselho que deixo.