A hemofilia é um distúrbio hemorrágico raro caracterizado pelo défice de um fator da coagulação sanguínea, nomeadamente o fator VIII no caso da hemofilia A e o fator IX no caso da hemofilia B. Ambas têm um padrão de herança ligado ao cromossoma X o que significa que habitualmente as mulheres são portadoras enquanto os homens manifestam a doença.

O tratamento, as complicações hemorrágicas e as comorbilidades associadas estão diretamente relacionadas com a severidade da doença, determinada pelos níveis plasmáticos do fator em causa. Os défices destes fatores da coagulação levam a uma maior tendência hemorrágica que se manifesta clinicamente por hemorragias intra-articulares, musculares ou noutras localizações, de etiologia espontânea ou traumática.

A abordagem multidisciplinar atual da hemofilia visa não só a prevenção e o tratamento das manifestações clínicas e das suas complicações, como também a melhoria da qualidade de vida e do bem-estar físico, mental e emocional. Os benefícios da atividade desportiva nestas vertentes são indiscutíveis, desempenhando um relevante papel no desenvolvimento físico da pessoa assim como no seu crescimento e estabilidade psicossociais. Mas, será possível conjugar o desporto com uma tendência hemorrágica acrescida? E se sim, qual a melhor e mais segura forma de o fazer?

Rute Preto, médica interna de Imuno-hemoterapia do Serviço de Sangue e Medicina Transfusional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Rute Preto, médica interna de Imuno-hemoterapia do Serviço de Sangue e Medicina Transfusional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Rute Preto, médica interna de Imuno-hemoterapia do Serviço de Sangue e Medicina Transfusional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra créditos: DR

Sem dúvida que a prática de atividade física na pessoa com hemofilia está associada ao desafio específico da hemorragia potencial, mas, sem dúvida também, que uma atividade física adequada e personalizada pode melhorar a força muscular, a amplitude articular, a coordenação e a propriocepção, contribuindo para a redução da frequência das hemorragias. Numa abordagem global da hemofilia é pois de encorajar a prática desportiva, incutindo o hábito desde cedo e promovendo a participação positiva e a integração.

Sabe o que deve fazer antes de fazer desporto?

Antes de iniciar uma atividade desportiva nova, para além da avaliação cardio-respiratória aconselhada em qualquer indivíduo, na pessoa com hemofilia é importante realizar uma avaliação da função músculo-esquelética, identificar as atividades físicas de interesse e estabelecer objetivos realistas de acordo com a capacidade física da pessoa, a experiência anterior e a severidade da hemofilia.

Cada pessoa com hemofilia é única e, por isso, a escolha do desporto ou programa físico mais adequado deve ser personalizada, tendo em conta a sua condição física, os seus interesses e as suas necessidades sociais, e apoiar-se nas recomendações de organizações acreditadas como a World Federation of Hemophilia, que disponibiliza estratificações de risco de variadas atividades desportivas.

O tratamento da hemofilia baseia-se na administração do fator da coagulação em falta, podendo realizar-se no momento de hemorragia clinicamente ativa, ou de forma profilática, com a administração contínua e regular de fator, tentando prevenir qualquer evento hemorrágico. Idealmente, a atividade desportiva deve ser praticada sob a proteção do concentrado de fator da coagulação podendo mesmo combinar-se os dias de exercício físico com os dias de administração profilática de fator nas horas prévias.

Na teoria o tratamento parece bastante simples, mas na prática a grande variabilidade interindividual dificulta a terapêutica: um esquema profilático eficaz depende da clínica da pessoa com hemofilia, da maneira como o seu organismo metaboliza o fator administrado, do seu estilo de vida e da sua adesão ao tratamento.  A importância de um tratamento individualizado, com doses e frequência personalizadas, salta assim ainda mais à vista, principalmente no contexto da prática de atividade desportiva. Não obstante a todas as variáveis individuais, interessa mencionar a importância de uma boa gestão dos nossos escassos recursos, procurando a melhor relação custo-benefício sem pôr em risco a saúde da pessoa com hemofilia e sempre salvaguardando a sua segurança e o seu bem-estar.

Qualquer que seja a profilaxia adotada, os desportos de contacto como o futebol ou o basquetebol devem ser evitados uma vez que apresentam uma grande probabilidade de colisão, já nem ponderando desportos como o hóquei, o boxe ou o motociclismo que, pela sua natureza, são atividades perigosas mesmo para aqueles sem hemofilia. Atividades desportivas como o remo, a canoagem, o ténis ou o atletismo são atividades de risco lesional moderado e que devem ser discutidas entre o médico e a pessoa com hemofilia e o seu suporte familiar, analisando caso a caso os potenciais benefícios físicos, psicológicos e sociais.

Os desportos mais recomendados

Os desportos mais recomendados são aqueles que permitem o reforço de diversos grupos musculares e que apresentam uma sobrecarga articular mínima e, portanto, um risco lesional mais baixo e um perfil de segurança mais elevado. O melhor exemplo é a natação, um dos desportos mais completos e mais adequado à pessoa com hemofilia. Outras opções a considerar são o ciclismo com proteção apropriada, as caminhadas, o ténis de mesa, o snorkeling, o golfe, o pilates, o yoga, entre outros.

A atividade física é essencial para qualquer indivíduo e a pessoa com hemofilia não é exceção. Para além de ajudar na prevenção de inúmeras patologias como doenças cardiovasculares ou metabólicas, mostra-se como uma ferramenta indispensável no desenvolvimento físico e no fortalecimento articular e muscular, contribuindo para a diminuição da frequência de eventos hemorrágicos espontâneos.

O suporte social e emocional associado ao desporto contribui para a auto-estima e bem-estar pessoal com melhoria da qualidade vida da pessoa com um distúrbio hemorrágico crónico. A máxima na seleção de um desporto a praticar deve ser a de que nenhuma escolha é imutável e voltar atrás e recomeçar é sempre uma opção. Apesar do tratamento profilático prevenir os eventos hemorrágicos, traumatismos constantes nas mesmas articulações levam inevitavelmente a microhemorragias que a médio e longo prazo podem acarretar consequências osteoarticulares.

Os familiares e cuidadores da pessoa com hemofilia devem ser alertados para toda a dinâmica envolvida na prática de exercício físico, sendo de extrema importância a sua contribuição na orientação da prática desportiva apropriada desde tenra idade. Aconselha-se o esclarecimento de todas as dúvidas com o médico, discutindo abertamente os objetivos a atingir e instituindo assim uma profilaxia individualizada que permita a prática de uma atividade desportiva de forma correta e segura.

As explicações são de Rute Preto, médica interna de Imuno-hemoterapia do Serviço de Sangue e Medicina Transfusional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.